28.9.07

O bigode e as escrituras




Quem passar à noite entre a Rua da Quitanda e a Avenida Rio Branco vai se impressionar com o pouco mais de um metro e meio de um homem capaz de carregar durante toda a madrugada até cinco toneladas (seu recorde até hoje) de papel branco e papelão recolhidos naquele trecho. Carregando seu burrinho sem rabo, nome que os catadores dão aos carrinhos em que empilham quilos e quilos de papel para levar ao depósito em outro ponto do Centro, Seu Pedro esquece seus 60 anos e ziguezagueia pela escuridão da noite da cidade. “Todo mundo me conhece aqui. Ficam a noite toda chamando o velho pra cá, o velho pra lá”, diz Seu Pedro, com um sorriso de pouquíssimos dentes.

Prestes a embarcar rumo à Paciência, sem trocadilhos


Pedro Monteiro de Moraes nasceu em Ferreiros, cidade a 109 quilômetros de Recife, entre o litoral e a Zona da Mata nordestina. Trabalha desde os sete anos no canavial, mas conseguiu levar a escola até a 5ª série. Daí para frente, ficou difícil e nunca mais conseguiu estudar. A leitura, no entanto, está em dia há 12 anos, quando se tornou evangélico e passou a ler com grande afinco as escrituras sagradas. Três anos antes de começar a freqüentar os cultos, Seu Pedro tinha começado a trabalhar nas ruas do Centro catando papel. Era pedreiro desde 1968, quando chegou ao Rio, com 19 anos. De lá até se tornar catador, foi e voltou de Ferreiros algumas vezes. Quando estava desempregado por aqui, pegava o ônibus, enfrentava 48 horas de estrada e voltava para o canavial. Passava um tempo por lá e retornava, insistindo em tentar uma vida melhor no Rio. Numa dessas idas, conheceu dona Vilma, paraibana de Orvalho, sua mulher há mais de 30 anos. Tiveram cinco filhos, quatro meninas e um menino, pouco menos que os sete dos pais de Seu Pedro.

Quase tão longo quanto o casamento é o tempo que Seu Pedro trabalha como catador. Há 15 anos, um quarto de seus 60, ele foi demitido de uma construtora em que trabalhava. Estava começando a desenvolver uma doença que o acompanha desde então, a úlcera varicosa, que deixa os pés extremamente inchados e pode causar feridas enormes. A única forma de tratar a doença é, além de usar a medicação indicada, deixar as pernas levantadas permanentemente. Talvez seja por isso que já convive há tanto tempo com a doença. A construtora alegou na época que ele não conseguiria calçar sapatos, condição que consideravam básica para que alguém trabalhasse como pedreiro. Foi aí que um conhecido, bem mais velho que ele, catador de papel entre a Rua da Quitanda e a Avenida Rio Branco, o levou para trabalhar no Centro. Quando o amigo morreu, Seu Pedro assumiu seu ponto e lá trabalha até hoje. “Deus me apontou uma saída”, conta, animado.

Seu Pedro sempre foi uma pessoa muita religiosa. Católico desde criança, se tornou evangélico por sentir falta de ler a Bíblia, prática pouco incentivada no catolicismo. Sua primeira Igreja foi a Assembléia de Deus, mas saiu de lá há três anos quando exigiram que ele raspasse o bigode. “Se Deus me deu bigode, com certeza é porque ele me queria assim.” Foi para a “Deus é amor”, onde está até hoje, lendo as escrituras. E com o bigode intacto.

Vendo a rotina de Seu Pedro, parece faltar tempo para estudar a Bíblia. Chega todo dia às quatro, cinco da tarde no Centro. Vai até o depósito de papel, na Rua dos Inválidos, 96, troca de roupa, e se dirige ao ponto em que trabalha. Começa a recolher o papel e, até duas da manhã, já catou tudo que podia. Seu Pedro sempre é o primeiro a chegar na fila do depósito, que só abre às cinco e meia. Aproveita o vazio da rua, pega alguns papelões, monta uma barraquinha e dorme até a chegada de Seu Armindo, o dono do depósito. Depois de receber o dinheiro pelo que juntou durante toda a noite, Seu Pedro se veste, toma um café preto em algum bar do Centro e vai para a Central do Brasil. Já são quase sete horas quando embarca para Paciência, na Zona Oeste, onde mora. Chega em casa um pouco antes de nove, toma mais um café, e dorme o sono dos justos, que será interrompido por volta de meio-dia, quando acorda.

Quando Seu Pedro está pegando no sono após praticamente não dormir a noite toda, Seu Armindo, o dono do depósito, que dormiu a noite toda, está apenas começando seu dia de trabalho. Aos 42 anos, chegou ao Brasil com doze, vindo de Portugal, onde nasceu. Na falta de perspectivas, se tornou catador de papel. Conseguiu juntar dinheiro e comprou seu depósito anos atrás. Hoje, não cata mais, apenas compra a peso todo o papelão e papel branco recolhidos pelos catadores. Oferece, além do carrinho, um banheiro com chuveiro para que eles possam tomar banho antes de voltar para casa. Quando todos os catadores já venderam o que tinham, Seu Armindo vai para a Praia do Caju. É a sua vez de vender o que comprou. Sem informar por quanto vende as toneladas compradas, admite por quanto compra. Por um quilo de papel branco, paga 32 centavos. Já pelo quilo do papelão, paga um pouco mais, 35 centavos. De grão em grão, trinta anos depois de ter chegado, Seu Armindo conseguirá este ano mandar as duas filhas para Portugal. Vão estudar.



O depósito de seu Armindo - rua dos Inválidos, 96

Seu Pedro pensa parecido. Quando perguntado se aconselharia um parente de Pernambuco a vir para o Rio de Janeiro tentar a vida, como ele fez há quase quarenta anos, fala em alto e bom som: “Cai fora que é roubada.” Seu sonho e o de Dona Vilma é voltar para Ferreiros, mas não querem ir sem um pé-de-meia. Está trabalhando para isso e, tem certeza, um dia consegue voltar. Para ele, o Brasil não tem jeito e Ferreiros, sendo uma cidade pequena, pelo menos é mais tranqüilo. “Dá pra conviver melhor com as dificuldades”. Ano passado, ano de eleição, Seu Pedro e vários catadores de papel do Centro foram convidados para viajar a Brasília e visitar o Palácio do Planalto, onde seriam recebidos pelo presidente Lula. Seu Pedro não quis ir. “Ele ia fazer alguma coisa pra melhorar minha vida?”. Há doze anos que não vota e nem se lembra dos nomes dos candidatos a presidente da última eleição em que votou, em 1994. Prefere se preocupar com assuntos que julga realmente interferirem em sua vida. As escrituras e o bigode, por exemplo.

24.9.07

As referências usadas pelos Simpsons

Para os fãs de Simpsons, este site é uma boa. Mostra algumas cenas de cinema que já foram parodiadas pelo desenho, como a da foto abaixo.

É só clicar aqui.

Stanley Kubrick

19.9.07

Cacciola: algumas linhas

Coloquei abaixo algumas observações sobre o caso Cacciola, muitas delas já feitas pelos jornais. Mas nunca é tarde, mesmo que sejam lidas apenas pelos meus 2½ leitores (além da minha mãe e da minha irmã, o desespero é tanto que agora obrigo minha cachorra a ler o blog):

- Será uma ótima oportunidade para o Judiciário brasileiro mostrar seu vigor e, acima de tudo, sua natureza apartidária. Ou não. Pode ser também o aprofundamento da dúvida de que trata-se, na verdade, de uma esfera cooptada por determinadas forças políticas de bico longo e bela plumagem. Vale lembrar aos menos ligados que, entre os condenados, está o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, que comandou o banco em 1999 e foi Diretor de Política Econômica e Monetária durante três anos (1995-1998). Em função do Plano Real, o cargo foi/era estratégico para o sucesso/fracasso do governo tucano. Francisco Lopes recorreu da sentença, assim como todos os outros condenados (Demosthenes Madureira de Pinho Neto, ex-diretor da área intenacional do BC; Tereza Grossi, ex-chefe e ex-diretora de Fiscalização do BC; Claudio Mauch, ex-diretor de Fiscalização do BC; Luiz Augusto Bragança, amigo de infância e ex-sócio de Francisco Lopes na consultoria Macrométrica; Luiz Antônio Gonçalves, ex-presidente do Banco FonteCindam e Roberto Steinfield, ex-controlador do FonteCidam). O TRF da 2ª Região (RJ e SP) julgará a sentença ainda este ano. É só esperar para vermos no que vai dar. Será que o Judiciário mostrará a mesma intolerância com a corrupção que demonstrou com os mensaleiros?

