29.7.09

Relíquias - Mussum Day

Hoje faz 15 anos que morreu Mussum, o Trapalhão que disputava pau a pau com Zacarias o título de mais engraçado. No Twitter, foi criado a tag #mussumday (quando alguém posta alguma coisa sobre esse assunto, é só colocar #mussumday que os posts podem ficar reunidos num mesmo lugar), que logo se tornou um dos Trending Topics (tags mais usadas no dia) do microblog.

Para entrar na onda, aí vai uma seção Relíquias em homenagem a ele.

23.7.09

Diretor, se não há fantasia, o que é Harry Potter?

No domingo passado, foi publicada pela Folha uma entrevista com o diretor de TV Roberto Talma (exclusiva para assinantes), que tem nas costas 40 anos de Globo, e que agora comanda o núcleo infantil da emissora. Talma, que lançou na segunda-feira a série Ger@al.com, disse não ver mais espaço para a fantasia na televisão, pois seria impossível concorrer com "emissoras de merda que só mostram desgraça". Leia um trecho de uma de suas respostas:

"O que acontece é o seguinte: que novela você tem que fazer para suplantar aquele menino que sequestra a namorada, a amiga da namorada, fica durante uma semana cercado de policiais com 500 mil pessoas, dão um microfone para esse analfabeto de merda e ele se torna ídolo? O que você tem que colocar para brigar contra isso? Com essa realidade dura, crua e nojenta que nós temos no Brasil? Quer dizer, no mundo inteiro é assim. Torna-se inviável!"

Deixa eu ver se entendi. Quer dizer que a realidade está vencendo a fantasia? Para captar a audiência das crianças seriam necessários desenhos com chacinas, sequestros e traficantes atirando?

Ok. Então Talma poderia responder por que a série de livros e filmes do Harry Potter fazem tanto sucesso com crianças. Ou dizer por que Ziraldo ainda é um dos principais sucessos das bienais de livros e Mauricio de Sousa é o ás dos quadrinhos infantis. Ou, para ficar no assunto TV, Talma poderia explicar por que, na programação do Cartoon Network, ainda fazem sucessos desenhos simples como Tom e Jerry, Scooby Doo e Bob Esponja.

Eu poderia ficar horas enumerando produtos culturais cheios de fantasia feitos para crianças e que dão muita audiência. Já a programação infantil da Globo, com seus terríveis Turma do Didi, TV Globinho e afins, poderia admitir que perdeu a mão.

16.7.09

Três motivos para se orgulhar de Besouro

Ver o trailer de Besouro, filme sobre o capoeirista que virou mito no sertão baino, e que será lançado em outubro, me deixou feliz por três motivos. Primeiro, por ver como estamos fazendo bons trailers no Brasil. Segundo, por ver como estamos variando na temática de nossos filmes e, ao mesmo tempo, contando partes da nossa história - a escravidão - e divulgando a nossa cultura - a capoeira. Terceiro, pelo filme ser de um gênero quase inédito no nosso país, o cinema de ação.

Assista ao trailer e regozije-se você também do filme de João Daniel Tikhomiroff.



Leia sobre os urubus-malandros

15.7.09

Contando histórias de guerra

Um dia, mexendo em caixotes no escritório do pai, o filho caçula de Lourival Sant'Anna, repórter do Estadão que falou sobre cobertura de guerra no IV Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), encontrou um capacete do Exército americano. A peça foi trazida como lembrança da Guerra contra o Iraque, coberta por Lourival. Curiosa, a criança perguntou: "Você vai para as guerras, né? Isso é para te proteger, para você não levar tiro?". Ele, então, tentou explicar ao filho a natureza da profissão: "Não, filho, eu não sou soldado. O papai está lá para contar histórias. Ninguém atira em mim".

Em 23 anos de jornalismo, ele contou histórias de conflitos na Irlanda do Norte, Colômbia, Palestina, Afeganistão, Iraque, Líbano, Kosovo e Geórgia, todas pelo Estado de S. Paulo. As reportagens podem ser lidas no ótimo site www.lourivalsantanna.com, em que ele compila todo o material que produziu como correspondente. No congresso, ele comentou a cobertura da Guerra da Geórgia, usando-a como exemplo para enfatizar quão importante é para o jornalista estar no lugar para entender o que separa dois povos:

"É importante até viver na pele o ódio para entender melhor aquilo".

