27.6.08

Guimarães Rosa no cinema

Hoje, Guimarães Rosa, considerado o maior escritor brasileiro do século XX, completaria 100 anos de idade. Em comemoração, os cinemas da Caixa Cultural começaram a exibir, no último dia 24, aqui no Rio, 17 filmes feitos a partir de sua obra, além de 3 programas de TV. Adaptar Guimarães Rosa para o cinema é uma tarefa hercúlea, devido aos enormes malabarismos que ele faz com a linguagem, criando palavras e uma sintaxe no mínimo exótica. Mas mesmo assim, em bem e mal sucedidas adaptações, a obra do escritor, mineiro de Cordisburgo, inspirou 11 longas-metragens e seis curtas.

Em 1965, dois anos antes de sua morte, foi filmado A hora e a vez de Augusto Matraga, por Roberto Santos, e O Grande Sertão, dos irmãos Renato e Geraldo Santos Pereira. Na mostra, também estão adaptações feitas por Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha.

Dentre os 17 que serão exibidos até o dia 6 de julho, o único filme a que assisti e de que posso falar é Mutum, de Sandra Kogut, lançado em 2007 e vencedor do Festival do Rio do mesmo ano. Sandra se inspirou na história de Miguilim, da novela "Campo Geral" (Manuelzão e Miguilim), para fazer um filme bom, sob vários aspectos, mas principalmente por ter conseguido separar-se do emaranhado linguístico criado por Rosa e saber aproveitar o lado temático, do sertão, de quem ele era profundo conhecedor.

Cena de Mutum, de Sandra Kogut


No livro, ele se inspira na tradição oral e na língua concreta do sertanejo, onde predominam imagens da natureza. Mas a linguagem particular falada por seus personagens é uma mistura de expressões regionais com aportes de várias outras línguas, formando uma língua imaginária. Sandra conseguiu fazer um filme coerente com essa coisa sertaneja, trazendo essa atmosfera para os dias atuais. O sertão dela tem, por exemplo, boné de propaganda política. Talvez pelo lugar em que assisti ao filme, achei o som bastante ruim, com qualidade técnica muito baixa. Também é bom avisar que é um filme de sertão como vários outros dessa vertente do cinema brasileiro. Tem que gostar daqueles silêncios intermináveis bem nouvelle vague.

De contornos autobiográficos, a história de Miguilim era a preferida do autor: “Em Miguilim, acho tudo o que já escrevi até agora e talvez mesmo tudo o que venha a escrever em minha vida. Nessa história, está o germe, é a semente de tudo”, disse certa vez em uma entrevista.

25.6.08

Obituários de dona Ruth esqueceram do filho fora do casamento de FHC

Fiquei triste com a morte de dona Ruth. Primeira-dama exemplar, engajada, séria, exemplo a ser seguido também pelo nacionalismo, que a fazia até criticar o termo primeira-dama, americanismo que combatia. Correndo por fora, como bem gosto de fazer nesse blog, deixo essa ladainha para os grandes veículos e pergunto: por que os obituários dos jornais de hoje e as matérias de TV esqueceram, como fazem há anos, de mencionar o filho fora do casamento que Fernando Henrique teve com a jornalista da Globo, Mírian Dutra?

Caso abafado durante os dois governos do ex-presidente, o furo foi da revista Caros Amigos, em sua edição 37, de 2000. Aliás, a matéria, como faz questão de lembrar a publicação, não era sobre o filho de FHC, mas sim sobre o fato de nenhum veículo grande falar sobre o assunto. O menino se chama Thomás e foi fruto de um relacionamento de FHC e Míriam quando ela era jornalista da sucursal da Globo em Brasília. Nascida a criança, que ficou sem o registro do pai, ela foi transferida para sucursal de Madri da emissora, onde trabalha até hoje. O garoto tem 17 anos.

Oito anos depois de revelada a notícia, a grande mídia continua ignorando isso. Dona Ruth aceitou a condição de adúltero do marido e permaneceu casada. Aqui no Rio, é sabido no meio jornalístico que o casamento ali era uma grande fachada. Havia, isso sim, uma cumplicidade, no bom sentido.

