30.8.08

No tempo dos urubus-malandros

Mercado no Rio de Janeiro do final do século XIX: os trabalhadores da cidade tinham na capoeira um elemento de rebeldia

Onde hoje é a Rua Gonçalves Ledo, no Centro do Rio, um dia já foi a Rua São Jorge. Onde hoje se misturam empresários, camelôs, funcionários públicos e estudantes já foi palco para o encontro diário de dezenas de pessoas que se organizavam em uma grande roda. Éram os urubus-malandros, forma como eram chamados os capoeiristas experientes e astutos. Criada no Brasil, a capoeira vem sendo reconhecida pelo Ministério da Cultura como um patrimônio cultural brasileiro. A consagração de Mestre Bimba, referência nacional no jogo, em 2003, com o recebimento da Ordem do Mérito Cultural das mãos do presidente Lula em 2003, reforçou uma política cultural orientada para sua valorização. A trajetória histórica da capoeira, e, especificamente da capoeira carioca, explica as razões da necessidade desse reconhecimento. Foi realmente um movimento de resistência cultural e política, embora hoje estudos mostrem que a habilidade dos capoeiristas também foi emprestada para senhores e políticos da Corte.

A partir da segunda metade do século XIX, a capoeira se tornou uma marca de tradição da população trabalhadora urbana e rebelde na maior cidade do Império brasileiro, que reunia escravos e livres, brasileiros e imigrantes, jovens e adultos, negros e brancos. Na verdade, o que os unia de verdade era o fato de pertencerem, todos eles, ao último andar da pirâmide social. E eram justamente eles que protagonizavam os “jogos de capoeira”, forma como os policiais se referiam às agressivas lutas entre portadores de navalhas e hábeis praticantes da capoeira. Apesar da fama, o estilo carioca perdeu espaço ao longo do século XX, principalmente por dois motivos. Primeiro, porque entrou em cena a versão baiana, dominada pelos mestres Bimba e Pastinha. Depois, porque o primeiro chefe da polícia da cidade na República, Sampaio Ferraz, a reprimiu com fúria e vigor. E isso também teve um motivo.

Historicamente, na escravidão urbana, a capoeira teve o papel de forjar novas identidades locais entre os escravos. Em artigo para a finada revista Nossa História, Carlos Eugênio Líbano, professor de História Brasileira da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que documentos históricos brasileiros são insistentes em mostrar a capoeira como fenômeno urbano da cultura escrava. “Podemos afirmar ainda hipoteticamente que o nascimento da capoeira se deu nas primeiras grandes cidades do país, Salvador e Rio de Janeiro, ambiente propício, a partir de 1700”, explica o professor. A polêmica se a capoeira trata-se de um jogo ou uma luta é irrelevante, garante Carlos Eugênio, já que na África, especialmente entre os povos bantos (grande grupo lingüístico que domina a África do sul, que compôs grande parte do quadro de escravos trazidos para o Brasil), a luta sempre tem características de dança. “O que a capoeira moderna faz é juntar os dois” – completa.

Tipos sociais da capoeira do século XIX: negros, mulatos, crianças de rua e imigrantes pobres

Ao se debruçarem sobre o estudo da capoeira carioca, historiadores a identificam como um sinal de resistência das camadas populares frente ao poder das elites. No entanto, ao mesmo tempo que enfrentava a ordem policial e a escravidão, os capoeiristas participavam ativamente das lutas políticas dentro dos grupos dominantes, como capangas de senhores da Corte. Relatos Históricos, como os narrados por Plácido de Abreu em seu clássico Os capoeiras, de 1886, dizem que alguns chegavam até a incorporar termos e trejeitos do vocabulário de juízes e políticos da época.

A transformação da capoeira carioca começou com o fim do tráfico negreiro, em 1850. Os escravos africanos iam, aos poucos, sumindo das cidades, pois muitos iam para as fazendas de café, dessa vez por conta do tráfico interno. O ano-chave para a mudança definitiva em sua história foi, porém, com a Guerra do Paraguai (1865-1870). Jogados aos milhares no campo de batalha, os cariocas ganharam o respeito da oficialidade por serem imbatíveis na luta corpo-a-corpo. Voltaram consagrados. A capoeira entrava definitivamente na agenda política da Corte Imperial do Rio de Janeiro, com o entusiasmo da elite conservadora pelo poder marcial daquela gente.

