30.7.07

O retrato do início do caos

A realidade vivida pelo Rio de Janeiro do início da década de 90 talvez fosse mais chocante do que a atual. Começavam a acontecer os primeiros crimes bárbaros que hoje, infelizmente, já se tornaram parte do nosso cotidiano. A chacina da Candelária, a chacina de Vigário Geral, os primeiros grandes arrastões nas praias da Zona Sul. Ao contrário desta bárbara e também sangrenta primeira década dos anos 2000, quem viveu esta explosão de violência dos anos 90 vinha de tempos um pouco mais tranqüilos. A escalada da violência nos centros urbanos brasileiros, embora iniciada nas décadas anteriores (seria falacioso dizer que os anos 80 foram tempos tranqüilos), só conheceu sua explosão de fato na última década do século. E é um panorama deste Rio de Janeiro do início dos anos 90 que Zuenir Ventura traça em seu Cidade Partida, lançado em 1994, após dez meses de convívio do autor com a dura realidade de uma das maiores favelas da cidade, a de Vigário Geral, poucos meses depois da brutal chacina que a tornaria famosa em todo o mundo.

Mais que um simples panorama, Zuenir na verdade mostra as tentativas desta cidade partida entre a favela e o asfalto de se encontrar, de se tornar uma só, como os bastidores das reuniões para a criação do Viva Rio, ONG criada no mesmo ano em que ocorreu a chacina, com o objetivo de pressionar as autoridades e criar projetos de políticas públicas para atuar em diferentes comunidades pobres do Rio. Tentativas como essa mostram que nasceu ali a consciência de grande parte da sociedade de que a solução para essa divisão social a que o Rio estava submetido era a incorporação da massa de excluídos e não o aprofundamento dessa separação. Zuenir lembra no livro que, após o extermínio de meninos de rua na chacina da Candelária, surgiu em parte da sociedade um perverso raciocínio de apoio a este tipo de ação de caráter quase fascista. A ação da sociedade civil criando entidades como o Viva Rio foi fundamental para que este tipo de raciocínio não crescesse. Atuante na vida cultural e social carioca, Zuenir consegue transitar com grande talento pelos dois mundos. Fala com o então governador Nilo Batista com a mesma desenvoltura que entrevista o chefe do tráfico Flávio Negão. Mostra os bastidores do poder e do empresariado que engatinhava no que hoje se chama responsabilidade social com o mesmo talento que mostra o submundo do crime de Vigário Geral.

Mas o maior mérito de Cidade Partida é, sem dúvida, apresentar um outro lado da favela de Vigário Geral, e, com isso, de todas as favelas brasileiras. Um lado bem distante do que é mostrado na mídia: enquanto as matérias de jornais e da TV apenas descrevem como foram as operações da polícia e a quantidade de baleados e presos num último confronto entre traficantes e policiais, Zuenir vai mais fundo. Apresenta personagens, pessoas de verdade, e mostra a humanidade que há por trás, por exemplo, do chefe do tráfico da favela. Mostra que aquele homem, destituído de sentimentos e valores para nós, é uma pessoa, que possui crenças e uma visão de mundo ao mesmo tempo brutal e infantil. Mostra também que a favela é um tecido social de múltiplas camadas, coisa que a mídia e a sociedade do asfalto esquecem muitas vezes. Neste tecido, há o drama do morador, castigado mesmo que inocente, sofrendo com a opressão policial e a dependência em relação a uma autoridade – o traficante – que, já naquele início de década de 90, se configurava como um Estado paralelo, bem antes do termo entrar na ordem do dia. O irmão do chefe do tráfico Flávio Negão, Djalma, representa bem esse papel, sofrendo a ação na maioria das vezes violenta da polícia mesmo sem ter nenhum envolvimento com o crime. Também há figuras geralmente não associadas com o ambiente da favela, como o sociólogo Caio Ferraz, agitador cultural de Vigário Geral, um intelectual nascido lá e companheiro de infância do então chefe do tráfico, Flávio Negão e de seu irmão, Djalma. Zuenir observa como a complexa realidade social brasileira consegue forjar dentro de uma mesma comunidade três pessoas tão diferentes, com modos de vida e visões de mudo tão distintas, como Djalma, Flávio e Caio. Crescidos juntos, com as mesmas escassas oportunidades, o primeiro é um simples trabalhador oprimido, o segundo encarna o poderoso chefe local, temido por todos, e o terceiro é um sociólogo que orgulha aos seus pares ao levar à frente o projeto da Casa da Paz, apoiado pelo Viva Rio.