Cúmplices, no mal sentido, foram os grandes veículos da imprensa, que nunca publicaram uma linha sequer sobre o filho adulterino, alegando que se tratava da vida privada do então presidente. Ora, quando apareceu Lurian, a filha do Lula, na campanha presidencial de 1989, O Globo publicou o editorial O Direito de saber, em que o caso do sapo barbudo era exposto nos mínimos detalhes. Pelé e Paulo Maluf também já tiveram suas vidas expostas em casos de filhos adulterinos, assim como, recentemente, foi feito o caso de Renan Calheiros e a também jornalista Mônica Veloso.

E a princesa Diana? Algum momento a imprensa brasileira deixou de falar sobre seus casos quando ainda era casada com Charles? E Chico Buarque e seu affair com a tal mulher casada, musa da canção Renata Maria, de seu último disco? Foi poupado? Há que se discutir, isso sim, se é certa ou errada a conduta de invadir a vida privada de homens públicos. Mas é fundamental que não haja a política do dois-pesos-duas-medidas, como, mais uma vez, houve no obituário de dona Ruth.

19.6.08

Biografias, biógrafos e biografáveis

Quem merece uma biografia? Terminei de ler essa semana duas espetaculares, sobre literatos brasileiros de escrita, personalidade e vida completamente diferentes, mas que renderam duas biografias maravilhosas: Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico) e Paulo Coelho (O Mago). Escritas por dois dos maiores biógrafos do país, os jornalistas Ruy Castro e Fernando Morais, respectivamente, as obras são verdadeiras aulas do que é uma boa biografia. Críticas, sem ser parciais, cheias de detalhes, sem perder o foco de contar a vida de seus personagens, e engraçadas na dose certa, as duas vão além do jornalismo e mesclam com talento elementos da literatura.

Mas o que define uma boa biografia é algo a mais, que depende do talento de quem escreve, mas também da vida da pessoa sobre quem se escreve. Não necessariamente autor de feitos heróicos, o biografado tem que ser, sim, autor de feitos interessantes, curiosos, dramáticos, ainda que pequenos e de pouca repercussão. As façanhas de Napoleão podem ser menos interessantes, por exemplo, que a descrição da fuga de uma judia de um campo de concentração, como relatada em A Travessia de Maria. Como num romance, o leitor tem que ver naquele fato algo maior que ele mesmo. A angústia da fuga da judia, os obstáculos que ela teve de percorrer, como conseguiu fugir, tudo isso tem que ser mostrado não tal qual aconteceu, mas sim como se fosse um romance, em que o leitor espera ansiosamente o final de cada capítulo, com frio na barriga para ler o próximo lance.

Não acredito ser possível transformar qualquer história de vida em uma biografia. Não é todo mundo que é “biografável”. Isso não depende do talento do biógrafo. O que depende dele é contar bem histórias que por si só já sejam interessantes. Paulo Coelho, por exemplo, é muito mais interessante que qualquer um de seus personagens. Foi internado em manicômios, tomou choques elétricos, foi preso pela ditadura quando confundido com um guerrilheiro, teve encontros às escondidas com o anjo da morte e com o diabo e vendeu mais de 100 milhões de livros, superando Shakespeare.

Isso faz pensar em o que torna uma pessoa digna de uma biografia. No que ela é mais importante que os reles mortais para justificar ter sua vida transformada em livro? Acho que isso depende muito mais do leitor do que do biografado. Quem julga o que é de fato interessante, quais feitos são curiosos o suficiente para render uma biografia, é o leitor. Caso exista um número de pessoas suficientemente grande interessada no Roberto Jefferson, mãos à obra. Por isso é que crescem cada vez mais as chamadas biografias afetivas. São livros que não têm interesse para o público em geral, mas apenas para um círculo restrito de pessoas. Pode ser, por exemplo, a história do patriarca de uma família, a ser lida pela parentela, ou do presidente de uma empresa, que deseja presentear seus funcionários e familiares.