Lourival em tanque na Guerra da Geórgia (Foto do acervo pessoal de Lourival)







O "viver na pele" a que se refere teve seu ponto alto quando ele quase foi morto três vezes, num mesmo dia. Ao ser abordado por milicianos ossétios, ouviu a frase que, para ele, mostrou como aquela experiência que vivia tinha valor jornalístico: "Pensaram que você era georgiano."

O texto, próximo em muitos momentos do jornalismo literário, é fruto do que Lourival chama de "anotação fotográfica". Tira fotos e anota detalhes diversos para conseguir, depois, transpor o leitor para aquele lugar por meio da descrição hiperdetalhada. Foi assim que fez uma espécie de arqueologia da vida cotidiana do Líbano, depois da destruição de várias cidades do país, na guerra de 2006. Fotografava vestígios das vidas que existiam ali, como um óculos que permanece intacto, apesar de prédios inteiros terem sido destruídos.

Ver de perto a destruição não o impediu de perseguir a isenção.

"Nesse tipo de cobertura, você está focado no esforço de ver. É como a abertura deum texto que fiz na cobertura da Guerra do Líbano, em que escrevi que você deve aguçar a visão e a audição, e esconder o olfato. Só assim você não faz um texto tendencioso."

12.7.09

Todas as emoções

Para dar ainda mais intensidade à overdose de comemoração dos 50 anos de carreira de Roberto Carlos, aí vai a singela contribuição do Textos etc. Minha amiga Nathalia Fernandes, jornalista da Globo.com, fez uma edição de todos os especiais em que o Rei canta Emoções. Muito interessante ver a idade passando e a essência da voz de Roberto lá, intacta e ainda emocionando.

9.7.09

Relíquias: as notas e comentários de E.B. White

E.B. White foi um dos principais colaboradores da revista americana New Yorker ao longo do século XX. Era numa das mais famosas seções da publicação, “Notas e comentários”, que o jornalista (também autor de Stuart Little) criava seus textos mais interessantes. Curtos, mas muito bons. Uma edição especial para a Flip da excelente revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, trouxe alguns desses textos traduzidos, e eu escolhi um para dividir com os leitores do Textos etc. Delicie-se.

Alma americana

Quando soube que o prêmio do National Arts Club seria destinado a um livro que “revelasse a alma da América”, um de nossos amigos mais queridos se sentou e começou a trabalhar. Ele tinha um bom enredo e parecia, pelo menos quando nos despedimos, muito interessado em passá-lo para o papel. Quando o reencontramos, um ou dois dias depois, ficamos surpresos ao saber que ele havia desistido do projeto. Aparentemente, ao ler no jornal pela primeira vez sobre o prêmio, achou que tinha visto 30 mil dólares; mais tarde, ele olhou de novo e descobriu que dizia 3 mil dólares. Fiel à alma da América, ele desistiu imediatamente.

6.7.09

Guimarães Rosa ou João Gilberto

Nada melhor para uma segunda-feira de ressaca pós-Flip do que as reminiscências desses últimos dias em Paraty. Primeiro, quero lembrar alguns pontos abordados por Chico Buarque e Milton Hatoum na mesa “Sequências brasileiras”, uma das melhores dos cinco dias do evento.

Chico acha que histórias e personagens literários podem ter uma força tamanha que os tornam capazes de se impregnar na vida pessoal do autor. Como exemplo, contou uma história vivida por Guimarães Rosa. Certo dia, andando na rua, veio à cabeça de Guimarães a ideia completa de um conto. Chegou em casa e viu que o conto certamente se tornaria um romance. Escreveu, escreveu, até que se viu a tal ponto absorto naquela história, cada vez mais intensa, que preferiu guardar na gaveta o que já havia escrito e deixar de lado o novo livro que começava. Semanas depois, foi acometido pela mesma doença que criara para o personagem de seu livro. Os mesmos sintomas, tudo igual. Depois de curado, passaram-se alguns meses e o romancista, passeando pelo interior de Minas Gerais, deu com um casarão idêntico ao que havia descrito no tal conto/romance.

