28.9.07

O bigode e as escrituras




Quem passar à noite entre a Rua da Quitanda e a Avenida Rio Branco vai se impressionar com o pouco mais de um metro e meio de um homem capaz de carregar durante toda a madrugada até cinco toneladas (seu recorde até hoje) de papel branco e papelão recolhidos naquele trecho. Carregando seu burrinho sem rabo, nome que os catadores dão aos carrinhos em que empilham quilos e quilos de papel para levar ao depósito em outro ponto do Centro, Seu Pedro esquece seus 60 anos e ziguezagueia pela escuridão da noite da cidade. “Todo mundo me conhece aqui. Ficam a noite toda chamando o velho pra cá, o velho pra lá”, diz Seu Pedro, com um sorriso de pouquíssimos dentes.

Prestes a embarcar rumo à Paciência, sem trocadilhos


Pedro Monteiro de Moraes nasceu em Ferreiros, cidade a 109 quilômetros de Recife, entre o litoral e a Zona da Mata nordestina. Trabalha desde os sete anos no canavial, mas conseguiu levar a escola até a 5ª série. Daí para frente, ficou difícil e nunca mais conseguiu estudar. A leitura, no entanto, está em dia há 12 anos, quando se tornou evangélico e passou a ler com grande afinco as escrituras sagradas. Três anos antes de começar a freqüentar os cultos, Seu Pedro tinha começado a trabalhar nas ruas do Centro catando papel. Era pedreiro desde 1968, quando chegou ao Rio, com 19 anos. De lá até se tornar catador, foi e voltou de Ferreiros algumas vezes. Quando estava desempregado por aqui, pegava o ônibus, enfrentava 48 horas de estrada e voltava para o canavial. Passava um tempo por lá e retornava, insistindo em tentar uma vida melhor no Rio. Numa dessas idas, conheceu dona Vilma, paraibana de Orvalho, sua mulher há mais de 30 anos. Tiveram cinco filhos, quatro meninas e um menino, pouco menos que os sete dos pais de Seu Pedro.

Quase tão longo quanto o casamento é o tempo que Seu Pedro trabalha como catador. Há 15 anos, um quarto de seus 60, ele foi demitido de uma construtora em que trabalhava. Estava começando a desenvolver uma doença que o acompanha desde então, a úlcera varicosa, que deixa os pés extremamente inchados e pode causar feridas enormes. A única forma de tratar a doença é, além de usar a medicação indicada, deixar as pernas levantadas permanentemente. Talvez seja por isso que já convive há tanto tempo com a doença. A construtora alegou na época que ele não conseguiria calçar sapatos, condição que consideravam básica para que alguém trabalhasse como pedreiro. Foi aí que um conhecido, bem mais velho que ele, catador de papel entre a Rua da Quitanda e a Avenida Rio Branco, o levou para trabalhar no Centro. Quando o amigo morreu, Seu Pedro assumiu seu ponto e lá trabalha até hoje. “Deus me apontou uma saída”, conta, animado.

Seu Pedro sempre foi uma pessoa muita religiosa. Católico desde criança, se tornou evangélico por sentir falta de ler a Bíblia, prática pouco incentivada no catolicismo. Sua primeira Igreja foi a Assembléia de Deus, mas saiu de lá há três anos quando exigiram que ele raspasse o bigode. “Se Deus me deu bigode, com certeza é porque ele me queria assim.” Foi para a “Deus é amor”, onde está até hoje, lendo as escrituras. E com o bigode intacto.

Vendo a rotina de Seu Pedro, parece faltar tempo para estudar a Bíblia. Chega todo dia às quatro, cinco da tarde no Centro. Vai até o depósito de papel, na Rua dos Inválidos, 96, troca de roupa, e se dirige ao ponto em que trabalha. Começa a recolher o papel e, até duas da manhã, já catou tudo que podia. Seu Pedro sempre é o primeiro a chegar na fila do depósito, que só abre às cinco e meia. Aproveita o vazio da rua, pega alguns papelões, monta uma barraquinha e dorme até a chegada de Seu Armindo, o dono do depósito. Depois de receber o dinheiro pelo que juntou durante toda a noite, Seu Pedro se veste, toma um café preto em algum bar do Centro e vai para a Central do Brasil. Já são quase sete horas quando embarca para Paciência, na Zona Oeste, onde mora. Chega em casa um pouco antes de nove, toma mais um café, e dorme o sono dos justos, que será interrompido por volta de meio-dia, quando acorda.