A complexidade dessa realidade não é, em nenhum momento, simplificada por Zuenir. A primeira parte do livro é dedicada a mostrar que já os anos dourados possuíam partes nem tão douradas assim, seja na violência amadora de bandidos como Cara de Cavalo e Mineirinho, seja na violência quase institucionalizada com o Esquadrão da Morte do general Amauri Kruel. Entre esta fase, sem dúvida mais tranqüila, e a atual, há uma lacuna no livro. Ao falar dos anos 50 e parte dos 60, Zuenir quis mostrar como é histórica a divisão da cidade. Não contar, no entanto, como a violência se alastrou durante os anos 60, 70 e 80, tira a possibilidade do leitor ver como essa divisão se aprofundou e deu forma a essa sociedade doente que entrou em colapso nos anos 90 e 2000. Ter uma visão do todo permitiria que o leitor pudesse identificar razões e raízes dessa crise. Conhecê-las, todos sabemos, é o primeiro passo para contê-las.

Passados 13 anos do lançamento do livro de Zuenir, temos um Rio de Janeiro completamente diferente mas ao mesmo tempo muito parecido, bem ao estilo paradoxal de ser de que a cidade tanto se orgulha. A violência é ainda mais brutal do que aquela retratada no início dos anos 90 – basta lembrarmos da morte cruel de que o menino João Hélio foi vítima no início deste ano. A solução também parece longe de estar próxima, mesmo que existam políticos aparentemente munidos de boa vontade para fazê-lo. Aumentaram também, na mesma proporção do recrudescimento da violência, as iniciativas da sociedade civil para pôr fim ao título de cidade partida. ONGs, OSCIPs e projetos voltados para o terceiro setor proliferam a cada mês, assim como cresce a preocupação das empresas com os problemas sociais locais e nacionais. As duas cidades vão se aproximando, lentamente, mas vão. A sociedade já compreendeu a importância de fazer esta aproximação. Compreendeu também que só com ela teremos a tão sonhada paz social. No Rio e, não esquecendo a frase de Arnaldo Jabor que abre o livro (“O Rio é o trailer do Brasil”), no Brasil.

28.7.07

Magic is Might

Dia 11 de julho, uma quarta-feira, os cinemas de todo o mundo foram invadidos por crianças, adolescentes e adultos vestindo longas capas verdes, óculos de aro remendados e uma leve cicatriz maquiada na testa. Outros, menos ousados, se limitaram a colocar um “discreto” chapéu em forma de cone, como os magos usam. Uma semana depois, dia 21, foi a vez das livrarias. Como é comum em estréias de seqüências de grandes sucessos do cinema cujos personagens têm nas roupas uma característica à parte, a estréia do quinto filme e do último livro de Harry Potter não foram diferentes. Essa mania, começada talvez pelos fãs da série Star Wars, que impunham longas roupas pretas de Darth Vader para ir às sessões dos filmes, foi repetida em vários outros filmes, principalmente naqueles voltados para o público infanto-juvenil.