E foi aquela gente que entrou nas disputas eleitorais entre liberais e conservadores da época. Nascia um ódio que duraria muitos anos entre capoeiristas e republicanos. A repressão capitaneada por Sampaio Ferraz deixaria a capoeira do Rio de Janeiro entrar no limbo. Mas se entrou no limbo político, já estava eternizado, no entanto, no imaginário cultural. Ficaram célebres a irreverência, a ousadia e a rapidez dos capoeiristas. Era uma força cultural e simbólica da marginália, que desafiava a elite e suas propostas modernizadoras que traziam junto uma forte marca de exclusão.

Hoje, a capoeira vive um momento muito positivo. Diferentes ações de preservação cultural e difusão da capoeira no Brasil e no mundo vêm sendo desenvolvidas desde a gestão Gil e, Deus permita, continua na gestão de Juca Ferreira. No contexto interno, quem trabalha são os Pontos de Cultura, em diferentes regiões do país, com turmas de capoeira abertas há quatro anos. Internacionalmente, a capoeira é associada como mais um valor cultural da marca Brasil, que Cultura e Relações Exteriores trabalham mundo afora. No ano do Brasil na França, em 2005, a capoeira mereceu exposição, debates e aulas práticas em plena Paris. Os capoeiristas, esses urubus-malandros, merecem.

28.8.08

Dez receitas para matar a fome de pop

Nos cinqüenta anos de Michael Jackson, ouça ranking com suas melhores músicas

Dez álbuns em 37 anos de carreira solo podem parecer pouco para Michael Jackson, artista que mais vendeu discos em todo o mundo, sendo que 108 milhões apenas em Thriller, de 1983, tempo em que ele já estava um pouco amulatado e já ousava nos passos rápidos e sensuais. Mas a pequena quantidade de CDs, grande parte lançada nas décadas de 1970 e 1980, esconde um número bastante superior de sucessos, o que dificulta a eventual seleção de suas músicas mais famosas.

A hercúlea tarefa foi definida pela jornalista americana Michelle Cavanaugh como “ir ao supermercado com fome”, o que dificulta a escolha e nos obriga a levar mais que a razão recomenda e menos que a emoção exige. Sua lista, da qual nos apoderamos, é encabeçada por Billie Jean, famosa mais por seus arranjos que pela letra. Composta em duas semanas para Thriller, a música fala de uma garota que tinha a beleza de uma rainha, apesar de ser quase uma criança, parecendo prever os escândalos de pedofilia com que Jackson se envolveria na década seguinte.

Em segundo lugar, veio Thriller, música que dá nome ao consagrado disco, com sua narrativa que mistura terror e ficção científica em longos 14 minutos e enorme custo de produção – módicos 800 mil dólares da época. Depois disso, a lista de Michelle lembra de uma das mais aclamadas músicas de Jackson, Beat it, do mesmo Thriller, e que disputou com Billie Jean a indicação de música do ano segundo o Grammy. O ranking aponta ainda Don’t Stop Til You Get Enough, Wanna Be Startin’ Something, Bad, P.Y.T. (Pretty Young Thing), Man in the mirror, Smooth Criminal e The Way You Make Me Feel, sucessos suficientes para saciar a fome dos Jacksons maníacos. E todas essas você pode ouvir na seleção feita pelo Textos etc para comemorar o aniversário do cantor, nesta sexta, 29.

Para não ouvir simultaneamente a Rádio Textos etc, basta pausá-la na barra lateral

27.8.08

A rã e o Papa

E eis que a discussão sobre a mistura entre arte contemporânea e religião volta ao Textos etc. Dessa vez, motivada por uma crítica feita pelo Papa Bento XVI à escultura A rã Fred toca o sino, do artista alemão Martin Kippenberger, exposta no Museu de Arte Moderna de Bolzano, na Itália, e que mostra uma rã pregada na cruz como Cristo.

O Papa disse, em carta a Franz Pahl, presidente do Conselho Regional de Trentino-Alto Adige, região no Nordeste da Itália onde fica o museu, que a escultura "fere o sentimento religioso de milhões de católicos que vêem na cruz o símbolo do amor a Deus e da nossa salvação".

Nas últimas semanas, a pobre coitada da rã sofreu algumas restrições. Primeiro, foi tapada com jornais como protesto pela polêmica que protagoniza. Depois, saiu da abertura do museu para o terceiro piso, em uma área mais reservada e mais longe dos holofotes.