Quando Seu Pedro está pegando no sono após praticamente não dormir a noite toda, Seu Armindo, o dono do depósito, que dormiu a noite toda, está apenas começando seu dia de trabalho. Aos 42 anos, chegou ao Brasil com doze, vindo de Portugal, onde nasceu. Na falta de perspectivas, se tornou catador de papel. Conseguiu juntar dinheiro e comprou seu depósito anos atrás. Hoje, não cata mais, apenas compra a peso todo o papelão e papel branco recolhidos pelos catadores. Oferece, além do carrinho, um banheiro com chuveiro para que eles possam tomar banho antes de voltar para casa. Quando todos os catadores já venderam o que tinham, Seu Armindo vai para a Praia do Caju. É a sua vez de vender o que comprou. Sem informar por quanto vende as toneladas compradas, admite por quanto compra. Por um quilo de papel branco, paga 32 centavos. Já pelo quilo do papelão, paga um pouco mais, 35 centavos. De grão em grão, trinta anos depois de ter chegado, Seu Armindo conseguirá este ano mandar as duas filhas para Portugal. Vão estudar.



O depósito de seu Armindo - rua dos Inválidos, 96

Seu Pedro pensa parecido. Quando perguntado se aconselharia um parente de Pernambuco a vir para o Rio de Janeiro tentar a vida, como ele fez há quase quarenta anos, fala em alto e bom som: “Cai fora que é roubada.” Seu sonho e o de Dona Vilma é voltar para Ferreiros, mas não querem ir sem um pé-de-meia. Está trabalhando para isso e, tem certeza, um dia consegue voltar. Para ele, o Brasil não tem jeito e Ferreiros, sendo uma cidade pequena, pelo menos é mais tranqüilo. “Dá pra conviver melhor com as dificuldades”. Ano passado, ano de eleição, Seu Pedro e vários catadores de papel do Centro foram convidados para viajar a Brasília e visitar o Palácio do Planalto, onde seriam recebidos pelo presidente Lula. Seu Pedro não quis ir. “Ele ia fazer alguma coisa pra melhorar minha vida?”. Há doze anos que não vota e nem se lembra dos nomes dos candidatos a presidente da última eleição em que votou, em 1994. Prefere se preocupar com assuntos que julga realmente interferirem em sua vida. As escrituras e o bigode, por exemplo.

24.9.07

As referências usadas pelos Simpsons

Para os fãs de Simpsons, este site é uma boa. Mostra algumas cenas de cinema que já foram parodiadas pelo desenho, como a da foto abaixo.

É só clicar aqui.

Stanley Kubrick

19.9.07

Cacciola: algumas linhas

Coloquei abaixo algumas observações sobre o caso Cacciola, muitas delas já feitas pelos jornais. Mas nunca é tarde, mesmo que sejam lidas apenas pelos meus 2½ leitores (além da minha mãe e da minha irmã, o desespero é tanto que agora obrigo minha cachorra a ler o blog):

- Será uma ótima oportunidade para o Judiciário brasileiro mostrar seu vigor e, acima de tudo, sua natureza apartidária. Ou não. Pode ser também o aprofundamento da dúvida de que trata-se, na verdade, de uma esfera cooptada por determinadas forças políticas de bico longo e bela plumagem. Vale lembrar aos menos ligados que, entre os condenados, está o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, que comandou o banco em 1999 e foi Diretor de Política Econômica e Monetária durante três anos (1995-1998). Em função do Plano Real, o cargo foi/era estratégico para o sucesso/fracasso do governo tucano. Francisco Lopes recorreu da sentença, assim como todos os outros condenados (Demosthenes Madureira de Pinho Neto, ex-diretor da área intenacional do BC; Tereza Grossi, ex-chefe e ex-diretora de Fiscalização do BC; Claudio Mauch, ex-diretor de Fiscalização do BC; Luiz Augusto Bragança, amigo de infância e ex-sócio de Francisco Lopes na consultoria Macrométrica; Luiz Antônio Gonçalves, ex-presidente do Banco FonteCindam e Roberto Steinfield, ex-controlador do FonteCidam). O TRF da 2ª Região (RJ e SP) julgará a sentença ainda este ano. É só esperar para vermos no que vai dar. Será que o Judiciário mostrará a mesma intolerância com a corrupção que demonstrou com os mensaleiros?