Chico acha que sua perna quebrada no início do ano foi a herança que recebeu de Eulálio, personagem principal de Leite derramado que também quebra a perna.

Outro momento que vale lembrar foi quando Chico falou da influência de sua música em sua literatura. “Se a frase ou o parágrafo inteiro não estiver cantável, eu recuso”, disse. Depois, ainda sobre a relação entre música e literatura, e sobre o preconceito que as canções sofrem em relação a outros gêneros, Chico disse uma das frases com mais efeito da Flip: “Não sei se Guimarães Rosa teve mais importância do que João Gilberto”.

Também não sei, Chico.

5.7.09

Oficinas literárias em xeque*

Um artigo recente da revista americana New Yorker alfinetou os badalados cursos de creative writting, que se proliferam em progressão geométrica nos Estados Unidos, atraindo pessoas que vêem ali a oportunidade de se tornarem escritores. Hoje, terminou na Flip mais uma oficina literária, formato brasileiro que mais se assemelha aos cursos de escrita criativa americanos. Comandada pelo poeta Carlito Azevedo, a oficina de poesia desta edição da Flip atraiu 30 pessoas, selecionadas por currículo, que viram ali a chance de aprimorar técnicas ou mesmo aprendê-las do zero. Embora vejam virtudes nas oficinas, escritores mais experientes e até principiantes admitem que elas estão longe de conseguir transformar um não-escritor em escritor.

Professora aposentada, Maria de Lourdes Oliveira veio de Uberlândia para participar da oficina de Carlito. Autora do livro de poesia “50 gotas de óleo para minha Candeia”, lançado em 2002, Maria de Lourdes aprendeu na oficina da Flip, entre outros pontos, a importância de não se limitar na poesia contemporânea.

"Também reafirmei convicções que já tinha, como a importância de limpar o texto, da pontuação correta", diz, afirmando ser esta sua quarta experiência em oficinas, que considera extremamente úteis a quem está começando.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, o escritor catarinense Cristóvão Tezza, autor de O filho eterno, vê nas oficinas literárias uma chance para talentos começarem a ser lapidados. Professor de uma oficina de produção de texto técnico em Curitiba, Tezza as encara como uma porta para que novos escritores enxerguem dimensões até então desconhecidas da literatura:

"É impossível, no entanto, formar um escritor ali, até porque ele se faz sozinho, independe de aulas ou desse tipo de exercício".

Tatiana Salem Levy, autora de A chave de casa, concorda que oficinas literárias não formam ninguém. Acha, porém, que a participação é válida, por ensinar algumas técnicas, como a variação de pontos de vista numa mesma narrativa, e por permitir que sejam lançados olhares diversos sobre o seu texto:

"Submeter o que você está escrevendo a outras pessoas é muito importante, essa criação em grupo que a oficina permite é legal".

Quanto a eventuais vícios que uma oficina possa impregnar em um principiante, a melhor vacina, recomenda, é o tempo, que fará o verdadeiro escritor quebrá-los.

Proposta diferente bastante divulgada na Flip deste ano é a do escritor mexicano Mario Bellatin, que coordena a Escola Dinâmica de Escritores, no México. Lá, segundo Bellatin, ele estimula diversas formas de expressão artística, exceto por meio da escrita:

"Não se aprende a escrever dentro de uma escola, até porque isso pode padronizar os textos. O que eu proponho lá é que as pessoas tenham contato com formas diversas de arte para que só escrevam quando a inspiração realmente vier. É muito mais benéfico".

* Publicado originalmente em www.oglobo.com.br

4.7.09

Conti e os dez anos de "Notícias do Planalto"

Gay Talese talvez não saiba, mas hoje terá ao seu lado o autor de um livro com o mesmo peso para a imprensa brasileira que o seu “O reino e o poder”, sobre a história do “New York Times”, teve para a americana. Atual diretor de redação da revista “Piauí”, Mario Sergio Conti (ao lado, na foto de André Teixeira) escreveu há exatos dez anos “Notícias do Planalto”, livro em que destrincha, também com recursos do jornalismo literário, a relação de Fernando Collor com a imprensa, em sua eleição e no impeachment. Com 70 mil exemplares vendidos, a obra despertou mais iras do que amores, ao dar nomes e detalhar situações que contribuíram para que houvesse na imprensa brasileira um ambiente claramente favorável ao ex-presidente.