A diferença dos pottermaníacos em relação aos fãs das outras séries de filmes de sucesso, a não ser talvez pelos fãs de Star Wars, é que esses homens e mulheres de diferentes idades e profissões não deixam a mania por Harry Potter de lado quando saem das salas de cinema ou quando terminam o livro. As dezenas de comunidades do Orkut dedicadas a Harry Potter, a seus personagens, à escritora JK Rowling e a temas conexos são um dado de que a febre por Harry Potter ultrapassa as páginas dos seis livros e quatro filmes já lançados. Nessas comunidades, existem tópicos em que os membros contam como foi dolorosa a leitura do sexto livro, em que um dos principais personagens da saga morre. Em todo o mundo, leitores anônimos e famosos, como o escritor Stephen King, vinham implorado para que Rowling não matasse Harry Potter no último livro, Harry Potter and the Deathly Hallows (provavelmente Harry Potter e as Relíquias da Morte, segundo a Rocco). Esta hipótese, para um pottermaníaco, seria drástica. Significaria que o personagem pelo qual ele dedicou possivelmente os últimos dez anos de seus momentos de lazer (para não dizer de vários momentos de sua vida) acabou, morreu.

Lançado em 1997, Harry Potter é, inegavelmente, um fenômeno literário mundial que não se restringe a faixas etárias. Inicialmente voltados apenas para o público infanto-juvenil, os livros de Harry Potter arrecadaram fãs de todas as idades, capazes de, como crianças e adolescentes, também colocarem suas indumentárias místicas para assistir aos lançamentos dos filmes. Vestem-se também, como dito anteriormente, fora da época de lançamento dos filmes. A comunidade do Orkut Encontros Potterianos prova isso. Nela, 1316 aficionados por Harry Potter se reúnem para marcar encontros de carne e osso. A foto da comunidade mostra várias pessoas, adolescentes e adultos, vestidos com as capas de mágico e segurando vassouras. A agenda da comunidade marca quando e onde serão os próximos encontros (São Paulo – SP, Santa Maria – RS, Campinas – SP, Rio de Janeiro – RJ, Americana – SP). Nos tópicos das comunidades, fica claro que aquilo há muito já deixou de ser uma simples comunhão de viciados no pequeno bruxo. Além de combinar encontros, eles combinam detalhadamente como será a programação, quais serão os temas discutidos, os “personagens” presentes, etc.

Mas o pequeno bruxo também é um fenômeno do consumo. Notícia divulgada esta semana afirma que o volume de negócios feitos com a marca Harry Potter beira os US$15 bilhões. Não é à toa: a lista de produtos licenciados pela marca Harry Potter é interminável. Uma simples busca no site de compras Submarino mostra as imensas possibilidades que um pottermaníaco pode ter para comprar. A procura pelas palavras Harry Potter remete a uma lista com 272 itens. A lista inclui todos os 6 livros já lançados, em diversas línguas; a pré-venda do sétimo e último livro, a ser lançado em julho; boxes com os DVDs dos quatro filmes já lançados; camisas de diversas cores e com estampas de vários personagens; casacos para proteger da chuva, com ou sem capuz; jogos para os videogames GameCub, Xbox e para computador; livros sobre Harry Potter, sobre a autora JK Rowling e até um livro de auto-ajuda para que pessoas que ficaram viciadas em Harry Potter aprenderem a lidar com o vício e a esperar pelo próximo livro e filme. Fora a Internet, também é fácil encontrar artigos de Harry Potter em lojas de brinquedos ou em lojas especializadas em quadrinhos, RPG, cards e semelhantes. No exterior, as possibilidades de consumo são ainda maiores, incluindo também chicletes com sabores estranhos, como os de pimenta consumidos pelos personagens dos livros, e até mesmo calcinhas com fotos dos personagens.

A autora JK Rowling, mulher mais rica do Reino Unido (mais rica, vale dizer, do que Elizabeth II), já disse que Harry Potter and the Deathly Hallows não será o último livro. Ainda vem por aí, ela só não sabe quando, a Enciclopédia Potteriana, um extenso livro com a biografia e histórias de personagens e criaturas que cruzaram os sete outros livros de Harry, mas com muito mais detalhes e recheado de acontecimentos que ocorreram depois que os personagens saíram de Hogwarts. Como diz o título de um capítulo do último livro, Magic is Might. E quem tem poder, é claro, quer cada vez mais dinheiro.