- interessa a Mônaco mudar a reputação do país perante a opinião pública internacional de que o principado seria condescendente com o crime. As aspas da procuradora-geral Annie Brunet-Fuster no Globo de hoje mostram isso. A decisão final caberá, segundo ela, ao príncipe.

- ao governo interessa ter esta carta na manga para sangrar um pouco a oposição. Relembrar um dos vários casos de corrupção do governo FHC pode ser lucrativo para o governo e, ao mesmo tempo, perigoso, já que depende da boa vontade da oposição para aprovar matérias importantes como a CPMF, que deverá ser votada hoje.

- Vale lembrar que, na época, o será-que-ainda-admirável senador Aloízio Mercadante foi um dos principais denunciadores do escândalo Marka-FonteCidam. Merval Pereira, no Globo de ontem, cita o escritor Gilberto de Mello Gujawski que, por sua vez, ao comentar tese do sociólogo Chico Oliveira, disse que "o maior mal que o governo Lula está provocando no país é a esterilização política pelo 'seqüestro' dos principais agentes mobilizadores (...) que foram vencidos pelo corporativismo e pelo particularismo." Como diria o Ancelmo Góis, é, pode ser.

Bom, isso é tudo, pessoal.

13.9.07

Só nós não mudamos

Sobre mim, já pisaram os mais variados pés. Pés importantíssimos, diga-se de passagem. Pés cheios de patriotismo, de esperança de mudanças. Pés fardados e fadados – não é porque sou uma pedra portuguesa que não posso trocadilhar. Por cima de mim, já passaram futuros presidentes. Vários deles também já me evitaram. Pelos meus cálculos, lá se vão não sei quantos anos, passaram bilhões de pés. Hoje em dia, só me tocam de leve, num passo apressado que mal dá pra sentir a pisada. Correm pra tudo que é lado e nem se preocupam com o que acontece no chão em que pisam. Antigamente, não. Isso aqui era uma animação só. Tinha passeata, gente empolgada, empolada. Tinha sangue. Tinha folia. Bom, hoje também tem folia. Graças a Deus. Se não, como disse um pé que pisava muito por aqui, ninguém agüenta esse rojão.

Sabe, ser pedra portuguesa da Cinelândia é uma tarefa inglória. Digo inglória porque não é todo dia que somos palco para espetáculos. Na verdade, passamos quase o ano todo nessa mesmice, pés pra lá, pés pra cá, num vai-e-vem entediante. Estava comentando dia desses com uma das minhas quatro vizinhas que o tédio tem aumentado de um tempo pra cá. Pudera. Tirando fevereiro e março, que a coisa ferve com o Cordão da Bola Preta, no resto do ano é só chatice. Mas não foi sempre assim, como lembrou a vizinha da frente durante nosso papo. Coisa de quinze, vinte anos atrás, se eu não me engano, foi uma das últimas vezes que isso aqui pegou fogo. Eram uns garotos, sempre eles, que me encheram com respingos de tinta verde e tinta amarela. Pediam a cabeça de um presidente. Mas ali já dava pra ver que a coisa tava mudando. Muitas de nós receberam, além dos respingos de tinta, respingos de cerveja. A rebeldia tinha virado festa. Tirar o presidente era, para muitos deles, uma grande brincadeira. Achei aquilo estranho, mas como sou uma pedra portuguesa progressista, relevei. Algumas amigas, mais caxias, ficaram indignadas. Estão profanando um chão em que já pisaram cavalos getulistas, a portuguesinha que fica perto do obelisco gritou na época.

Na verdade, cá entre nós, essas pedras estão ficando velhas. Reclamonas. Pra mim, são tempos diferentes. As coisas mudam. É claro que não há a mesma animação de outros tempos – daí que vem o tédio, como eu disse –, mas não dá pra achar que, só porque nós somos as mesmas, os pés que pisam na gente também vão ser. As pedras portuguesas não mudam, já os pés que as pisam, sim, já dizia uma sábia que foi removida na última reforma da frente do Municipal. Essa pedra, aliás, era rica de histórias. Ela era uma dessas que estava por aqui desde 1905, no tempo do Pereira Passos, quando as primeiras de nós foram trazidas, na construção da Avenida Rio Branco, que, dizia ela, se chamava Avenida Central. Estava aqui quando o Getúlio chegou, foi pisada durante os primeiros grandes desfiles da independência, durante o tal do Estado Novo. Lembrava que era impressionante o carisma do gaúcho. Anos depois, a pedra sábia contava, lágrimas e mais lágrimas foram derrubadas sobre ela, quando ele se matou.

Por falar em derrubada, eu testemunhei uma outra derrubada assustadora, não de lágrimas, mas de um presidente. Não presenciei, é claro, mas ouvi. E também sofri com o que veio depois. Mas foi, talvez, a época mais empolgante. Para nós, pedras portuguesas, é bom dizer. O primeiro grande ato cívico da minha lusitana vida foi quando cem mil pessoas se reuniram para exigir, entre outras coisas, que os presos políticos do regime militar fossem soltos. Aquele dia foi inesquecível. O povo cantava, gritava, vibrava com a possibilidade de acabar com a terrível ditadura que já há quatro anos amedrontava até as mais conservadoras das pedras. Liberdade, liberdade, todas gritávamos em coro. Naquele dia, a polícia não veio com tudo. Tinha ido alguns dias antes, quando, lá pros lados do restaurante Calabouço, um estudante foi morto. As pedras portuguesas do lugar ficaram tão traumatizadas que preferiram se calar. Não viram, não ouviram, não iam ser burras de falar. A mordaça daquela época era tamanha que até nós tínhamos medo.

O medo demorou a passar. Só lá pra meados dos anos 80 a coisa começou a mudar. E aí foi lindo, como ouvi o Caetano dizer um dia que pisou bem em cima de mim. Segundo as nossas contas, foram bem um milhão de pés, ou quinhentas mil pessoas, para ser mais específica. Queriam votar, queriam ter o direito de mandar em seus próprios destinos. Nós, pedras portuguesas, apoiávamos as Diretas Já sem titubear. Estávamos cansadas de tanto sangue brigando com o nosso preto e branco. Durante os comícios, vinha muita gente boa pra cá. Ah, eram tempos felizes. Acho que tínhamos mais esperanças. Bom, talvez estivéssemos iludidas. Mas, se era ilusão, era uma ilusão boa, isso era.