Para comemorar a data, a Companhia das Letras lançará uma nova edição, de bolso, acompanhada de um posfácio, em que Conti rebaterá críticas feitas ao livro, além de contar em que redações – ou comissões do Senado – estão alguns dos personagens principais daquela história. Em entrevista para mim, ele analisa o que mudou na relação entre imprensa e poder ao longo da década, conta por que saiu da revista “Veja”, publicação que dirigiu durante anos, e dá sua visão sobre a nova escalada do sorridente e outrora carismático Fernando Collor.

Leia a entrevista completa no site do Globo.

Tudo por Chico


Ontem, durante a mesa "Sequências brasileiras", que juntou Chico Buarque e Milton Hatoum, uma cena absurda deixou os seguranças da Tenda do Telão sem saber o que fazer, mas foi a imagem que melhor traduziu o sucesso que a dupla fez. Um homem, embriagado não se sabe se pela bebida ou se pelo afã de ver Chico, escalou a estrutura metálica da tenda e se postou cerca de três metros acima do público. Teve, sem dúvida, visão privilegiada. Ao fim da mesa, porém, foi levado pelos seguranças para o posto policial montado próximo às tendas.

3.7.09

Uma arte (que talvez não seja) universal

Ontem, acompanhando o repórter do Globo Miguel Conde, entrevistei Bernardo Carvalho, e ele observou que havia algumas diferenças fundamentais entre a sua literatura e a do afegão Atiq Rahimi, seu companheiro na mesa "O avesso do Realismo", na tarde de hoje (ao lado, na foto de André Teixeira). Pois foi uma delas que marcou o antagonismo, simpático, porém marcante, do papo da dupla, mediado pela competente crítica Beatriz Resende. Bernardo não acredita na universalidade da literatura, ou em sua capacidade de transpor barreiras e expor de forma incondicional a experiência humana.

"Na China, por exemplo, não há nenhum interesse na literatura brasileira. Não há uma passagem tranquila entre as literaturas de uma cultura para outra. Há uma disputa geopolítica subjacente. A imprensa americana adora dizer que a literatura morreu na França, pois isso interessa geopoliticamente àquele país", diz.

Discordando, Atiq o questiona sobre a condição humana, comum a todas as culturas. Bernardo rebate, sem trégua: "Há literaturas de resistência que não passam pelo humanismo. São paradoxos de difícil circulação", diz, contando em seguida a decepção que causou em nômades da Mongólia, cuja vida acompanhou durante dois meses, para produzir o romance Mongólia. O grupo cortou relações com o escritor ao ler seu romance e descobrir que, em vez de exaltar o modo de vida nômade, eles leram sobre a vida de um homem atormentado com um mundo em que não se reconhece.

"Essa coisa de literatura nacional é um pouco uma camisa de força. Acho que é uma tática de autodefesa de cada país. Enquanto outros países estão fazendo isso, a gente aqui no Brasil acha isso uma bobagem, acha que tem mais é que ser internacionalista", afirma Bernardo.

Lamentando não haver no Afeganistão sequer a noção de uma literatura nacional, Atiq lembrou que foi influenciado pela literatura persa e pela francesa. Por isso, ele se ligou na tradição do romance, que não existe em seu país de origem, muito mais forte na produção de contos e poesias:

"É uma pena não haver essa tradição no meu país. Escrever romances é puxar os limites da nacionalidade ao máximo", conclui.

2.7.09

Como ser verossímil, empático e emocionante

Ainda na mesa sobre as verdades inventadas, Beatriz Resende destacou também a coragem de Arnaldo e de Tatiana em expor as histórias de suas famílias. Arnaldo, por exemplo, mostra um lado negro de seu tio Adolpho Bloch. Mas a tarefa de Sérgio não foi menos extenuante, para ela, ao ter que mostrar uma face negra dos dirigentes comunistas Luiz Carlos Prestes e Antonio Maciel Bonfim, o “Miranda”, que lavaram as mãos em relação ao assassinato de Elza.