18.7.07

Cinema e tolerância - o que a França tem a ensinar sobre

Mapear a forma como a beleza é vista em diferentes países. Esta foi a tarefa proposta a duas turmas de Teoria da Imagem no último semestre na PUC. O resultado da pesquisa e das entrevistas será transformado em um programa especial produzido pela TV da faculdade e transmitido pelo Canal Futura. O país que eu e a Clara, minha parceira nesse e em vários outros trabalhos puquianos, ficamos responsáveis por mapear foi a França. Para isso, escolhemos três manisfestações culturais daquele país - a culinária, a gastronomia e a arquitetura - para, a partir delas, tentar chegar a uma resposta. Postei abaixo a entrevista que fiz com o jornalista francês Laurent Dubois, ex-colaborador da famosíssima Cahiers du Cinéma. Figura simpática e tipicamente francesa, Laurent rendeu uma boa entrevista em que falou sobre tolerância, respeito e, é claro, cinema. Espero que gostem.

Cinema e tolerância - o que a França tem a ensinar sobre

Um colecionador de cartazes do cinema brasileiro. Radicado há sete anos no Brasil, em missão do Ministério das Relações Exteriores francês, Laurent Dubois foi colaborador da famosa revista francesa de cinema Cahiers du Cinema e atualmente contribui para divulgar no exterior o cinema brasileiro. Ao longo dessa simpática entrevista sobre o que é beleza para a França, em várias expressões culturais como a arquitetura e a culinária, mas principalmente no cinema, Laurent falou sobre o cinema francês e a influência direta que a França exerce em todo o mundo, ao produzir filmes em parceria com vários países. Explicou porque vê os Direitos Humanos como o que há de mais belo na França e afirmou que em sete anos de Brasil, às vezes se sente mais brasileiro do que francês.

- Para você, o que é beleza?/ o que considera beleza?
É difícil responder... (risos) O conceito de beleza é ao mesmo tempo muito concreto e muito abstrato... Acho que beleza é um ideal que o ser humano persegue, um ponto a que ele quer chegar, sempre.

- Acha que beleza tem a ver com a França?
Tem a ver com o mundo, não com a França especificamente. É um conceito universal. Cada cultura tem seus critérios próprios do que é belo. Não se pode dizer que beleza tem a ver diretamente com a França.

- O que considera mais belo na cultura francesa?
Sem dúvida, os Direitos Humanos. Liberdade, Fraternidade, Igualdade são conceitos que nasceram na França, com Montesquieu, Voltaire, Rousseau. Por mais que essas noções tenham tido outras interpretações em outras culturas, foi a França que as definiu de forma abrangente e as empreendeu na prática com a Revolução Francesa. A França tem uma noção muito grande da importância de ajudar aos outros. Isso é muito especial.

- Como francês, você poderia dizer que isso é o que lhe dá mais orgulho do seu país?
Com certeza. A preocupação francesa com os direitos humanos é muito especial. O que me dá mais orgulho é isso. E não é algo tão valorizado dentro da França, pelos franceses. É um país muito crítico consigo, que muitas vezes não reconhece seus próprios valores, suas próprias qualidades.

- Há algo que você considere belo que foi transmitido pelos seus avós/ pais? Você discorda de algo que eles consideram belo? Por quê?
Essa coisa da tolerância é um valor muito bonito que eles me passaram, aquela coisa de aceitar os outros como são. Não discordo que coisas que eles consideram belas.