De lá pra cá, muita coisa mudou. Vieram aqueles caras pintadas, como eu disse e, depois, a coisa diminuiu bastante. Uns dois anos atrás, umas pessoas queriam tirar o presidente que pareceu um dia com um sapo barbudo. Não conseguiram colocar nem 600 pés, 300 pessoas. Isso aqui também fica cheio volta e meia de professores, policiais, médicos e vários outros profissionais que vêm reivindicar. Reivindicam tudo e, na maioria das vezes, não conseguem nada. Quem também não consegue nada, pelo menos a curto prazo, são as pessoas que nos enchem de lágrimas quando vêm pedir paz. Dessa vez, as lágrimas não são pelo presidente morto, mas pelos familiares, pelos amigos, pelos vizinhos mortos no asfalto selvagem, como disse o Nelson Rodrigues uma vez. Mas eu acho que hoje em dia essas pessoas são bem menos ouvidas aqui. Uma prima minha que é pedra portuguesa lá em Copacabana disse que, quando as pessoas se juntam por lá para pedir paz, menos violência, e esse monte de coisa que todos queremos, enche de câmera de televisão e de personalidade. Por aqui, acho que mal seriam ouvidos. Bom, talvez seja pessimismo meu. Mas nada que se compare a 1968, 1984, 1992. É, meus amigos, até para nós, pedras portuguesas, é estranho envelhecer e acompanhar tantas transformações. A Cinelândia mudou. O Rio mudou. O Brasil mudou. Parece que só nós, pedras portuguesas, como dizia a pedra sábia, não mudamos.

30.7.07

O retrato do início do caos

A realidade vivida pelo Rio de Janeiro do início da década de 90 talvez fosse mais chocante do que a atual. Começavam a acontecer os primeiros crimes bárbaros que hoje, infelizmente, já se tornaram parte do nosso cotidiano. A chacina da Candelária, a chacina de Vigário Geral, os primeiros grandes arrastões nas praias da Zona Sul. Ao contrário desta bárbara e também sangrenta primeira década dos anos 2000, quem viveu esta explosão de violência dos anos 90 vinha de tempos um pouco mais tranqüilos. A escalada da violência nos centros urbanos brasileiros, embora iniciada nas décadas anteriores (seria falacioso dizer que os anos 80 foram tempos tranqüilos), só conheceu sua explosão de fato na última década do século. E é um panorama deste Rio de Janeiro do início dos anos 90 que Zuenir Ventura traça em seu Cidade Partida, lançado em 1994, após dez meses de convívio do autor com a dura realidade de uma das maiores favelas da cidade, a de Vigário Geral, poucos meses depois da brutal chacina que a tornaria famosa em todo o mundo.

Mais que um simples panorama, Zuenir na verdade mostra as tentativas desta cidade partida entre a favela e o asfalto de se encontrar, de se tornar uma só, como os bastidores das reuniões para a criação do Viva Rio, ONG criada no mesmo ano em que ocorreu a chacina, com o objetivo de pressionar as autoridades e criar projetos de políticas públicas para atuar em diferentes comunidades pobres do Rio. Tentativas como essa mostram que nasceu ali a consciência de grande parte da sociedade de que a solução para essa divisão social a que o Rio estava submetido era a incorporação da massa de excluídos e não o aprofundamento dessa separação. Zuenir lembra no livro que, após o extermínio de meninos de rua na chacina da Candelária, surgiu em parte da sociedade um perverso raciocínio de apoio a este tipo de ação de caráter quase fascista. A ação da sociedade civil criando entidades como o Viva Rio foi fundamental para que este tipo de raciocínio não crescesse. Atuante na vida cultural e social carioca, Zuenir consegue transitar com grande talento pelos dois mundos. Fala com o então governador Nilo Batista com a mesma desenvoltura que entrevista o chefe do tráfico Flávio Negão. Mostra os bastidores do poder e do empresariado que engatinhava no que hoje se chama responsabilidade social com o mesmo talento que mostra o submundo do crime de Vigário Geral.

Mas o maior mérito de Cidade Partida é, sem dúvida, apresentar um outro lado da favela de Vigário Geral, e, com isso, de todas as favelas brasileiras. Um lado bem distante do que é mostrado na mídia: enquanto as matérias de jornais e da TV apenas descrevem como foram as operações da polícia e a quantidade de baleados e presos num último confronto entre traficantes e policiais, Zuenir vai mais fundo. Apresenta personagens, pessoas de verdade, e mostra a humanidade que há por trás, por exemplo, do chefe do tráfico da favela. Mostra que aquele homem, destituído de sentimentos e valores para nós, é uma pessoa, que possui crenças e uma visão de mundo ao mesmo tempo brutal e infantil. Mostra também que a favela é um tecido social de múltiplas camadas, coisa que a mídia e a sociedade do asfalto esquecem muitas vezes. Neste tecido, há o drama do morador, castigado mesmo que inocente, sofrendo com a opressão policial e a dependência em relação a uma autoridade – o traficante – que, já naquele início de década de 90, se configurava como um Estado paralelo, bem antes do termo entrar na ordem do dia. O irmão do chefe do tráfico Flávio Negão, Djalma, representa bem esse papel, sofrendo a ação na maioria das vezes violenta da polícia mesmo sem ter nenhum envolvimento com o crime. Também há figuras geralmente não associadas com o ambiente da favela, como o sociólogo Caio Ferraz, agitador cultural de Vigário Geral, um intelectual nascido lá e companheiro de infância do então chefe do tráfico, Flávio Negão e de seu irmão, Djalma. Zuenir observa como a complexa realidade social brasileira consegue forjar dentro de uma mesma comunidade três pessoas tão diferentes, com modos de vida e visões de mudo tão distintas, como Djalma, Flávio e Caio. Crescidos juntos, com as mesmas escassas oportunidades, o primeiro é um simples trabalhador oprimido, o segundo encarna o poderoso chefe local, temido por todos, e o terceiro é um sociólogo que orgulha aos seus pares ao levar à frente o projeto da Casa da Paz, apoiado pelo Viva Rio.

A complexidade dessa realidade não é, em nenhum momento, simplificada por Zuenir. A primeira parte do livro é dedicada a mostrar que já os anos dourados possuíam partes nem tão douradas assim, seja na violência amadora de bandidos como Cara de Cavalo e Mineirinho, seja na violência quase institucionalizada com o Esquadrão da Morte do general Amauri Kruel. Entre esta fase, sem dúvida mais tranqüila, e a atual, há uma lacuna no livro. Ao falar dos anos 50 e parte dos 60, Zuenir quis mostrar como é histórica a divisão da cidade. Não contar, no entanto, como a violência se alastrou durante os anos 60, 70 e 80, tira a possibilidade do leitor ver como essa divisão se aprofundou e deu forma a essa sociedade doente que entrou em colapso nos anos 90 e 2000. Ter uma visão do todo permitiria que o leitor pudesse identificar razões e raízes dessa crise. Conhecê-las, todos sabemos, é o primeiro passo para contê-las.

Passados 13 anos do lançamento do livro de Zuenir, temos um Rio de Janeiro completamente diferente mas ao mesmo tempo muito parecido, bem ao estilo paradoxal de ser de que a cidade tanto se orgulha. A violência é ainda mais brutal do que aquela retratada no início dos anos 90 – basta lembrarmos da morte cruel de que o menino João Hélio foi vítima no início deste ano. A solução também parece longe de estar próxima, mesmo que existam políticos aparentemente munidos de boa vontade para fazê-lo. Aumentaram também, na mesma proporção do recrudescimento da violência, as iniciativas da sociedade civil para pôr fim ao título de cidade partida. ONGs, OSCIPs e projetos voltados para o terceiro setor proliferam a cada mês, assim como cresce a preocupação das empresas com os problemas sociais locais e nacionais. As duas cidades vão se aproximando, lentamente, mas vão. A sociedade já compreendeu a importância de fazer esta aproximação. Compreendeu também que só com ela teremos a tão sonhada paz social. No Rio e, não esquecendo a frase de Arnaldo Jabor que abre o livro (“O Rio é o trailer do Brasil”), no Brasil.