"Foi uma história que a esquerda não quis contar por motivos óbvios e a direita não conseguiu contar por incompetência. Sabia que o livro poderia incomodar muita gente, mas tive que ser desabusado em relação à divisão entre direita e esquerda", diz, lembrando que tentou fugir do reducionismo ideológico e quis contar a verdade da foram mais humana que fosse possível.

Arnaldo lembrou que a biografia definitiva é uma falácia. Mais um selo de venda do que algo factível, a ideia de que um livro pode reunir a totalidade da vida de uma pessoa é de uma pretensão sem fim.

"Isso é não reconhecer as subjetividades, não reconhecer as diferentes maneiras de ver uma cena. O livro que escolhi fazer foi bem diferente disso. Quis dar voz às subjetividades, deixando a pesquisa envolver todo esse universo de valores, sentimentos, sofrimentos. Não quis fazer uma redução purista sobre o tema", explica

Em resposta à pergunta da plateia sobre como tornar uma verdade inventada verossímil, empático e emocionante, Arnaldo apontou um único caminho: trabalhar o texto exaustivamente, escrevendo e reescrevendo. Ele, por exemplo, reescreveu seis vezes Os Irmãos Karamabloch. Completando, Sérgio lembrou frase do escritor norte-americano Don Delillo, “Literatura é uma palavra atrás da outra”, para explicar como ele consegue chegar a verdades inventadas com essas três características.

A pesquisa nas verdades inventadas

Beatriz, Arnaldo, Tatiana e Sérgio, em foto de André Teixeira, do Globo

Poucas mesas da Flip tiveram temas tão bem amarrados quanto a que reuniu ontem Arnaldo Bloch, Sérgio Rodrigues e Tatiana Salem Levy, com mediação da professora e crítica Beatriz Resende. Depois de um primeiro conto na coletânea 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, Tatiana partiu para um romance, o que está em discussão nesta Flip: A chave de casa, lançado em 2008. Em Os Irmãos Karamabloch, Arnaldo misturou romance e biografia, baseado na história da família Bloch e centrado na figura de Adolpho Bloch, dono da revista e da TV Manchete. Já em Elza, a garota, Sérgio Rodrigues criou personagens ficcionais para contar a história de Elza Cupello, assassinada pelo Partido Comunista na década de 1930. Cada qual a sua maneira, eles misturaram verdade e ficção e colocaram em xeque a todo momento esses princípios:

"Falar de verdades inventadas é tratar de literatura, pois é nisso que ela consiste", apresentou Beatriz.

Depois de cada um ler um trecho de seu livro, Beatriz levantou a questão da pesquisa nas obras do trio. Afinal, eles fizeram pesquisa, foram a campo apurar, seja na História, seja em fatos privados acontecidos, para dali criar ficção. Qual foi o peso dessas pesquisas na criação literária?

Arnaldo diz que o trabalho do livro começou bem antes do processo de escrever, já que ao longo de sua vida foi juntando memórias e experiências fundamentais para a obra. A gestação do livro foi de 2003 a 2008, já que a Companhia das Letras lhe deu um prazo extenso. Quase concluído, o livro, no entanto, estava seco, frio. O que fez o livro mudar foram duas gravações dadas por um primo, com depoimentos de duas tias de Arnaldo, cujos depoimentos eram ternos e com emoção. Isso o obrigou a reescrever tudo, dando ao livro esse calor.

Tatiana também localiza na infância o início da escrita de seu livro, quando ela conheceu a história de judeus turcos que eram expulsos, mas levavam a chave de suas casas na esperança de voltar. Um tio-avô de Tatiana foi um desses homens. Fez uma pesquisa leve sobre a época, além de entrevistar uma tia-avó idosa, que imigrou pequena para Portugal (Tatiana é portuguesa). Foi aí que chegou em um ponto estranho daquele caminho, que a fez repensar a própria literatura.

"Como escritora, me preocupo muito com a verdade, mas não um verdade dos fatos. Procuro uma verdade da literatura", diz.

A escrita, para Tatiana, é, como disse o Nietzche, transformar em sangue próprio todas aquelas histórias que eu tinha ouvido ou conhecido. A ida a Istambul (na época em que escreveu a obra, ela viajou à Turquia) foi, segundo ela, mais importante para sentir os cheiros e a cor da cidade do que para usar fatos da viagem para o romance.