Novamente, voltam as questões levantadas no post sobre León Ferrari, artista que tradicionalmente critica a religião pela arte. Mas Martin Kippenberger, morto em 1997, pertenceu a uma escola diferente da de León Ferrari, inclusive como conduz sua crítica.

Nascida na Alemanha, a partir da década de 1970, a Junge Wilde (em alemão algo como juventude selvagem) perdurou até meados da década seguinte e tinha como marca a transgressão ao stablishment. A crítica na escultura da rã crucificada por Martin é, portanto, diferente de León e seu cristo crucificado num jato de guerra, pois não tem o foco tanto no Cristianismo, mas sim no que é estabelecido pelo sistema, como o amor a Cristo. É uma transgressão pela transgressão, sem a crítica pontual feita pelo artista argentino, sobre a relação entre religião e tortura.

26.8.08

A arte do isolamento

Não, não é maquiagem. Sim, é estranho. Seu nome é Kala Kawai e entendê-lo exige mais que um exercício de relativização. Adepto do body modification, o havaiano que implantou chifres dentro da testa e, reza a lenda, cortou a própria língua com fio dental, é um dos expoentes de uma forma de arte popularizada a partir dos anos 90 pela francesa Orlan, que esteve ontem no Museu de Arte Contemporânea, em São Paulo, e estará na sexta, 29, no Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Mas só entendendo o que pretende com as mudanças físicas que essas pessoas promovem em seus corpos seria possível aproximar-se das estranhas criaturas que se tornam.

A arte carnal, dócil nome escolhido por Orlan para chamar sua forma de se expressar, teve início com a performance A reencarnação da Santa Orlan, um conjunto de nove cirurgias plásticas transmitidas via satélite para diversos lugares, entre eles as principais galerias européias de arte. Durante o processo, seu rosto era transformado paulatinamente, ora recebendo chifres não tão protumberantes como os de Kala Kawai, ora ganhando implantes no queixo, nas bochechas e ao redor dos olhos.

Além das cirurgias, as performances, ambientadas em cenários bem diferentes das convencionais salas de cirurgia, tinham como itens da decoração adereços como crânios, tridentes, frutas e legumes. Algumas vezes, Orlan, anestesiada mas consciente, também lia textos ou fazia desenhos com o próprio sangue.

Mas, segundo Orlan, as mudanças nunca lhe geraram uma crise de identidade. Conforme disse ao G1, não está nem aí com as imagens que produziu de si mesma: "porque não fui eu que escolhi o ponto de partida. Não escolhi meu nome, nem a cor da minha pele. Nós somos cidadãos do mundo, receptores de estímulos que vêm dos lugares mais diferentes, da televisão, da internet", filosofou no melhor estilo Caetano.

E seu objetivo com tantas interferências físicas? "Queria falar sobre o quanto se maltrata o corpo das mulheres. A religião propõe um corpo culpado, que deve sofrer. O meu trato era: nada de dor, nem antes, nem depois".

Fica a pergunta: não dava para fazer isso compondo uma música ou pintando uma tela? Afinal, tantas transformações acabam por isolar pessoas como Kala Kawai e Orlan. Se bem que, inconscientemente, essa deva ser a maior vontade deles.

25.8.08

Por dentro da Favela S/A

O jornal O Globo publica desde ontem uma série de matérias sobre a economia das favelas cariocas, mostrando que elas movimentam R$ 3 bilhões por ano apenas no comércio. O conjunto de reportagens recebeu o nome de Favela S/A e é assinada pelo mesmo time de craques que ano passado escreveu Os brasileiros que ainda vivem na ditadura, vencedora (merecidamente) de prêmios e mais prêmios.

Aprofundada, bem apurada, bem escrita, reflete o que há de melhor nos diários impressos cariocas. Matérias desse tipo não só injetam ânimo nas redações e impulsionam carreiras de bons jornalistas, como também contribuem para que a massa de leitores do Globo, composta principalmente pela classe média alta carioca, entenda que os problemas da cidade são bem mais graves que o trânsito do Leblon ou a pedra portuguesa fora do lugar em Ipanema.

22.8.08

Relíquias contra os intelectos do preconceito

Ao criticarem a qualidade da produção da teledramaturgia brasileira, intelectuais de diferentes matizes generalizam e fazem uma confusão entre texto, interpretações, cenários, direção, etc. Esse tipo de erro faz com que o pouco desenvolvimento dos roteiros de novelas ou algumas escolhas cafonas de direção dificultem o reconhecimento de grandes atores que fizeram suas carreiras dentro da TV, como Lima Duarte, Tony Ramos e Glória Pires.