Mas biografia encomendada é um grande problema. Ela limita o trabalho de apuração e a isenção do escritor. O biografado se torna quase um Jesus Cristo de tão bondoso. Mas faz parte. É isso que o leitor deste tipo de trabalho espera ler. Ninguém quer descobrir que seu avô, já morto, era um grande canalha.

Por falar em morte, biografá-los é uma tarefa bem mais fácil, pelo menos para Fernando Morais, autor de uma série de biografias maravilhosas, como Chatô e Olga. Ele disse recentemente, por conta do lançamento de O Mago, que é muito difícil saber se o que você vai escrever pode prejudicar ou beneficiar o biografado.

Com tantos critérios que devem ser levados em conta, que pessoas merecem uma biografia e ainda não receberam essa glória (ou desgraça)? Ou ainda: quem já foi biografado, mas poderia receber uma melhor? Lançada a pergunta, façam suas apostas.

Eu já posso começar: acho que o Lula merece uma nova biografia, já que a escrita pela Denise Bandeira antes da eleição está necessariamente defasada. Zé Dirceu também merece, assim como Antônio Carlos Magalhães – de quem Fernando Morais já está se ocupando. Na cultura, falta uma boa biografia de Caetano, de Fernanda Montenegro e uma verdadeira de Roberto Marinho, que possa ser chamada de biografia, coisa que a escrita por Pedro Bial não podia.

18.6.08

Para saciar a curiosidade e adoçar o ouvido

Para saciar a curiosidade de alguns leitores, venho a público falar um pouco sobre uma das músicas que toca na Rádio Textos etc, ressuscitada há dois anos pela série Lost. Downtown, sucesso da cantora inglesa Petula Clark, atualmente com 73 anos, foi tocada na cena de abertura do primeiro episódio ("A Tale of Two Cities") da terceira temporada, quando a personagem Juliet (Elizabeth Mitchell) põe um CD para tocar, enquanto se olha no espelho, com expressão preocupada. Mas a música é, na verdade, de 1964.

O vídeoclipe está no Youtube e pode provar o que falo.

17.6.08

O cartão-postal televisivo

Leia as outras reportagens do especial As esquinas de Copacabana:
História do bairro 1: O mirante azul começa a se transformar
História do bairro 2: Balneário de uma Europa Tropical
História do bairro 3: A cidade dentro da cidade
Representações de Copa: A Copacabana paradisíaca


Saindo um pouco da palavra e partindo para a imagem, a série sobre como Copacabana, bairro mito do Rio de Janeiro, é mostrado nos meios culturais continua e encerra o mapeamento as representações paradisíacas. A vinheta de abertura da telenovela Paraíso Tropical, exibida durante 2007 pela Rede Globo, é um exemplo perfeito dessa forma de representar o bairro. Que Copacabana é aquela que vemos na abertura da novela? Certamente não é o das prostitutas, dos cafetões, das crianças abandonadas na rua pedindo esmola. Vemos uma estetização moderna do bairro, cuja natureza, mesmo após toda a degradação ambiental imposta pela especulação imobiliária, é o ponto de partida para mostrar que o bairro ainda pode ser mostrado de forma idílica, mais de cem anos após sua fundação, com todos seus problemas.



A vinheta estetiza Copacabana. A beleza da praia, o cruzeiro marítimo, o Copacabana Palace, a praia muito bem iluminada. Tudo isso é mostrado através de movimentos de câmera lentos e doces, que acompanham o ritmo da canção Sábado em Copacabana, desta vez em brilhante interpretação de Maria Bethânia. Vale observar como alguns problemas do bairro são amenizados. O trânsito de Copacabana, caótico nas horas de pico, é mostrado de forma diferente da realidade. Não há engarrafamentos, os carros fluem normalmente numa harmonia urbana de dar inveja às cidades dos países nórdicos. Os movimentos de câmera são muito importantes na construção dessa imagem. Por exemplo, ao fazer uma curva lenta e suave na esquina das avenidas Princesa Isabel e Atântica, reforça a idéia de fluidez do trânsito, em um ponto onde o trânsito, quase sempre, de fluido não tem nada. As panorâmicas do bairro, em diferentes momentos do dia, reforçam a imagem de paraíso e desconstrói a visão de algumas pessoas de que Copacabana de dia é mais calma que Copacabana de noite.