28.7.07

Magic is Might

Dia 11 de julho, uma quarta-feira, os cinemas de todo o mundo foram invadidos por crianças, adolescentes e adultos vestindo longas capas verdes, óculos de aro remendados e uma leve cicatriz maquiada na testa. Outros, menos ousados, se limitaram a colocar um “discreto” chapéu em forma de cone, como os magos usam. Uma semana depois, dia 21, foi a vez das livrarias. Como é comum em estréias de seqüências de grandes sucessos do cinema cujos personagens têm nas roupas uma característica à parte, a estréia do quinto filme e do último livro de Harry Potter não foram diferentes. Essa mania, começada talvez pelos fãs da série Star Wars, que impunham longas roupas pretas de Darth Vader para ir às sessões dos filmes, foi repetida em vários outros filmes, principalmente naqueles voltados para o público infanto-juvenil.

A diferença dos pottermaníacos em relação aos fãs das outras séries de filmes de sucesso, a não ser talvez pelos fãs de Star Wars, é que esses homens e mulheres de diferentes idades e profissões não deixam a mania por Harry Potter de lado quando saem das salas de cinema ou quando terminam o livro. As dezenas de comunidades do Orkut dedicadas a Harry Potter, a seus personagens, à escritora JK Rowling e a temas conexos são um dado de que a febre por Harry Potter ultrapassa as páginas dos seis livros e quatro filmes já lançados. Nessas comunidades, existem tópicos em que os membros contam como foi dolorosa a leitura do sexto livro, em que um dos principais personagens da saga morre. Em todo o mundo, leitores anônimos e famosos, como o escritor Stephen King, vinham implorado para que Rowling não matasse Harry Potter no último livro, Harry Potter and the Deathly Hallows (provavelmente Harry Potter e as Relíquias da Morte, segundo a Rocco). Esta hipótese, para um pottermaníaco, seria drástica. Significaria que o personagem pelo qual ele dedicou possivelmente os últimos dez anos de seus momentos de lazer (para não dizer de vários momentos de sua vida) acabou, morreu.

Lançado em 1997, Harry Potter é, inegavelmente, um fenômeno literário mundial que não se restringe a faixas etárias. Inicialmente voltados apenas para o público infanto-juvenil, os livros de Harry Potter arrecadaram fãs de todas as idades, capazes de, como crianças e adolescentes, também colocarem suas indumentárias místicas para assistir aos lançamentos dos filmes. Vestem-se também, como dito anteriormente, fora da época de lançamento dos filmes. A comunidade do Orkut Encontros Potterianos prova isso. Nela, 1316 aficionados por Harry Potter se reúnem para marcar encontros de carne e osso. A foto da comunidade mostra várias pessoas, adolescentes e adultos, vestidos com as capas de mágico e segurando vassouras. A agenda da comunidade marca quando e onde serão os próximos encontros (São Paulo – SP, Santa Maria – RS, Campinas – SP, Rio de Janeiro – RJ, Americana – SP). Nos tópicos das comunidades, fica claro que aquilo há muito já deixou de ser uma simples comunhão de viciados no pequeno bruxo. Além de combinar encontros, eles combinam detalhadamente como será a programação, quais serão os temas discutidos, os “personagens” presentes, etc.

Mas o pequeno bruxo também é um fenômeno do consumo. Notícia divulgada esta semana afirma que o volume de negócios feitos com a marca Harry Potter beira os US$15 bilhões. Não é à toa: a lista de produtos licenciados pela marca Harry Potter é interminável. Uma simples busca no site de compras Submarino mostra as imensas possibilidades que um pottermaníaco pode ter para comprar. A procura pelas palavras Harry Potter remete a uma lista com 272 itens. A lista inclui todos os 6 livros já lançados, em diversas línguas; a pré-venda do sétimo e último livro, a ser lançado em julho; boxes com os DVDs dos quatro filmes já lançados; camisas de diversas cores e com estampas de vários personagens; casacos para proteger da chuva, com ou sem capuz; jogos para os videogames GameCub, Xbox e para computador; livros sobre Harry Potter, sobre a autora JK Rowling e até um livro de auto-ajuda para que pessoas que ficaram viciadas em Harry Potter aprenderem a lidar com o vício e a esperar pelo próximo livro e filme. Fora a Internet, também é fácil encontrar artigos de Harry Potter em lojas de brinquedos ou em lojas especializadas em quadrinhos, RPG, cards e semelhantes. No exterior, as possibilidades de consumo são ainda maiores, incluindo também chicletes com sabores estranhos, como os de pimenta consumidos pelos personagens dos livros, e até mesmo calcinhas com fotos dos personagens.

A autora JK Rowling, mulher mais rica do Reino Unido (mais rica, vale dizer, do que Elizabeth II), já disse que Harry Potter and the Deathly Hallows não será o último livro. Ainda vem por aí, ela só não sabe quando, a Enciclopédia Potteriana, um extenso livro com a biografia e histórias de personagens e criaturas que cruzaram os sete outros livros de Harry, mas com muito mais detalhes e recheado de acontecimentos que ocorreram depois que os personagens saíram de Hogwarts. Como diz o título de um capítulo do último livro, Magic is Might. E quem tem poder, é claro, quer cada vez mais dinheiro.

18.7.07

Cinema e tolerância - o que a França tem a ensinar sobre

Mapear a forma como a beleza é vista em diferentes países. Esta foi a tarefa proposta a duas turmas de Teoria da Imagem no último semestre na PUC. O resultado da pesquisa e das entrevistas será transformado em um programa especial produzido pela TV da faculdade e transmitido pelo Canal Futura. O país que eu e a Clara, minha parceira nesse e em vários outros trabalhos puquianos, ficamos responsáveis por mapear foi a França. Para isso, escolhemos três manisfestações culturais daquele país - a culinária, a gastronomia e a arquitetura - para, a partir delas, tentar chegar a uma resposta. Postei abaixo a entrevista que fiz com o jornalista francês Laurent Dubois, ex-colaborador da famosíssima Cahiers du Cinéma. Figura simpática e tipicamente francesa, Laurent rendeu uma boa entrevista em que falou sobre tolerância, respeito e, é claro, cinema. Espero que gostem.

Cinema e tolerância - o que a França tem a ensinar sobre

Um colecionador de cartazes do cinema brasileiro. Radicado há sete anos no Brasil, em missão do Ministério das Relações Exteriores francês, Laurent Dubois foi colaborador da famosa revista francesa de cinema Cahiers du Cinema e atualmente contribui para divulgar no exterior o cinema brasileiro. Ao longo dessa simpática entrevista sobre o que é beleza para a França, em várias expressões culturais como a arquitetura e a culinária, mas principalmente no cinema, Laurent falou sobre o cinema francês e a influência direta que a França exerce em todo o mundo, ao produzir filmes em parceria com vários países. Explicou porque vê os Direitos Humanos como o que há de mais belo na França e afirmou que em sete anos de Brasil, às vezes se sente mais brasileiro do que francês.

- Para você, o que é beleza?/ o que considera beleza?
É difícil responder... (risos) O conceito de beleza é ao mesmo tempo muito concreto e muito abstrato... Acho que beleza é um ideal que o ser humano persegue, um ponto a que ele quer chegar, sempre.

- Acha que beleza tem a ver com a França?
Tem a ver com o mundo, não com a França especificamente. É um conceito universal. Cada cultura tem seus critérios próprios do que é belo. Não se pode dizer que beleza tem a ver diretamente com a França.

- O que considera mais belo na cultura francesa?
Sem dúvida, os Direitos Humanos. Liberdade, Fraternidade, Igualdade são conceitos que nasceram na França, com Montesquieu, Voltaire, Rousseau. Por mais que essas noções tenham tido outras interpretações em outras culturas, foi a França que as definiu de forma abrangente e as empreendeu na prática com a Revolução Francesa. A França tem uma noção muito grande da importância de ajudar aos outros. Isso é muito especial.

- Como francês, você poderia dizer que isso é o que lhe dá mais orgulho do seu país?
Com certeza. A preocupação francesa com os direitos humanos é muito especial. O que me dá mais orgulho é isso. E não é algo tão valorizado dentro da França, pelos franceses. É um país muito crítico consigo, que muitas vezes não reconhece seus próprios valores, suas próprias qualidades.