- interessa a Mônaco mudar a reputação do país perante a opinião pública internacional de que o principado seria condescendente com o crime. As aspas da procuradora-geral Annie Brunet-Fuster no Globo de hoje mostram isso. A decisão final caberá, segundo ela, ao príncipe.

- ao governo interessa ter esta carta na manga para sangrar um pouco a oposição. Relembrar um dos vários casos de corrupção do governo FHC pode ser lucrativo para o governo e, ao mesmo tempo, perigoso, já que depende da boa vontade da oposição para aprovar matérias importantes como a CPMF, que deverá ser votada hoje.

- Vale lembrar que, na época, o será-que-ainda-admirável senador Aloízio Mercadante foi um dos principais denunciadores do escândalo Marka-FonteCidam. Merval Pereira, no Globo de ontem, cita o escritor Gilberto de Mello Gujawski que, por sua vez, ao comentar tese do sociólogo Chico Oliveira, disse que "o maior mal que o governo Lula está provocando no país é a esterilização política pelo 'seqüestro' dos principais agentes mobilizadores (...) que foram vencidos pelo corporativismo e pelo particularismo." Como diria o Ancelmo Góis, é, pode ser.

Bom, isso é tudo, pessoal.

13.9.07

Só nós não mudamos

Sobre mim, já pisaram os mais variados pés. Pés importantíssimos, diga-se de passagem. Pés cheios de patriotismo, de esperança de mudanças. Pés fardados e fadados – não é porque sou uma pedra portuguesa que não posso trocadilhar. Por cima de mim, já passaram futuros presidentes. Vários deles também já me evitaram. Pelos meus cálculos, lá se vão não sei quantos anos, passaram bilhões de pés. Hoje em dia, só me tocam de leve, num passo apressado que mal dá pra sentir a pisada. Correm pra tudo que é lado e nem se preocupam com o que acontece no chão em que pisam. Antigamente, não. Isso aqui era uma animação só. Tinha passeata, gente empolgada, empolada. Tinha sangue. Tinha folia. Bom, hoje também tem folia. Graças a Deus. Se não, como disse um pé que pisava muito por aqui, ninguém agüenta esse rojão.

Sabe, ser pedra portuguesa da Cinelândia é uma tarefa inglória. Digo inglória porque não é todo dia que somos palco para espetáculos. Na verdade, passamos quase o ano todo nessa mesmice, pés pra lá, pés pra cá, num vai-e-vem entediante. Estava comentando dia desses com uma das minhas quatro vizinhas que o tédio tem aumentado de um tempo pra cá. Pudera. Tirando fevereiro e março, que a coisa ferve com o Cordão da Bola Preta, no resto do ano é só chatice. Mas não foi sempre assim, como lembrou a vizinha da frente durante nosso papo. Coisa de quinze, vinte anos atrás, se eu não me engano, foi uma das últimas vezes que isso aqui pegou fogo. Eram uns garotos, sempre eles, que me encheram com respingos de tinta verde e tinta amarela. Pediam a cabeça de um presidente. Mas ali já dava pra ver que a coisa tava mudando. Muitas de nós receberam, além dos respingos de tinta, respingos de cerveja. A rebeldia tinha virado festa. Tirar o presidente era, para muitos deles, uma grande brincadeira. Achei aquilo estranho, mas como sou uma pedra portuguesa progressista, relevei. Algumas amigas, mais caxias, ficaram indignadas. Estão profanando um chão em que já pisaram cavalos getulistas, a portuguesinha que fica perto do obelisco gritou na época.