Os cartões-postais do bairro, vendidos em qualquer ponto turístico carioca, retratam o bairro da mesma forma. Captam ângulos favoráveis ao bairro e são representações positivas de Copacabana, interessantes para a indústria do turismo e para a economia do bairro de uma forma geral. A vinheta de abertura de Paraíso Tropical é nada mais que um cartão-postal televisivo, carregado de estetização.

Mas que Copacabana Paraíso Tropical mostrou de fato, além da sua abertura? A prostituta Bebel, cheia de “catiguria”, o empresário hoteleiro Antenor, os garotos de classe média da praia, o cafetão Jáder. Personagens que certamente não estariam na música de Braguinha. Somos obrigados a mudar o rumo da história e entender um pouco melhor como essa Copacabana caótica aparece nos meios culturais.

14.6.08

Relíquias - Sou cantor, não puxador

Ele não era puxador. Era cantor. E a mais nova relíquia garimpada pelo Textos etc nos porões do Youtube é uma bela parceria em que mestre Jamelão canta com Chico Buarque. Curioso ele morrer logo hoje, um sábado, dia de feijoada na escola que ele tanto amava (amor compartilhado por este singelo blog).

A voz grossa, que arrepiava no Mangueira, seu cenário é uma beleza/ Que a natureza criou, entoada todo ano para abrir o desfile na Sapucaí, já estava afastada da escola. Um dos últimos grandes mangueirenses a partir, que Jamelão olhe de onde estiver pela Mangueira, que vai de mau a pior no quesito reputação e idoneidade.

Que os Ivos Meirelles e outras figuras envolvidas com o tráfico saiam do barracão e deixem a maior escola de samba brasileira voltar a reinar, com composições tão memoráveis quanto esta que o Chico fez, de terno branco e chapéu de palha.

Descanse em paz, Jamelão. Obrigado pela voz capaz de deixar até os não mangueirenses de braço arrepiado.

13.6.08

O crescimento de Cláudia Raia

Entre as boas novidades que estão em A Favorita, a nova novela da Globo, está o amadurecimento de Cláudia Raia como atriz. Formada principalmente na televisão, coisa que não lhe tira o mérito – a televisão formou e forma filas e filas de excelentes atores no Brasil –, Cláudia tinha tudo para ser uma atriz de segunda linha, pois, até hoje, vacila em variados papéis, quase sempre indo para o caricato, como fez em Sete Pecados, última novela das sete em que interpretou uma vilã.

Mas sua Donatela, uma das opções que o público deverá escolher como a favorita, é muito bem construída. O jeitão meio masculinizado, meio bruto, meio caipira, vai por água a baixo quando ela se derrete facilmente no colo da filha, enquanto chora e suplica seu amor. É uma personagem difícil, porque a trama começa sugerindo que é ela a vilã e Flora (Patrícia Pillar), a outra opção de favorita, é a mocinha. Mas em breve os papéis devem se inverter, e as duas devem alternar até meados da história entre heroína e vilã. O que é moleza para Patrícia Pillar, atriz que repetidas vezes já demonstrou seu talento, não era para Cláudia Raia. Mas ela conseguiu.

12.6.08

Violência sem fronteiras

Maior gangue de rua dos Estados Unidos, Mara Salvatrucha mobiliza FBI, enquanto se espalha por 40 estados norte-americanos, América Central, Canadá e Europa

A polícia canadense concluiu no último dia 6 uma operação que impediu a expansão em Toronto da maior gangue de rua em atividade na América do Norte e na América Central. Famosa pelo tamanho, abrangência e violência com que oprime subúrbios da Califórnia e mais 39 estados americanos, de acordo com o FBI, a Mara Salvatrucha (banda salvadorenha, em espanhol), ou simplesmente MS-13, possui quase 30 anos de atuação na América Central e nos Estados Unidos, com ramificações já instaladas em cidades do Canadá e da Espanha.