São exemplos de atores que fizeram muito pouco cinema e teatro, mas que conseguiram, muitas vezes com textos fracos, fazer belas cenas na televisão, igualando-se a grandes atores de cinema e teatro, esferas muito mais valorizadas pelos intelectos do preconceito.

Mas toda essa ladainha tem um objetivo, que é apresentar a primeira e tardia relíquia de agosto, coletada nos confins da internet. Fiz essa seleção para a Globo.com, com cenas de Glória Pires em oito novelas e uma minissérie, ao longo dos seus 35 anos de carreira. Destaque absoluto para a cena dela com Regina Duarte, no tempo em que a medrosa tinha mais talento e menos medo. Deboches à parte, a cena é maravilhosa e, não por acaso, a mais longa da seleção. Viva Glória, aniversariante neste sábado e capaz de, nos mais fracos papéis, desmistificar os mais fortes preconceitos.

17.8.08

Oito vezes Caymmi

Tan-tan-tan-tan. Há cheiro de novidade musical no Textos etc, para homenagear artistas do calibre de Dorival Caymmi, o escolhido para estrear a nova seção. Além da Rádio Textos etc, disponível somente para quem acessa o site, você, caro e raro leitor, poderá ouvir seleções das músicas fundamentais da carreira de algum artista, como a feita hoje para Caymmi.

Se a idéia da Rádio Textos etc é oferecer uma trilha sonora para sua leitura dos textos do blog, esta nova seção tem como objetivo entreter sua viagem pela internet, seja no trabalho ou em casa. Basta dar play, minimizar a janela do Textos etc e aproveitar uma incrível, maravilhosa, única e esplendorosa seleção de músicas.

De Caymmi, escolhi todas as citadas no post anterior, e outras mais, como A vizinha do lado, Marina Morena e Acontece que eu sou baiano, totalizando oito músicas fundamentais de sua carreira.

Para não ouvir simultaneamente a Rádio Textos etc, basta pausá-la na barra lateral.


16.8.08

Caymmi e a preguiça sensível

Quem não gosta de samba bom sujeito não é: é ruim da cabeça, ou doente do pé. Transformar em frase o verso composto por Dorival Caymmi, que morreu hoje, aos 94 anos, em Copacabana, um dos cenários que imortalizou em suas canções, seria uma heresia menor que tentar explicar o tanto de Brasil contido nos versos de Caymmi? Talvez, e prefiro abdicar do desafio e não correr o risco, deixando-o para antropólogos, sociólogos e outros ólogos mais treinados.

Não posso deixar, no entanto, de falar sobre a faceta mais irresistível de Caymmi, tão baiana, tão brasileira, imortalizada no Vadinho de Jorge Amado. Um dos mais deliciosos pecados, a preguiça foi talvez sua maior marca. O multimídia Miele, que dirigiu diversos shows da família Caymmi, conta em seu livro de memórias uma história que pode não ser verdadeira, mas resume bem a intensidade de sua baianice.

Um de seus maiores sucessos, Maracangalha, feito para seu melhor disco, Eu vou para Maracangalha (1957), teria sido composto ao longo de anos, verso por verso. Primeiro, tascou no papel o Eu vou pra Maracangalha, eu vou e só alguns anos depois, depois de pensar e repensar em como seria a continuação, lançou: Eu vou de ‘liforme branco, eu vou. Mais um tempo se passa: Eu vou de chapéu de palha, eu vou. E, finalmente, meses depois, conclui a estrofe de quatro versos convidando uma de suas musas para o passeio: Eu vou convidar Anália, eu vou. Daí até conseguir terminar a canção de doze versos, seriam anos e anos.

Sua preguiça, criativa, sensível, doce, regionalista e ao mesmo tempo universal, contemplativa mas extremamente imagética, o fez compor canções simples e profundas, colocando-o na mesma linhagem dos poetas populares com que a nossa música ocasionalmente presenteia nossas Letras (ou seria o inverso?). Sem a sofisticação e ousadia de outros gênios da MPB, como Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil ou Vinícius de Moraes, Caymmi esteve mais próximo de Cartola, ao mostrar o talento de criar o luxo a partir da simplicidade.