- Há algo que você considere belo que foi transmitido pelos seus avós/ pais? Você discorda de algo que eles consideram belo? Por quê?
Essa coisa da tolerância é um valor muito bonito que eles me passaram, aquela coisa de aceitar os outros como são. Não discordo que coisas que eles consideram belas.

- Por que uma preocupação tão grande que os franceses têm com a elegância e a beleza de seus pratos? Por que a preocupação estética com a culinária?
Acho importante você fazer uma distinção entre culinária e gastronomia. Culinária é dia-a-dia, gastronomia não. Imitando a Rita Lee, podemos dizer que culinária é prosa, gastronomia é poesia. Gastronomia é arte, não é só comércio. Arte de viver e comer. O francês se preocupa muito com isso, afinal, se come com os olhos.

- Você percebe no seu dia-a-dia essa preocupação com a harmonia estética da comida da sua casa? Mesmo depois de ter chegado ao Brasil?
Percebo, principalmente com convidados. Um brasileiro que chegue a casa de um francês e não seja recebido com um jantar com traços da gastronomia francesa pode até ficar sentido. As pessoas gostam e eu faço para agradar mesmo.

- A França é conhecida mundialmente pela preservação de seu patrimônio histórico. Qual sensação você, como francês, tem ao, numa cidade como Paris, por exemplo, deparar-se com construções que traduzem diferentes momentos culturais de seu povo, de sua cultura?
É emocionante. Tudo é muito bonito, a influência romana. Acho que esse contato com diferentes épocas da história e a valorização que a França dá a isso é uma forma de lembrar o quanto nós somos efêmeros. Tem muito a ver com aquilo que falei sobre tolerância. Para nós, franceses, preservar o passado é lembrar que não somos eternos. É uma forma de relativizar nossa passagem pela Terra. Lembrar que já existiu um passado e, com isso, sabermos que vai existir um futuro.

- Pra você, onde está a beleza no cinema francês?
No pioneirismo. A França é a pátria oficial do nascimento da sétima arte. Existe uma tradição no cinema francês na experimentação, sempre houve uma noção de arte muito forte. Para o cinema francês, a arte é mais importante do que a indústria. Para você ter uma idéia, 50% dos filmes visto na França devem ser franceses. Fora isso, exercemos também no cinema essa coisa da tolerância, do respeito a outros povos. A França talvez seja o único país do mundo em que parte dos impostos pagos pelos cidadãos é destinada a ajudar financeiramente as produções culturais de outros países. A França produz filmes em vários países do mundo, inclusive no Brasil.

- Interessante essa sua visão sobre o cinema francês. O diretor Jean-Jacques Annaud, em uma entrevista para a Label France, em 1995, na comemoração dos cem anos do surgimento do cinema, disse que o cinema francês, ao contrário do americano, faz filmes para Paris, desprezando o resto do mundo. Para ele, o cinema de hoje é uma arte global e, segundo ele, não se pode mais fazer filmes para mercados do tamanho do da França, que representa no máximo 4% do mercado mundial. O que você acha dessa opinião de Annaud?
Não, não, não. Esta é uma visão polêmica do Annaud. Ele é um diretor que fez carreira internacional, premiado com um Oscar – que nem é tão valorizado dentro da França – e que é conhecido por esta visão. Poderíamos dizer que todo ano, a cada filme que a França ajuda a produzir, tem um quê do cinema francês. Falando de Brasil, devemos lembrar de Central do Brasil. É um filme de arte e do grande público, que conseguiu unir as duas coisas, como nós, franceses, conseguimos fazer. A França ajuda muito nesse sentido. O Brasil deveria fazer mais filmes assim. Central do Brasil e Cidade de Deus são dois filmes que fizeram muito sucesso no exterior e muito sucesso de público e que tiveram apoio francês na produção.

- Você é conhecido por ter uma coleção de cartazes de filmes brasileiros. Como surgiu seu interesse por cinema brasileiro? Foi antes de vir morar aqui, há sete anos?
Na verdade, não. Meu interesse pelo cinema brasileiro começou quando cheguei aqui. Temos que ser sinceros em admitir que o cinema brasileiro nunca teve muita repercussão no exterior. Conhecia, é claro, Deus e o Diabo (na Terra do Sol), de Rocha (Glauber), mas não tinha me impressionado mais do que outros grandes filmes de outros países. Conhecia pouco mesmo. Quando vim morar aqui, com o contato com artistas e pessoas do cinema brasileiro, começou meu interesse. Hoje, estou escrevendo um livro sobre cinema brasileiro.

- Existem características estéticas parecidas entre os cinemas francês e brasileiro, na sua opinião?
Sim, no que se refere à experimentação, à alegoria. O cinema brasileiro deveria fazer mais isso. Imitar menos o cinema europeu e o cinema americano e criar mais. Ser mais alegórico, mais metafórico. Acho que um bom exemplo disso que eu estou falando é o primeiro filme do diretor Heitor Dhalia, Nina. É inventivo como o bom cinema brasileiro e ao mesmo tempo internacional.

- O que mais o impressionou em termos de beleza ao chegar aqui? Causou estranheza, emoção, curiosidade - que tipo de sentimento?
O Rio, a sua beleza geográfica. A chegada de avião é inesquecível. O Rio é maravilhoso. Aqui, a natureza ainda existe, apesar da loucura do ser humano. A natureza aqui é tão forte que supera a loucura do homem, da destruição imobiliária. Na Barra e no Recreio, cada dia o Rio é mais destruído, mas acho que a natureza, aqui, ainda é mais forte que o homem. É diferente de São Paulo, que já está toda destruída.

- O que é diferente no Brasil e na França no que se refere à beleza? A beleza brasileira é uma beleza mais do dia-a-dia, enquanto na França é uma beleza mais atemporal. O brasileiro se preocupa muito com o presente, o francês com o passado e com o futuro. Acho que esse contraste entre efemeridade e atemporalidade é perfeito. Aqui, a beleza está mais no cotidiano.

- De que você sente mais falta no Brasil? Por quê? Como faz para suprir?
Como fico pouco tempo sem ir à França (nunca passo mais de 4 meses sem visitar o país), não chego a sentir falta de nada, a não ser a família. Nesses vinte anos que moro fora da França e conheço diferentes países do mundo, sempre procuro coisas diferentes. Viajo para me encontrar com o diferente.

- Identifica aqui no Rio / no Brasil coisas que lembram a beleza da França?
Sim, os Direitos Humanos, como disse, mas no povo, não na estrutura social. Diria que a estrutura popular possui essa noção de tolerância. O povo brasileiro é mais tolerante do que a burguesia e a elite, como disse o Cacá Diegues numa entrevista. O povo, não a burguesia e a elite, são um símbolo físico dessa tolerância, dessa solidariedade.

- Na França, você também percebe essa diferença entre as classes sociais no que se refere à tolerância, aos direitos humanos?
Na França, também tem isso. Não sou muito indicado para falar sobre a França atual, porque há vinte anos estou afastado daquela realidade, mas, pelo que sei, a França hoje vive uma situação nova, com todo esse problema das periferias. Desacordo entre as classes existe, queiramos ou não. A minha visão da França é antiga, de 20 anos atrás, então posso estar equivocado. Hoje acho que conheço mais a realidade brasileira do que a francesa.

- Se fosse feito um concurso para escolher o que existe de mais belo no Brasil o que seria? E no brasileiro?
Alegria do povo. Esse povo que canta sempre, dança sempre, beija sempre. É um povo com grande força de viver, que precisa se abraçar sempre, trocar calor humano sempre.