O crescente poder e violência da MS-13 justifica a satisfação da polícia de Toronto. Com quase duzentos mil membros espalhados principalmente por El Salvador, México, Guatemala, Honduras e 40 estados norte-americanos, os maras, como são chamados seus integrantes, são homens de 12 a 26 anos, com poucos anos de estudo e de origem hispânica. As principais atividades criminosas do grupo são tráfico de armas e drogas, roubos, estupros, extorsões de pessoas da vizinhança e exploração sexual. Casos de homicídio também são registrados, muitos deles de forma violenta, como alguns casos registrados mês passado de pessoas mortas com facões.

A gangue surgiu nas ruas da Califórnia em 1980, a partir de um grupo de jovens imigrantes de El Salvador. Naquela década, quase um milhão de salvadorenhos fugiram da guerra civil de seu país para os Estados Unidos. Em um cenário de bairros pobres, com desemprego, famílias desestruturadas, até com casos de abuso sexual, esses imigrantes viram na formação de uma gangue não apenas um meio de sobrevivência, mas principalmente uma forma de defesa se sua identidade e autonomia cultural. Segundo José Miguel Cruz, da Universidade da América Central, de El Salvador, pertencer a Mara Salvatrucha é um motivo de orgulho que o membro faz questão de exibir. "Todos eles, sem exceção, possuem o corpo tomado por tatuagens. Essa é a maior prova de como eles gostam de mostrar que são um mara", explica Cruz, que estudou por quase dez anos a gangue e seu funcionamento.

E é justamente este um dos traços que a diferencia das organizações mafiosas tradicionais, cujos membros escondem sua filiação e possuem interesses eminentemente econômicos. Outro traço que difere a MS-13 da máfia é a falta de uma base, algum lugar que funcione como sede ou quartel-general das operações. Embora estejam ligados e organizados, não possuem uma estrutura fechada e fixa. O procurador de Maryland, Rod Rosenstein, que coordena o escritório responsável por uma série de ações penais contra a organização, explica porque essa comparação é importante. "Estamos tentando usar a mesma legislação federal utilizada contra a máfia para bloquear seus recursos e dificultar seu financiamento", disse em entrevista ao site da BBC News. Mas Rosenstein está encontrando uma grande dificuldade para provar que a MS-13 é, de fato, uma organização com atuação interligada. Os encontros entre membros, as roupas - azul e branca - e as tatuagens têm sido usadas como características que comprovariam a relação entre líderes da gangue em El Salvador e seus protegidos nos Estados Unidos.

As ligações são tantas que o FBI decidiu abrir um escritório em San Salvador, capital salvadorenha, no ano passado. Em contanto permanente com a força tarefa nacional criada contra a MS-13, nos Estados Unidos, o escritório em El Salvador mistura inteligência policial, investigações e ajuda do governo e da justiça locais para realizar operações.


A Mano Dura

Em El Salvador, a capital está praticamente sob controle da gangue e de sua rival, Mara 18. A taxa de homicídio é uma das mais altas do mundo – 58 a cada 100 mil habitantes. Durante os anos 1990, foi implementada uma política de confronto direto com as gangues, inspirada na Mano Dura, política de enfrentamento criada em Honduras no início da década. A Super Mano Dura salvadorenha criou uma legislação que permitia à polícia prender pessoas apenas por suspeita, seja pela ligação com membros ou apenas por possuir tatuagens por todo o corpo. O resultado, é claro, foi a prisão de milhares de maras. No entanto, a justiça não foi capaz de processar tantas pessoas e muitos foram soltos sem acusação formal.

Outro resultado, que agravou ainda mais a situação, foi a consolidação do poder da MS-13 nas prisões, enfraquecendo os policiais da política do Mano Dura. Atualmente concluindo o doutorado na Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, José Miguel Cruz acredita que os governos americano e salvadorenho poderiam implementar uma eficaz forma de combate: a prevenção. “Nenhum dos dois esforça-se em evitar que os mais jovens entrem novamente na gangue. Preferem apelar para o combate direto”. Cruz acredita que essa política de enfrentamento gera ainda mais violência, por desrespeitar direitos humanos e incitar retaliações cada vez mais sangrentas. “O grupo não respeita fronteiras. Cometem crimes em San Salvador, fogem para os Estados Unidos, e vice-versa. É algo que nunca vai ter fim sem a prevenção”, concluiu.

