23.2.08

Os dois lados de Carlota*

A imagem de Carlota Joaquina que prevalece, em Portugal e no Brasil, é de uma rainha devassa, promíscua, má, invejosa e até assassina. No entanto, a principal personagem feminina do Rio de Janeiro da época pode ter sido vítima de uma historiografia machista e tendenciosa. O estudo de suas cartas feito nos últimos anos mostra um lado da pouco mostrado pela história oficial. Conhecida pela inteligência, perspicácia e grande capacidade de articulação política, a mulher das cartas também é culta, amorosa, maternal e grata. Obstinada e apaixonada pelo jogo político, Carlota foi o tipo de mulher, como gostam de dizer alguns de seus biógrafos, com “alma masculina”. Tinha prazer em tomar decisões e dar ordens, causando estranhamento até mesmo em seus aliados, não acostumados a lidar com uma mulher tão independente para a época. Ser uma mulher tão diferente das do seu tempo pode ter influenciado a história a trata-la com preconceito.


Neta de Carlos III, filha de Carlos IV e irmã de Fernando VII, todos reis da Espanha, Carlota nasceu em 1775 em um dos períodos mais gloriosos da monarquia espanhola. Aos dez anos, deixava a corte para se encontrar com D. João, que tinha dezessete, com quem havia casado por procuração. O casamento, marcado por sucessivas crises, foi agravado com sua participação em uma conspiração para tentar destronar o marido. A gota d’água em sua relação com o marido foi a fuga para o Brasil, decisão por que nunca o perdoou. Cruzar o Atlântico significava se afastar de seus amigos, familiares e do círculo de poder europeu.


No Rio, Carlota se isolou em Botafogo, distante do marido e da possibilidade de fazer e ser alvo de intrigas. O cotidiano na cidade era tão difícil quanto em Lisboa. Começou a sofrer de uma violenta asma, que tirava seu ânimo para circular pela cidade, e era bastante hostilizada pelos que percebiam como estava enfraquecida politicamente com o gabinete do marido. Cada agressão que recebia reforçava seu caráter severo e intransigente. Só ia a São Cristóvão em cerimônias que não podia faltar, mas isso não a impediu de protagonizar mais articulações e acordos políticos que o próprio D. João.


Quando, ainda em 1808, sua família foi afastada do poder por Napoleão, envolveu-se na maior de todas as suas disputas políticas. Ver a Espanha ser humilhada e as colônias espanholas na América caminharem rumo à independência fez com que travasse duas batalhas políticas ao mesmo tempo: retomar a coroa espanhola para sua família e assegurar a posse das colônias. Acusada de querer somente o poder e estimular a independência da região para se tornar a nova rainha, suas cartas trocadas com aliados no Brasil, na Espanha e nas colônias mostram como tinha o desejo sincero de defender os interesses da Casa de Bourbon e não somente a conquista do poder pelo poder. Teoricamente, Carlota estava apta a ser a rainha da Espanha, já que toda sua família estava aprisionada por Napoleão. Seu empenho a levou a vender parte de suas jóias para ajudar sua campanha em Montevidéu, mas o retorno de seu irmão Fernando VII ao trono pôs fim aos planos.


Sua atuação política continuou ao retornar à Europa, em 1821, e se negar a assinar a Constituição liberal portuguesa, alegando que um soberano não deveria se subordinar a ordens de vassalos. Perdendo os direitos políticos e o título de rainha, foi isolada na Quinta do Ramalhão, perto de Cintra, só voltou ao poder no apoio que deu para que seu filho D. Miguel fosse proclamado rei de Portugal. Mãe do rei, morreu em 1830, cercada de poder e glória como nunca teve enquanto foi ela a rainha.


Quanto a sua vida amorosa, pode ter sido bastante animada, se os boatos que a taxavam de promíscua e ninfomaníaca forem verdadeiros. Além da suspeita de que D. João não era o pai de seus últimos filhos, teria sido amante do Marquês de Marialva, do almirante inglês Sidney Smith, e até do diretor do Banco do Brasil, Fernando Carneiro Leão. Este caso lhe rendeu até uma suspeita de homicídio, quando a mulher de Fernando, Gertrudes Pedra Carneira Leão, foi assassinada a tiros ao chegar em casa. Mas nem o assassinato, nem os outros casos possuem provas que o tornem dignos de crédito.


Certo era seu ódio pelo Brasil, daí explicada a antipatia histórica nutrida por ela no Brasil. Pouco antes da partida de volta para Lisboa, em 1821, teria tirado os sapatos no porto e batido as solas no chão, para não levar nem a terra “do maldito Brasil”. Tirando isso, as outras acusações feitas a Carlota, sobre seu caráter e personalidade, dependem da boa vontade da interpretação histórica. Os que amam e odeiam Carlota só entram em consenso sobre sua inteligência, força e destreza para o trato político. Isso, independente da versão histórica, ela tinha de sobra.


* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.