- Por que uma preocupação tão grande que os franceses têm com a elegância e a beleza de seus pratos? Por que a preocupação estética com a culinária?
Acho importante você fazer uma distinção entre culinária e gastronomia. Culinária é dia-a-dia, gastronomia não. Imitando a Rita Lee, podemos dizer que culinária é prosa, gastronomia é poesia. Gastronomia é arte, não é só comércio. Arte de viver e comer. O francês se preocupa muito com isso, afinal, se come com os olhos.

- Você percebe no seu dia-a-dia essa preocupação com a harmonia estética da comida da sua casa? Mesmo depois de ter chegado ao Brasil?
Percebo, principalmente com convidados. Um brasileiro que chegue a casa de um francês e não seja recebido com um jantar com traços da gastronomia francesa pode até ficar sentido. As pessoas gostam e eu faço para agradar mesmo.

- A França é conhecida mundialmente pela preservação de seu patrimônio histórico. Qual sensação você, como francês, tem ao, numa cidade como Paris, por exemplo, deparar-se com construções que traduzem diferentes momentos culturais de seu povo, de sua cultura?
É emocionante. Tudo é muito bonito, a influência romana. Acho que esse contato com diferentes épocas da história e a valorização que a França dá a isso é uma forma de lembrar o quanto nós somos efêmeros. Tem muito a ver com aquilo que falei sobre tolerância. Para nós, franceses, preservar o passado é lembrar que não somos eternos. É uma forma de relativizar nossa passagem pela Terra. Lembrar que já existiu um passado e, com isso, sabermos que vai existir um futuro.

- Pra você, onde está a beleza no cinema francês?
No pioneirismo. A França é a pátria oficial do nascimento da sétima arte. Existe uma tradição no cinema francês na experimentação, sempre houve uma noção de arte muito forte. Para o cinema francês, a arte é mais importante do que a indústria. Para você ter uma idéia, 50% dos filmes visto na França devem ser franceses. Fora isso, exercemos também no cinema essa coisa da tolerância, do respeito a outros povos. A França talvez seja o único país do mundo em que parte dos impostos pagos pelos cidadãos é destinada a ajudar financeiramente as produções culturais de outros países. A França produz filmes em vários países do mundo, inclusive no Brasil.

- Interessante essa sua visão sobre o cinema francês. O diretor Jean-Jacques Annaud, em uma entrevista para a Label France, em 1995, na comemoração dos cem anos do surgimento do cinema, disse que o cinema francês, ao contrário do americano, faz filmes para Paris, desprezando o resto do mundo. Para ele, o cinema de hoje é uma arte global e, segundo ele, não se pode mais fazer filmes para mercados do tamanho do da França, que representa no máximo 4% do mercado mundial. O que você acha dessa opinião de Annaud?
Não, não, não. Esta é uma visão polêmica do Annaud. Ele é um diretor que fez carreira internacional, premiado com um Oscar – que nem é tão valorizado dentro da França – e que é conhecido por esta visão. Poderíamos dizer que todo ano, a cada filme que a França ajuda a produzir, tem um quê do cinema francês. Falando de Brasil, devemos lembrar de Central do Brasil. É um filme de arte e do grande público, que conseguiu unir as duas coisas, como nós, franceses, conseguimos fazer. A França ajuda muito nesse sentido. O Brasil deveria fazer mais filmes assim. Central do Brasil e Cidade de Deus são dois filmes que fizeram muito sucesso no exterior e muito sucesso de público e que tiveram apoio francês na produção.

- Você é conhecido por ter uma coleção de cartazes de filmes brasileiros. Como surgiu seu interesse por cinema brasileiro? Foi antes de vir morar aqui, há sete anos?
Na verdade, não. Meu interesse pelo cinema brasileiro começou quando cheguei aqui. Temos que ser sinceros em admitir que o cinema brasileiro nunca teve muita repercussão no exterior. Conhecia, é claro, Deus e o Diabo (na Terra do Sol), de Rocha (Glauber), mas não tinha me impressionado mais do que outros grandes filmes de outros países. Conhecia pouco mesmo. Quando vim morar aqui, com o contato com artistas e pessoas do cinema brasileiro, começou meu interesse. Hoje, estou escrevendo um livro sobre cinema brasileiro.