6.6.08

O Brasil do Google

Digitar BRASIL no Google remete a 320 milhões de ocorrências e 49 milhões e 700 mil imagens, cuja primeira é uma torcedora loura, de verdade, com blusinha apertada e shortinho-inho-inho, segurando a bandeira brasileira e posando para foto. A segunda foto é de outra loura, falsa, com biquíni, mais inho ainda. O biquíni veste uma enorme bunda, enquanto sua proprietária lustra o patrimônio com bronzeador. Mas o Brasil do Google é bem mais do que as duas beldades.

É também o verbete da Wikipédia, cheio de números. “O Brasil (oficialmente República Federativa do Brasil) é uma república federativa formada pela união de 26 estados federados e pelo Distrito Federal. O país conta 5.564 municípios, 183.987.291habitantes, bem como uma área de 8.514.876,599 km², equivalente a 47% do território sul-americano.” E dá-lhe número. Outro trecho do verbete Brasil, no item cultura, o ávido leitor é informado sobre quem foi Machado de Assis e que Rodrigo Santoro participou de Lost. Não necessariamente nessa ordem. Provavelmente escrito antes do evento André(ia) Lambertini, o verbete também diz que Ronaldo é admirado mundo afora, tanto quanto a Bossa Nova, que, segundo a Wikipédia, teria tornado a música brasileira mais elitista.

Elitistas, aliás, são as ocorrências que aparecem em seguida. Governo, empresas, editorias de jornalões, tudo que tem Brasil no nome ou nome no Brasil está lá. Digitar BRASIL no Google remete a Volkswagen Brasil, Coca-Cola Brasil, BBC Brasil.

Para enriquecer a crônica e saciar a curiosidade, vale a pena digitar EU ODEIO O BRASIL, que remete a quase 2500 sites. Muitos blogs de brasileiros que chamam o país de bosta pra baixo, dizem estar loucos para se mudar, e seguem ladeira abaixo. Um deles é o Eu Odeio o Brasil, que reúne links para vários outros, sobres coisas odiáveis no país. De padre Marcelo Rossi ao PT, de música sertaneja à Igreja católica, tem ódio para todos os gostos. Um dos textos chama as praias tupiniquins de feias, com água turva, cheia de despejos de esgoto e peixes ruins. Coisa de deixar Diogo Mainardi roxo de inveja.

EU AMO O BRASIL traz 42 mil e duzentas opções, cujas primeiras são de um ufanismo à la Médici. O gigante adormecido, do homem cordial e fraterno, com solo rico, música alegre e blá-blá-blá. Lá pelas tantas dou de frente com um manifesto que diz: “Conto com você para juntos criarmos um novo Brasil irradiando luz todos os dias para todos os dirigentes governamentais nas cores: dourada da iluminação, consciência e discernimento; azul da fé e do poder divino; rosa do amor; violeta da transmutação e branco da paz”. Parece que, com exceção das torcedoras louras, o Brasil do Google é um grande pé no saco.

3.6.08

Butch Cassidy da saúde

Post curto e direto. Link para o blog do jornalista bitânico Adrian Sudbury, de 25 anos, há dois anos lutando contra dois tipos distintos de leucemia, coincidência da qual é o único representante na Terra. Após ter feito transplante, sem sucesso, ele mantém o blog e tem, provavelmente, apenas mais duas semanas de vida. No blog, conta seus últimos momentos, de forma, na medida do possível, nem um pouco triste.

Ele lançou uma campanha para o aumento da doação de medulas ósseas, como forma de, tal qual nas cenas finais de Butch Cassidy, "morrer fazendo a diferença".