- Você diria então que isso que chamou de alegria do povo é uma identidade do Brasil como nação e como povo? Do Brasil e do brasileiro?
Sim. O brasileiro é muito o presente, por isso gosto tanto daqui. O francês, de forma geral, sempre pensa muito no passado e no presente. Eu valorizo mais isso, essa coisa do aqui e agora, do momento. Acho que já sou mais brasileiro que francês. Isso é fantástico no Brasil.

16.7.07

O Mistério da Felicidade

Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

- Engoli uma tampa de coca-cola.

Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos. Convoquei imediatamente a família.

- Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
- Tá. Você já mandou buscar o bolo para cantarmos o Parabéns?

Pedro, meu marido, pai da engolidora de tampinhas, tinha o poder de me irritar com seu jeito desatento.

- Pedro, acorda ! A Vânia tá dizendo que a Leonora ENGOLIU uma tampa de coca-cola.

Minha cunhada, Sílvia, não tinha mais paciência com o irmão e gritava para ver se surtia efeito.

- Engoliu? Mas como? Pela boca? – perguntava Pedro, passando dos limites. Pelo visto nosso divórcio seria inevitável.
- Pedro, você é meu irmão, mas é um idiota. Se ela en-go-liu, é claro que foi pela boca, né ? – Sílvia estava nervosa.
- Ggggente, nnnnão sssseria bom nnnós irmos pro hospppital ?

Meu cunhado, Gaspar, irmão mais novo do meu marido, era gago. Isso. Você leu certo. Minha amadíssima sogra nunca soube fazer filhos. Um era lerdo (o meu marido), a outra, destemperada, e o terceiro era gago.

- E vamos parar a festa da menina ? Coitadinha. Falta cantar o Parabéns – Pedro ainda não tinha entendido a gravidade da situação.
- Será que nenhum dos pais dessa criançada é médico ? – eu, a única voz lúcida naquele verdadeiro zoológico, tive que me pronunciar.
- Vou pegar o microfone e perguntar.

Silvia foi para perto do aparelho de som e parou a música. Todas as crianças, pais, professores, garçons e palhaços da festa olharam para ela.

- Atenção, todos! Minha sobrinha, a aniversariante, corre risco de vida. Vocês, crianças, podem não ter mais a doce Leonora como coleguinha. Repito: Leonora não está bem. Agora, gostaria que vocês mantivessem a calma. Existe algum médico entre nós? Repito...

Ela não conseguiu repetir. O caos já estava instalado. As crianças, sem exceção, começaram a chorar. Algumas até gritavam e corriam para o colo de seus pais. Um senhor levantou a mão:

- Sou médico. Onde está a menina ?
- Ali, perto daquela senhora de vermelho.

A senhora de vermelho era eu. A menina que corria risco de vida era minha filha. E a louca que tinha estragado a festa era a minha cunhada.

- O que houve com a menina ?
- Engggoliu uma tampppa de cccoca-cola – Gaspar demorava quase duas horas para falar cinco palavras.
- De plástico ou de aço? – a praticidade dos médicos me irritava.
- Minha filhotinha, foi de plástico ou de metal a tampinhazinha que você engoliu ? – Pedro sempre falou com Leonora como se ela fosse uma idiota. Na verdade, o idiota era ele.

Leonora olhou para cima, olhou para baixo e, finalmente, olhou para trás e soltou uma risada para um dos palhaços da festa contratado para animar as crianças. Ele, então, correu para perto de Leonora gritando:

- Já ganhou, já ganhou, já ganhou!
- Ganhou o quê, seu imbecil ? – Sílvia, minha cunhada, já perdendo a compostura.
- Calma, Sílvia, deixa o moço falar. – eu ponderava.
- Eu dei uma missão para as crianças! Hahaha! Quem contasse a melhor mentira para os pais, ganharia três pontos na nossa gincana. Hahaha!

Nem preciso dizer que o palhaço com sua imensa criatividade para elaborar brincadeiras altamente pedagógicas quase foi linchado pelos pais, que, irados, se despediam.

Naquela noite, parei para analisar minha vida. Era casada com um idiota, que tinha uma irmã louca e outro gago; minha filha era uma menina de seis anos fria, manipuladora e mentirosa; e eu acreditava que era feliz. Como podia ser feliz naquele pardieiro?

Decifrei o mistério da felicidade quando, duas semanas depois, fugi com aquele que me ensinou a não levar a vida tão a sério: Teobaldo, o palhaço.

10.4.07

Ricardinho e as algemas do prazer

Ricardinho, o aprendiz no trato com as mulheres, apresenta;

Ricardinho e as algemas do prazer

Ricardinho, sempre tão esperto, só percebeu que tinha acordado quando abriu os olhos. Fechou rapidamente, porque não tinha certeza do que estava vendo. Na dúvida, melhor mantê-los fechados. Quando ela falou, Ricardinho viu que era verdade.

- Acorda, docinho, acorda!
- Que houve, amor? Que isso na sua mão?
- Vem, docinho, vem... Veste essa roupa sadomasô. Vem...
- Ir aonde, Mariana? Que horas são?

Ele pega o despertador na cabeceira.

- Mari, são quatro e meia da manhã. Hoje é domingo...
- Eu senti vontade, docinho. Vem, vem. Vem bater com esse chicote em mim, vem.
- Que chicote, amor? Você tomou ácido? Me deixa dormir.

Ela pega um chicote e bate com força nele.

- Aíiii!
- Safado! É assim que eu quero que você faça, safado.
- Tá louca, Mariana?
- Me bate, eu quero. Vem, me joga na parede, vem.
- Mari, pára com isso. Eu tô preocupado. Você me acorda no meio da madrugada para eu bater em você. Que tá acontecendo?
- Ai, Ricardinho, você não pode nem realizar a minha fantasia. Que saco!
- Vamos conversar, Mari.
- Conversar? Você quer discutir relação na hora que eu tô subindo pelas paredes? Eu quero outra coisa. Mas isso tô vendo que você não dá conta...

Ricardinho olhou por alguns segundos para o chão do quarto, numa mistura de ego atingido e reflexão. Tinha que fazer alguma coisa. Nenhuma mulher não podia pensar isso dele.

- E aí, Ricardinho? Aproveita, amor, vem, me bate!
- Então, se prepara, cachorra!

Fez uma cara de instinto selvagem, ficou em pé na cama, pegou o chicote e segurou com força os cabelos da namorada.

- Isso, vem, vem!

Ricardinho deu de leve com o chicote na perna da pobre moça, que fez cara de excitação. A verdade é que, dentro de Ricadinho, aquilo doía muito mais. Mas também despertava uma sensação estranha.

- Gostou?
- Docinho, de leve assim não tem graça. Tem que ser com força, que nem homem.
- Que nem homem? - Ricardinho se irritou. Ninguém podia duvidar disso.

Levantou com força o chicote no ar, como se afiasse uma faca, e bateu. Bateu, bateu, bateu. Não precisava mais fingir a cara de instinto selvagem.

- Aiiiii! Você ficou maluco? Seu louco!
- Mas foi você que pediu, Mari.
- Pedi, mas não era pra ser assim, com tanta força. Tá achando que eu sou o quê? Bruto! Covarde!
- Mari, eu nã...
- Você não é o caramba. Olha aqui... Vai ficar roxo! Eu vou ficar com a perna toda marcada, Ricardo. Minha perna vai ficar cheia de hematoma. Pra sempre E por culpa sua! Seu covarde!
- Mas Mari, era você que queria, lembra?
- Eu te provoquei, mas achei que você ia ter bom senso. Você se aproveitou da circunstância. Você me deixou marcada pelo resto da vida.

Agora, a pobre moça já chorava. Ele tentou enxugar o rosto da namorada, mas ela empurrou sua mão e saiu correndo, como uma presa acuada, e discou para a polícia.

- Não toca em mim! Nunca mais! Seu monstro! Desgraçado!

***

Final da tarde, carceragem da 14ª DP.