- Existem características estéticas parecidas entre os cinemas francês e brasileiro, na sua opinião?
Sim, no que se refere à experimentação, à alegoria. O cinema brasileiro deveria fazer mais isso. Imitar menos o cinema europeu e o cinema americano e criar mais. Ser mais alegórico, mais metafórico. Acho que um bom exemplo disso que eu estou falando é o primeiro filme do diretor Heitor Dhalia, Nina. É inventivo como o bom cinema brasileiro e ao mesmo tempo internacional.

- O que mais o impressionou em termos de beleza ao chegar aqui? Causou estranheza, emoção, curiosidade - que tipo de sentimento?
O Rio, a sua beleza geográfica. A chegada de avião é inesquecível. O Rio é maravilhoso. Aqui, a natureza ainda existe, apesar da loucura do ser humano. A natureza aqui é tão forte que supera a loucura do homem, da destruição imobiliária. Na Barra e no Recreio, cada dia o Rio é mais destruído, mas acho que a natureza, aqui, ainda é mais forte que o homem. É diferente de São Paulo, que já está toda destruída.

- O que é diferente no Brasil e na França no que se refere à beleza? A beleza brasileira é uma beleza mais do dia-a-dia, enquanto na França é uma beleza mais atemporal. O brasileiro se preocupa muito com o presente, o francês com o passado e com o futuro. Acho que esse contraste entre efemeridade e atemporalidade é perfeito. Aqui, a beleza está mais no cotidiano.

- De que você sente mais falta no Brasil? Por quê? Como faz para suprir?
Como fico pouco tempo sem ir à França (nunca passo mais de 4 meses sem visitar o país), não chego a sentir falta de nada, a não ser a família. Nesses vinte anos que moro fora da França e conheço diferentes países do mundo, sempre procuro coisas diferentes. Viajo para me encontrar com o diferente.

- Identifica aqui no Rio / no Brasil coisas que lembram a beleza da França?
Sim, os Direitos Humanos, como disse, mas no povo, não na estrutura social. Diria que a estrutura popular possui essa noção de tolerância. O povo brasileiro é mais tolerante do que a burguesia e a elite, como disse o Cacá Diegues numa entrevista. O povo, não a burguesia e a elite, são um símbolo físico dessa tolerância, dessa solidariedade.

- Na França, você também percebe essa diferença entre as classes sociais no que se refere à tolerância, aos direitos humanos?
Na França, também tem isso. Não sou muito indicado para falar sobre a França atual, porque há vinte anos estou afastado daquela realidade, mas, pelo que sei, a França hoje vive uma situação nova, com todo esse problema das periferias. Desacordo entre as classes existe, queiramos ou não. A minha visão da França é antiga, de 20 anos atrás, então posso estar equivocado. Hoje acho que conheço mais a realidade brasileira do que a francesa.

- Se fosse feito um concurso para escolher o que existe de mais belo no Brasil o que seria? E no brasileiro?
Alegria do povo. Esse povo que canta sempre, dança sempre, beija sempre. É um povo com grande força de viver, que precisa se abraçar sempre, trocar calor humano sempre.

- Você diria então que isso que chamou de alegria do povo é uma identidade do Brasil como nação e como povo? Do Brasil e do brasileiro?
Sim. O brasileiro é muito o presente, por isso gosto tanto daqui. O francês, de forma geral, sempre pensa muito no passado e no presente. Eu valorizo mais isso, essa coisa do aqui e agora, do momento. Acho que já sou mais brasileiro que francês. Isso é fantástico no Brasil.

16.7.07

O Mistério da Felicidade

Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

- Engoli uma tampa de coca-cola.

Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos. Convoquei imediatamente a família.

- Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
- Tá. Você já mandou buscar o bolo para cantarmos o Parabéns?

Pedro, meu marido, pai da engolidora de tampinhas, tinha o poder de me irritar com seu jeito desatento.

- Pedro, acorda ! A Vânia tá dizendo que a Leonora ENGOLIU uma tampa de coca-cola.

Minha cunhada, Sílvia, não tinha mais paciência com o irmão e gritava para ver se surtia efeito.

- Engoliu? Mas como? Pela boca? – perguntava Pedro, passando dos limites. Pelo visto nosso divórcio seria inevitável.
- Pedro, você é meu irmão, mas é um idiota. Se ela en-go-liu, é claro que foi pela boca, né ? – Sílvia estava nervosa.
- Ggggente, nnnnão sssseria bom nnnós irmos pro hospppital ?

Meu cunhado, Gaspar, irmão mais novo do meu marido, era gago. Isso. Você leu certo. Minha amadíssima sogra nunca soube fazer filhos. Um era lerdo (o meu marido), a outra, destemperada, e o terceiro era gago.

- E vamos parar a festa da menina ? Coitadinha. Falta cantar o Parabéns – Pedro ainda não tinha entendido a gravidade da situação.
- Será que nenhum dos pais dessa criançada é médico ? – eu, a única voz lúcida naquele verdadeiro zoológico, tive que me pronunciar.
- Vou pegar o microfone e perguntar.

Silvia foi para perto do aparelho de som e parou a música. Todas as crianças, pais, professores, garçons e palhaços da festa olharam para ela.

- Atenção, todos! Minha sobrinha, a aniversariante, corre risco de vida. Vocês, crianças, podem não ter mais a doce Leonora como coleguinha. Repito: Leonora não está bem. Agora, gostaria que vocês mantivessem a calma. Existe algum médico entre nós? Repito...

Ela não conseguiu repetir. O caos já estava instalado. As crianças, sem exceção, começaram a chorar. Algumas até gritavam e corriam para o colo de seus pais. Um senhor levantou a mão:

- Sou médico. Onde está a menina ?
- Ali, perto daquela senhora de vermelho.

A senhora de vermelho era eu. A menina que corria risco de vida era minha filha. E a louca que tinha estragado a festa era a minha cunhada.

- O que houve com a menina ?
- Engggoliu uma tampppa de cccoca-cola – Gaspar demorava quase duas horas para falar cinco palavras.
- De plástico ou de aço? – a praticidade dos médicos me irritava.
- Minha filhotinha, foi de plástico ou de metal a tampinhazinha que você engoliu ? – Pedro sempre falou com Leonora como se ela fosse uma idiota. Na verdade, o idiota era ele.

Leonora olhou para cima, olhou para baixo e, finalmente, olhou para trás e soltou uma risada para um dos palhaços da festa contratado para animar as crianças. Ele, então, correu para perto de Leonora gritando:

- Já ganhou, já ganhou, já ganhou!
- Ganhou o quê, seu imbecil ? – Sílvia, minha cunhada, já perdendo a compostura.
- Calma, Sílvia, deixa o moço falar. – eu ponderava.
- Eu dei uma missão para as crianças! Hahaha! Quem contasse a melhor mentira para os pais, ganharia três pontos na nossa gincana. Hahaha!

Nem preciso dizer que o palhaço com sua imensa criatividade para elaborar brincadeiras altamente pedagógicas quase foi linchado pelos pais, que, irados, se despediam.

Naquela noite, parei para analisar minha vida. Era casada com um idiota, que tinha uma irmã louca e outro gago; minha filha era uma menina de seis anos fria, manipuladora e mentirosa; e eu acreditava que era feliz. Como podia ser feliz naquele pardieiro?

Decifrei o mistério da felicidade quando, duas semanas depois, fugi com aquele que me ensinou a não levar a vida tão a sério: Teobaldo, o palhaço.