Na verdade, cá entre nós, essas pedras estão ficando velhas. Reclamonas. Pra mim, são tempos diferentes. As coisas mudam. É claro que não há a mesma animação de outros tempos – daí que vem o tédio, como eu disse –, mas não dá pra achar que, só porque nós somos as mesmas, os pés que pisam na gente também vão ser. As pedras portuguesas não mudam, já os pés que as pisam, sim, já dizia uma sábia que foi removida na última reforma da frente do Municipal. Essa pedra, aliás, era rica de histórias. Ela era uma dessas que estava por aqui desde 1905, no tempo do Pereira Passos, quando as primeiras de nós foram trazidas, na construção da Avenida Rio Branco, que, dizia ela, se chamava Avenida Central. Estava aqui quando o Getúlio chegou, foi pisada durante os primeiros grandes desfiles da independência, durante o tal do Estado Novo. Lembrava que era impressionante o carisma do gaúcho. Anos depois, a pedra sábia contava, lágrimas e mais lágrimas foram derrubadas sobre ela, quando ele se matou.

Por falar em derrubada, eu testemunhei uma outra derrubada assustadora, não de lágrimas, mas de um presidente. Não presenciei, é claro, mas ouvi. E também sofri com o que veio depois. Mas foi, talvez, a época mais empolgante. Para nós, pedras portuguesas, é bom dizer. O primeiro grande ato cívico da minha lusitana vida foi quando cem mil pessoas se reuniram para exigir, entre outras coisas, que os presos políticos do regime militar fossem soltos. Aquele dia foi inesquecível. O povo cantava, gritava, vibrava com a possibilidade de acabar com a terrível ditadura que já há quatro anos amedrontava até as mais conservadoras das pedras. Liberdade, liberdade, todas gritávamos em coro. Naquele dia, a polícia não veio com tudo. Tinha ido alguns dias antes, quando, lá pros lados do restaurante Calabouço, um estudante foi morto. As pedras portuguesas do lugar ficaram tão traumatizadas que preferiram se calar. Não viram, não ouviram, não iam ser burras de falar. A mordaça daquela época era tamanha que até nós tínhamos medo.

O medo demorou a passar. Só lá pra meados dos anos 80 a coisa começou a mudar. E aí foi lindo, como ouvi o Caetano dizer um dia que pisou bem em cima de mim. Segundo as nossas contas, foram bem um milhão de pés, ou quinhentas mil pessoas, para ser mais específica. Queriam votar, queriam ter o direito de mandar em seus próprios destinos. Nós, pedras portuguesas, apoiávamos as Diretas Já sem titubear. Estávamos cansadas de tanto sangue brigando com o nosso preto e branco. Durante os comícios, vinha muita gente boa pra cá. Ah, eram tempos felizes. Acho que tínhamos mais esperanças. Bom, talvez estivéssemos iludidas. Mas, se era ilusão, era uma ilusão boa, isso era.

De lá pra cá, muita coisa mudou. Vieram aqueles caras pintadas, como eu disse e, depois, a coisa diminuiu bastante. Uns dois anos atrás, umas pessoas queriam tirar o presidente que pareceu um dia com um sapo barbudo. Não conseguiram colocar nem 600 pés, 300 pessoas. Isso aqui também fica cheio volta e meia de professores, policiais, médicos e vários outros profissionais que vêm reivindicar. Reivindicam tudo e, na maioria das vezes, não conseguem nada. Quem também não consegue nada, pelo menos a curto prazo, são as pessoas que nos enchem de lágrimas quando vêm pedir paz. Dessa vez, as lágrimas não são pelo presidente morto, mas pelos familiares, pelos amigos, pelos vizinhos mortos no asfalto selvagem, como disse o Nelson Rodrigues uma vez. Mas eu acho que hoje em dia essas pessoas são bem menos ouvidas aqui. Uma prima minha que é pedra portuguesa lá em Copacabana disse que, quando as pessoas se juntam por lá para pedir paz, menos violência, e esse monte de coisa que todos queremos, enche de câmera de televisão e de personalidade. Por aqui, acho que mal seriam ouvidos. Bom, talvez seja pessimismo meu. Mas nada que se compare a 1968, 1984, 1992. É, meus amigos, até para nós, pedras portuguesas, é estranho envelhecer e acompanhar tantas transformações. A Cinelândia mudou. O Rio mudou. O Brasil mudou. Parece que só nós, pedras portuguesas, como dizia a pedra sábia, não mudamos.