- Ricardo Almeida Júnior, visita!
- Que que o mané fez, Silva?
- Espancou a mulé. A coitada ligou pra cá chorando que nem criança.
- Como é que é? Tu bateu em mulé, rapá?

Os outros 89 presos já faziam um círculo em volta de Ricardinho, quando o carcereiro entrou e evitou a tragédia.

- A mulé tá aí fora. Quer te vê.

Ricardinho estava desolado. Sempre tão carinhoso com as mulheres, o rapaz sabia que tinha passado dos limites. Devia ser mesmo um crápula. Não sabia satisfazer a mulher da sua vida e, quando tentou, foi bruto, agressivo, violento, covarde, desumano. Ele era mesmo um homem sem caráter. Aliás, nem homem devia ser.

Ricardinho não conseguiu encarar a namorada. Só olhava pro chão, com a algema apertando os pulsos que quase sangravam.

- Você tem alguma coisa pra me dizer, Ricardo?

Num lance de desespero, Ricardinho se jogou aos pés de sua amada e pediu perdão, soluçando. Mari não resistiu à tamanha prova de amor.

- Você errou muito, Ricardinho. Mas meu coração mole não me deixa...

Levantando, Ricardinho calou sua amada com um beijo. Um beijo seco, cheio de culpa e arrependimento. Outra lágrima escorreu por seu rosto e salgou aquele pequeno beijo que selava o amor do casal. E com o fim de mais este triste capítulo da deprimente vida amorosa de nosso herói, também termina este meloso parágrafo, que, de tão meloso, quase estraga o teclado.

20.2.07

Três vezes Chico

Eu não fui ao show do Chico. Cinco fins de semana, mais de vinte shows aqui no Rio e eu dei esse mole. Estava sem dinheiro para comprar os ingressos mais caros e sem tempo para conseguir comprar os mais baratos, vendidos exclusivamente no dia do show, uma hora antes.

Estou com tanta raiva de não ter ido que resolvi, numa tentativa de reconciliação com meu maior ídolo, fazer um post exclusivamente para falar disso. Adoro Chico Buarque, como já disse há tempos aqui neste blog quando comentei sobre parte do seu último CD. Para mim, ele é não só o melhor compositor brasileiro, nas letras e nas músicas, como um dos cérebros mais lúcidos que o Brasil já produziu. Tenho tendência a concordar com 99,99% do que ele diz e pensa. Quando discordo, a falta de lucidez é minha.

Levo Chico Buarque o tempo todo no MP3 player e o ouço pelo menos umas três vezes na semana. Sua obra pode ser ouvida durante toda a vida, em diferentes momentos. Naqueles de paixonite aguda, lá estão as inúmeras músicas de amor e as declarações para mulheres que ele insiste não existirem, como as Carolinas, Ritas, Renatas Marias, além das mulheres de Atenas ou as pobres Genis. Para aqueles momentos de revolta com o mundo injusto em que vivemos, a veia política de Chico, sempre pulsante, chega à sua música e faz clássicos, como Apesar de você, Partido Alto, Brejo da cruz e a lúdica Outros sonhos, de safra recente. Chico também consegue falar das coisas do dia-a-dia, como em Cotidiano, Meu caro amigo e Bye bye, Brasil, com a mesma desenvoltura de quem percebe as mudanças históricas que se processam a cada momento, todo dia, e que passam longe dos olhos dos meros mortais, como na inesquecível Vai passar. Ele é um excelente sambista, mostrando que o samba supera qualquer classe: pode ser tão bom no morro quanto no asfalto, feito por ricos ou por pobres. Prova disso são sambas deliciosos como Morena de Angola, Feijoada Completa e Meu Guri. Uma das músicas que mais me faz lembrar meu pai também é do Chico: João e Maria, em que, a partir do universo fantasioso da infância, ele uma das mais bonitas canções brasileiras.

Também existem outras músicas que são indispensáveis em qualquer seleção: A banda, um de seus maiores clássicos, Olhos nos olhos, O Cio da terra, Gente humilde - tema de outro post meu -, Cálice (com Gilberto Gil), Bom conselho, Maninha, Noite dos mascarados, Quem te viu, quem te vê, Morena dos olhos d'água, Construção, Roda viva. Tudo isso sem falar das parcerias históricas com Edu Lobo (mais pros anos 80, rendendo pérolas como Beatriz), Vinícius (na já citada Gente humilde, Valsinha, e com Toquinho em Samba de Orly), Tom Jobim (rendendo a maravilhosa Sabiá, a singela Pois é e a nostálgica Anos dourados, composta em 1986, ano que nasci) e com Caetano Veloso, que renderam momentos inesquecíveis para a TV brasileira em músicas como Vai levando (Mesmo com toda a fama/ Com toda a Brahma/ Com toda a cama/ Com toda a lama/ A gente vai levando). Não posso esquecer também das compostas especialmente para o teatro, como História de uma gata, as três O que será, além de outras já citadas.

Vamos então às outras letras escritas por Chico. Do teatro, Gota d'água está me encarando na prateleira neste exato momento aguardando sua vez na longa fila de futuros livros. Sempre ouvi, no entanto, que o Chico dramaturgo e o Chico escritor não chegam perto do compositor. Ainda assim pesquisei algumas coisas para enriquecer esse post no que se refere à sua obra teatral.

Sobre Gota d'água, adaptação do clássico Medéia, de Eurípedes, para os dias atuais, o crítico Yan Michalski falou: "Não conheço em toda a dramaturgia nacional qualquer precedente de uma linguagem como esta, que combine a musicalidade, a beleza e a dignidade da poesia dramática clássica com um clima verbal de indiscutível contemporaneidade." Na temática de Gota d'água, Chico e Paulo Pontes também conseguiram, segundo Michaslki, manter o argumento da obra de mais de 2400 anos e, ao mesmo tempo, fazer "uma obra intensamente pessoal e original."

Já com Roda Viva, espetáculo de estréia de Chico, levado aos palcos anos antes por Zé Celso Martinez Correia, Yan Michalski foi menos bondoso: "O texto de Chico Buarque de Holanda está longe de ser uma obra-prima ou sequer uma peça destinada a ficar como um marco de alguma importância na dramaturgia brasileira." Ainda assim, em sua crítica, Michalski ressalta que a peça significava uma "série de graves acusações à engrenagem comercial da televisão", ao contar "como um ídolo é artificialmente fabricado, impiedosamente explorado e finalmente jogado fora". O mais interessante, para o crítico, era essa acusação vir de um ídolo que, apesar de muito diferente do personagem da peça, também se servira do mecanismo que agora denunciava, mostrando seu imenso senso crítico.

Ficarei devendo para um outro post uma análise de Budapeste, baseada nas aulas e discussões feitas por Sérgio Mota, meu professor de Literatura na PUC, que disseca o livro de Chico semestralmente para suas turmas. Com talento e precisão incríveis, as análises do Sérgio tornam a experiência de leitura de Budapeste ainda mais interessante. Prometo também para o futuro uma lista de livros, CDs e DVDs sobre o Chico que são indispensáveis para verdadeiros fãs que, diferentes de mim, não faltam a um show sequer de um dos maiores cérebros que essa terra já produziu. Fico por aqui. Que Chico olhe por nós.

14.1.07

Teatro e história: mistura que dá samba



Grandiosidade. Não existe outra palavra para descrever a nova peça de Miguel Falabella, Império, que acabo de assistir no Carlos Gomes, aqui no Rio. A história se passa no século XIX e tem como protagonista a família real luso-brasileira nos últimos dias antes do retorno para Portugal, após a chegada em 1808. Já retratadas em livros, na televisão (Quinto dos Infernos, minissérie global de Carlos Lombardi), e no cinema (Carlota Joaquina, de Carla Camuratti), as aventuras da nossa Coroa chegam agora aos palcos, sob a forma de um musical de dois atos.