Suas músicas louvam o aproveitar a vida, o fazer nada, a integração plena do homem com as coisas boas e cotidianas tão disperdiçadas. Sábado em Copacabana, Samba da minha terra, Eu não tenho onde morar são apenas três exemplos de como o Caymmi way of life se fez fundamental para que outros tantos artistas e movimentos surgissem a partir dele. Por isso tamanha reverência que todos fazem a ele, baianos ou não. Quem acompanhou o noticiário hoje e puder ler o jornal amanhã constatará isso. Dorival é o pai de todos os outros. Dele, todos bebem; a ele, todos se curvam.

O jornalista e escritor Arthur Dapieve disse certa vez, analisando a música Que país é este?, composta por Renato Russo, que a maior reverência que um artista pode receber é ver sua criação enraizada de tal forma na cultura popular que a autoria fosse diluída ou até considerada desconhecida. Como a música de Renato, aconteceu o mesmo com várias composições de Dorival. Quantos sabem quem é o compositor dos versos Só louco/ Amou como eu amei/ Só louco/ Quis o bem que eu quis/ Ah, insensato coração/ Porque me fizeste sofrer/ Porque de amor pra entender/ É preciso amar, porque/ Só louco, louco...? E quem sabia que é dele o Samba da minha terra/ Deixa a gente mole/ Quando se dança/ Todo o mundo bole? Por isso, achei tão bonita a matéria feita hoje pela filial na Bahia da Rede Globo para homenagear mais um de seus filhos queridos que se vai. Músicas compostas há 50, 40, 30 anos cantada por gente de todas as idades. Pescadores, vendedoras de acarajé, gente simples que, como disse Dapieve, conhece mais a música que seu autor.


14.8.08

200 anos depois, a China dá o troco

A recepção dos chineses aos brasileiros - e a todos os outros povos - tem sido exemplar nestas Olimpíadas. Até massagem oferece aos turistas que vão torcer por seus conterrâneos. Mas, ao longo da História, o mesmo não aconteceu no tratamento dispensado por nós, brasileiros, aos chinos.

Como você pode ler em Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI (Ed. Luminatti, R$ 54), livro que escrevi em parceria com o jornalista Adriano Belisário, os chineses foram os primeiros imigrantes (sem contar os portugueses e africanos, é claro) trazidos para servir à economia do país.

Os chineses foram trazidos para cultivar chá em 1815 na Real Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, e, mais tarde, no Real Horto, atual Jardim Botânico. Colocaram em prática um projeto pessoal de D. João para cultivar o produto no Brasil, dispensando as importações e, quem sabe, transformando-se em fonte de riqueza econômica. O número de imigrantes chineses que vieram trabalhar no Brasil não é exato, mas estimativas falam de aproximadamente cem pessoas, provenientes das províncias chinesas de Cantão e Macau. Em 1815, chegaram os primeiros 45 colonos, que, na fazenda, encontraram instalações preparadas especialmente para eles, a mando de D. João. Portões e cabanas em estilo chinês foram construídos próximos a canteiros abrigando arbustos de ervas de chá, com pequenas flores brancas e folhas escuras e brilhantes. Esses canteiros eram cercados por caminhos que misturavam laranjeiras e roseirais, formando belos jardins, tornando a chamada China de Santa Cruz um dos pontos preferidos dos estrangeiros que visitavam a cidade.

Mas o clima paradisíaco da Fazenda Santa Cruz era aparente. As condições a que eram submetidos os chineses não contribuíam para que houvesse uma integração cultural ou social. Foram proibidos de trazer mulheres, para que seus traços orientais não passassem a descendentes brasileiros e tampouco tinham permissão de se aproximar da senzala, para que não houvesse relações íntimas com escravas. Também não lhes era permitido ter relações de comércio, ir à cidade, dormir fora da colônia ou receber visitas.

O sonho de cultivo do chá, acalentado por D. João VI, virou frustração. Ao mesmo tempo que os chineses não conseguiram passar as técnicas de cultivo para os demais agricultores, crescia o plantio do café, outra cultura que podia ser tão rentável quanto o chá e já era muito mais conhecida pelo brasileiro. Com o fim do cultivo nas décadas seguintes, o chá consumido no Brasil passou a ser importado da Inglaterra e a maioria dos chineses se espalhou pelo interior, formando grupos de mascates.

Se, duzentos anos atrás, foram as ambições chinesas as frustradas pelos brasileiros, dessa vez a situação se inverteu. O desempenho brasileiro nas Olimpíadas está, como de praxe, ridículo.