1.6.08

Prosa de romance, precisão de reportagem

Livro reportagem de John Hersey, Hiroshima, além de triste narrativa sobre efeitos da bomba atômica, é jornalismo literário da melhor qualidade

Em agosto de 1946, quando o chinês John Hersey viajou até Hiroshima, no Japão, para fazer uma reportagem sobre os efeitos causados na vida de seis pessoas pela bomba atômica jogada um ano antes, grande parte do mundo ainda não havia se dado conta da gravidade do ato. O lançamento da bomba era tido como responsável pelo fim da guerra e os Estados Unidos colhiam os louros por colocar um ponto no conflito de quase uma década. Publicada em uma edição inteira da The New Yorker, a reportagem de Hersey causou imensa repercussão entre jornais e revistas da época, chegando a ser lida na íntegra por uma emissora de rádio americana, a BBC inglesa e de outros países. Quarenta anos depois, Hersey retornou a Hiroshima para mostrar nas mesmas páginas da revista americana como haviam sido as vidas dos seis personagens que protagonizaram a primeira reportagem. Juntas, as duas deram origem ao livro Hiroshima (R$ 37,50), publicado em 176 páginas pela Companhia das Letras em 2002 para dar início à sua coleção de jornalismo literário.

O livro poderia, no entanto, ser perfeitamente confundido com outros romances da editora, por mesclar com maestria jornalismo e literatura, a ponto de ter sido eleito o melhor exemplo do gênero em toda a imprensa americana do século XX. O pé na literatura é tão grande que uma pesquisa no Google com as palavras Hiroshima e Hersey remete a um site que classifica o livro como uma novel – romance, em inglês. Uma a uma, estão ali todas as características de uma boa reportagem. A apuração precisa, com riqueza de detalhes fundamental para desconcertar americanos que ainda faziam piadas sobre a bomba e a viam apenas como mais uma novidade tecnológica produzida pelo homem; a informação tratada de maneira a transcender a frieza dos números de mortos – pelo menos 100 mil pessoas – e feridos; a relativização, quando japoneses deixam de ser mostrados como os inimigos de uma guerra recém-acabada e passam a ser mostradas como pessoas, que têm suas crenças, seus valores e suas razões para acreditar e lutar por seu país. Tudo sem apelar para o fácil maniqueísmo de inverter os papéis e colocar japoneses como vítimas e americanos como algozes. Finalmente, as sutis conclusões de Hersey a partir dos fatos, como quando diz que os sobreviventes da bomba tinham dificuldade para ter filhos, talvez “a natureza defendendo-se de si mesma”.

Os seis personagens escolhidos por Hersey como principais – a jovem Toshiko Sasaki, os médicos Masakazu Fujii e Terufumi Sasaki, a viúva Hatsuyo Nakamura, o jesuíta Wilhelm Kleinsorge e o pastor metodista Kiyoshi Tanimoto – servem de fios condutores para que outras histórias se desnudem, por meio de pessoas que, tal qual num romance, cumprem rápidas jornadas, muitas delas de sofrimento após o lançamento da bomba e a maioria rumo à morte. As horas, os dias, as semanas e finalmente o ano seguinte ao ataque são permeados pelas dúvidas dos japoneses e especialmente dos hibakushas – como passaram a ser chamados os sobreviventes à bomba – sobre o que teria acontecido com Hiroshima. As primeiras teorias, ingênuas, acreditavam que aviões haviam jogado gasolina para em seguida incendiar toda a cidade. A ingenuidade volta a aparecer quando, menos de um mês depois, esses mesmos japoneses, embevecidos, escutam pelo rádio a mensagem do imperador dizendo que a guerra havia acabado – era a primeira vez que ouviam sua voz. Essa passagem é um exemplo perfeito de como há uma grande relativização em relação à cultura japonesa, tão diferente à época da ocidental. Quando retorna à cidade, em 1986, Hersey reconstitui a vida dos seis e mostra a resignação e a capacidade de superar as tragédias particulares que haviam explodido junto com a bomba.

Democrata convicto, Hersey se opôs toda sua vida à fúria militar dos republicanos americanos. Teve, em Hiroshima, a pretensão de que conseguiria mostrar para o resto do mundo e para seu país em especial a desgraça que uma guerra é capaz de produzir. O comportamento dos Estados Unidos, nas décadas seguintes e no início do século XXI, mostrou, no entanto, que ele havia falhado. Caso haja uma nova Hiroshima, não haverá o talento de John Hersey para fazer o mesmo. Nem dele, nem de ninguém.