O texto, a música, as letras, a iluminação, os cenários, o figurino, o elenco de 22 atores e a lotação dos 685 lugares do teatro só fazem reafirmar aquilo que todos já sabem: Miguel Falabella é um craque. Talvez um dos nossos mais multimídias artistas, ele mostra-se agora também um primoroso letrista. Os números, todos muito bem feitos, têm o mérito de levar a ação adiante, coisa rara em musicais, e as coreografias ajudam a dar o ar Broadway tão difícil, para o bem e para o mal, de vermos nos palcos brasileiros. Destaque, na minha humilde opinião, para três números: um dos primeiros, em que todos, juntos, cantam "Eu nunca vi coisa tão linda"; para "Aonde eu durmo, senhor" cantado pelos dois escravos, e para a cena da Princesa Leopoldina e a amante de D. Pedro, Noemi, que cantam a inteligente "Na cama de um homem".

No elenco, destaca-se Stella Miranda, atriz craque em fazer humor. Como bem disse Barbara Heliodora no Globo, o papel ajuda Stella a roubar a cena. No cinema, Marieta Severo já tinha tido um desempenho magnífico e até Betty Lago o conseguiu na televisão. Carlota Joaquina é um prato cheio para toda boa atriz, primeiro por seu gênio e depois por sua relação com Dom João. Este, por sua vez, é muito bem defendido por Sandro Christopher, ator e barítono. Um dos grandes méritos da peça, também lembrado por Heliodora, é Dom João não ser retratado como costumeiramente se faz, ou seja, um mero comedor de coxas de galinha. Aqui, ele aparece como um marido que sofre com as traições de Carlota, mas a enfrenta quando necessário e é capaz de crueldades, nas suas palavras, "mais do rei do que do homem", como a de enviar para Pernambuco a amante grávida de D. Pedro.

Quanto à História, a peça me trouxe outras perspectivas. Em certo momento, Dom joão defende que, enquanto vários reis europeus, valentes e cheios de honra, permaneceram na Europa à espera de Napoleão, ele preferiu fugir para o Brasil e, por isso, foi o único a sobreviver ao corso sanguinário. Estaria aí a gênese do jeitinho?

A única crítica negativa que faço à peça é a necessidade da platéia ter um conhecimento prévio de História que, venhamos e convenhamos, é difícil no Brasil. O papel de narrador, lembrou minha tia que estava comigo e minha mãe, ajuda nesse ponto. Na história, quem cumpre essa função é o pintor Debret, que abre a peça numa conversa em Paris, com seu ajudante, anos e anos mais tarde. Lembrando dos maravilhosos anos que viveu no Rio de Janeiro, é ele quem conta os causos vividos por aqueles personagens. O problema é que Debret só aparece três vezes durante a peça, o que dificulta a compreensão de um espectador menos familiarizado com o enredo histórico.

Stella Miranda, como Carlota Joaquina

Ao longo da peça, não me saía da cabeça como deve ser difícil ensaiar um musical com 22 atores. E o pior: existem vários números com todos juntos, ensemble, como se diz. Fiz um ou dois anos de teatro quando era criança e sei como é difícil ensaiar uma cena com três, quatro personagens. Que dirá com 22! Mais um motivo para reverenciarmos o polivalente Falabella, que escreveu o texto e as letras, além de dirigir o espetáculo.

Programa mais do que recomendando, Império está em cartaz no Carlos Gomes sem data marcada para se despedir. Por 25 reais, preço relativamente barato se comparado aos 100 reais cobrados por Mademoiselle Chanel, o musical é diversão na certa. Pode confiar.

13.1.07

Logo ali, na Piauí


Aí vai o primeiro Link não patrocinado, seção que inauguro formalmente hoje no meu queridíssimo blog. E quem tem a honra de estrear neste disputadíssimo espaço é a revista Piauí.

Lançada pelo cineasta João Moreira Salles e pelo editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, a revista Piauí chegou em outubro de 2006 já superando expectativas. A primeira edição, com tiragem inicial de 70 mil exemplares, fez tanto sucesso que foi necessária uma segunda impressão para suprir a demanda das praças Rio e São Paulo. O diferencial da revista explica seu sucesso: não é uma revista de cultura, tampouco uma revista política ou uma publicação de debates intelectualizantes. Sem colaboradores fixos, a condição para algum texto entrar nas páginas de Piauí é ser um bom texto, ser, nas palaras de Moreira Salles, uma história bem contada, com começo, meio e fim. E isso pode ser feito através de crônicas, contos, reportagens, quadrinhos, fotos, ou qualquer outra forma de expressão. Voltada para um público órfão de boas revistas, Piauí escapa da superficialidade corrente na grande imprensa e na maioria das semanais brasileiras. Com o elenco de craques que vêm escrevendo em suas páginas (Ítalo Calvino, Ivan Lessa, Salman Rushdie), a revista de João Moreira Salles promete ter vida longa, coisa rara para quem decide ousar no meio editorial brasileiro.

No site, há bastante coisa. Algumas seções da revista estão gratuitamente no site, as edições antigas estão quase completas. Tem muita, muita coisa boa. Vale à pena perder algumas horas no site. Mas o melhor mesmo é a opção de assinar a revista por módicos 15 reais em cinco vezes, que você pode fazer clicando no link abaixo. Aproveite.

Ah, vale ressaltar que, apesar da assinatura ser via Editora Abril, a revista não tem nada a ver com a empresa dos Civita. Pelo contrário. A proposta de Piauí é oposta ao manifesto semanal à superficialidade que é a Veja.

Clique aqui

11.1.07

A campanha já começou


A capa da Veja São Paulo dessa semana não deixa dúvidas: a imprensa já está empenhada para a próxima campanha presidencial, em 2010. Na matéria de capa sobre José Serra, a revista descreve o novo governador com um intelectual, colecionador de DVDs e leitor voraz, além das já conhecidas características (trabalhador, pouco dorminhoco e portador de um leve mau-humor com a incapacidade administrativa de seus assessores). Dócil com as crianças e grande realizador como ministro da Saúde, segundo a revista, Serra agora tem dez pontos a cumprir para se tornar presidente do Brasil em 2011. Um deles, o ex-ministro de FH nem precisa cumprir: ele já é o candidato favorito de dez entre dez barões da mídia.

Para falarmos de assuntos mais amenos do que as capas da Veja, vamos a uma recomedación de Guillermito aqui. Em vez de Big Brother, assistam Truffaut O conselho pode parecer pedante, até metido a intelectual, mas é verdadeiro. Acabou a novela (se possível, veja antes da novela), nada de assistir ao Big Brother VII: assista Truffaut. Nunca tinha visto nenhum filme do cineasta, então aluguei Fahreinheit 451 semana passada, seu mais famoso filme (e que deu origem ao nome do filme de Michael Moore, Fahreinheit 9/11). Deixei para ver na véspera da devolução, coincidentemente o mesmo dia de estréia da nova edição do reality show da Globo. Feliz, muito feliz, coincidência. O filme, sem dúvida, é um dos melhores que assisti na vida. A história ode ser descrita como uma ode à força do livro, ao poder da leitura de nos fazer pensar e refletir sobre a realidade circundante. Pode também ser descrito como uma crítica ferrenha à natureza alienante da televisão. Pode ainda ser um retrato de um futuro em que a mão forte do Estado tirou do indivíduo até mesmo o direito de livre pensamento, o que aproxima a obra do livro de George Orwell, 1984. O mais interessante é eu ter visto o filme no mesmo dia que o Big Brother reestreou. Um filme que me fez pensar um trilhão de coisas versus um programa que só exibe peitos e as frases vazias de Pedro Bial. Bom, por mais que eu goste de peitos, não pretendo assistir novamente ao Big Brother, coisa que já fiz e de que não me arrependo. Tomei uma decisão: vou alugar toda a obra do Truffaut. Garanto que o meu paredão vai ser muito mais interessante.

Besos