12.8.08

A cativante pretensão de Paulo Coelho

Comprei no dia do lançamento a biografia de Paulo Coelho, escrita por Fernando Morais, menos pelo biografado que pelo biógrafo. Grata surpresa tive eu, que sempre nutri um preconceito gratuito contra tudo que tivesse a ver com Paulo coelho. Mistura de cafonice com esoterismo fora de lugar, o escritor só despertava em mim críticas e narizes torcidos. Pura burrice.

Nunca li nada escrito por Paulo, a não ser uma ou outra de suas colunas assinadas aos domingos no Globo, que, confesso, nunca me agradaram. Mas como poderia não gostar de algo que nunca provei? Eu sabia disso mas o fato é que, como aqueles gafanhotos horrendos que pessoas comem em troca de dinheiro na televisão, eu não queria experimentar O Alquimista, A Bruxa de Portobello ou Onze Minutos. A biografia fez com que eu desse a ele o benefício da dúvida.

Suicida em potencial, internado em manicômios, onde sofreu o pão que o diabo amassou, com quem, alias, afirma até ter se encontrado, Paulo também se afundou nas drogas e foi torturado pela ditadura, embora nunca tenha sido de esquerda. Até que transformou sua vida, ajudou a reformular o rock brasileiro e se tornou um dos autores mais lidos do mundo e numa marca brasileira capaz de ajudar até na candidatura do País à sede da Copa de 2014. Sua trajetória merece, portanto, respeito.

A biografia também resume os enredos de seus livros e alguns parecem interessantes, embora não baste ter uma boa história sem saber contá-la. E é aí que surge grande parte das críticas dirigidas ao autor. Ao analisar as mais agudas, reunidas por Fernando Morais em O Mago, tenho a impressão, no entanto, de que em algumas há os mesmos ingredientes que fomentaram a saraivada de tiros recebidos pelos indenizados por perseguições durante a ditadura, como Cony e Ziraldo: um pouco de cobiça, com pitadas de oportunismo. Tom Jobim tinha razão quando disse que no Brasil o sucesso desperta inveja.

É claro que a literatura de Paulo tem méritos, nem que seja o fato de ser lida por pessoas tão diferentes como uma empregada doméstica brasileira e o ex-presidente Bill Clinton. Além disso, há ainda o fato de muitos terem começado a gostar de ler por meio de seus livros. Críticas literárias podem - e provavelmente - existem, mas não podemos criticá-lo sem nunca ter aberto nenhum de seus best-sellers ou adotar uma postura ressentida por seu sucesso comercial como escritor.

A tempo: quem está curioso para entender o título do post, explico e sacio. Em entrevista a Playboy deste mês, Paulo afirma: “Sou o mais importante intelectual brasileiro”. Como diria a Hebe, é ou não é uma gracinha esse rapaz?

10.8.08

Antropologia da saudade

Há um texto do Roberto da Matta com este título, em que ele explica o motivo dos brasileiros – e outros que falam o português – sentirem saudade. Para ele, somente porque existe na língua esta palavra e, conseqüentemente, existe culturalmente a saudade, que a sentimos. Dessa forma, todas as outras culturas, que não possuem a saudade simbolicamente representada na língua, apelam para outras formas de expressar a falta que sentem, como o yo te extraño, o i miss you ou o je te manque, nenhuma delas capaz de traduzir a complexidade que é sentir saudade de alguém.

Digo complexa porque a própria definição do dicionário é confusa e simplista: "lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las". A etimologia da palavra mostra que em sua raiz está uma palavra compartihada por outras tantas língus: solidão.

É bem verdade que este é o lado triste, pesado de sentirmos saudade. Sabemos que estamos sós, que não teremos naquele momento a pessoa ou coisa de que sentimos falta. A compensação está na sensação boa que a saudade traz, como se, ao senti-la, revivêssemos as experiências que a produziram. Quando lembramos com saudade, por exemplo, da infância e da felicidade trazida pela facilidade com que o mundo então se apresentava, imediatamente nos sentimos sós, por sabermos da impossibilidade da volta dos tempos de irresponsabilidade.

Da mesma forma, hoje, dia dos pais, sou forçado a sentir essa mistura de prazer com um quê de solidão que damos o bonito nome de saudade. Mas que nenhuma explicação, antropológica ou etimológica, seria capaz de contemplar.