Já Sérgio lembrou que a relação dele com o assunto sobre o que tratou em Elza era bem mais distante do que a de Arnaldo e Tatiana com seus temas. Não só ele não tinha nada a ver com a história de Elza e do Partido Comunista, como também o livro foi uma encomenda. Depois de receber carta branca do editor da Objetiva, decidiu entregar um livro completamente diferente do encomendado. Criou um livro híbrido, variando com diferentes tipologias os momentos de reportagem e os de ficção, cuja pesquisa teve papel fundamental.

"É importante dizer que ficção não é mentira e tampouco o que entendemos como realidade é verdade. Não é, até porque, é bom dar essa notícia, a realidade não existe", disse, arrancando risadas da plateia.

(Continua)

O making of de Talese*

Embora tenha respondido a apenas três perguntas na entrevista que concedeu a jornalistas no final da manhã desta quinta-feira, na Flip, Gay Talese falou durante uma hora e meia. Só a primeira pergunta, "Como você apura?", rendeu mais de 40 minutos de resposta, em que Talese, para responder, traçou uma espécie de making of de uma de suas reportagens, narrando com o mesmo ritmo encadeado e a riqueza de detalhes que lhe são característicos.

No final de 1999, Talese (ao lado, em foto de André Teixeira) não estava envolvido em nenhum projeto de livro ou na produção de nenhuma de suas habitualmente longas reportagens. À procura do que assistir na TV, parou para assistir à cobrança de pênalti de uma jogadora de futebol feminino chinesa, contra a seleção americana. Era um lance decisivo. Ao ver a menina perder a cobrança, Talese viu que ali havia uma boa história, pois naquele momento esteve em jogo bem mais do que um resultado de futebol. Se marcasse e derrotasse os Estados Unidos, ela poderia influir, por exemplo, no sentimento de seu país, uma potência ascendente, em relação ao outro, considerado por alguns uma superpotência em decadência. Será que ele sentira o peso dessa oportunidade? Que tipo de pressões ou punições sofrera?

Malas prontas, foi à China conhecer a jogadora, cuja história não pôde encontrar em nenhuma publicação que tratou do jogo. Durante três meses em Pequim, nunca conseguiu falar com a jogadora, impedido pelo controle do governo sobre o trabalho da imprensa. Conseguiu, porém, falar com a mãe da menina, e descobriu que naquela mulher, que havia vivido parte das transformações por que a China tinha passado nas últimas décadas, residia uma história tão interessante quanto a de sua filha. Outra grata surpresa veio quando Talese conheceu a avó da jogadora:

"Mais velha, ela havia vivido as transformações da China de Mao Tse-Tung, compondo, então, uma painel de três gerações de uma família, que tinha uma bela história de resignação, caráter e perseverança para ser narrada", explica.

Perseverança, aliás, ele cita como a característica fundamental para se fazer bom jornalismo. "Bater em portas", para ele, seria a essência da profissão:

"Bata na porta e diga que você não é ladrão, gângster ou coisa que o valha", diz, afirmando ser este o motivo de seus sempre elegantes terno e gravata, que acabam contribuindo para uma "boa apresentação".

Outro ingrediente que comporia esta receita de contar boas histórias é deixar o Google de lado, indo até onde está a história, com determinação e curiosidade. É assim, resumiu na última e também extensa resposta, que ele consegue escrever reportagens que permanecem interessantes décadas depois de escritas.

* Publicado originalmente em O Globo

1.7.09

Alumbramento e simplicidade em Manuel Bandeira

Crítico apaixonado e dedicado, Davi Arrigucci Jr. (abaixo, na foto de André Teixeira) abriu a Flip 2009 falando de Manuel Bandeira, o autor homenageado deste ano. Analisando alguns poemas, definindo períodos e iluminando características de Bandeira, Arrigucci frisou a capacidade do poeta dizer coisas complexas de forma simples.


Para ele, Bandeira foi o poeta da passagem da poesia brasileira para a modernidade e foi o moderno que mais leu a poesia tradicional, indo das cantigas medievais à lírica quinhentista portuguesa, passando depois por todos os estilos.

Ele acredita que Bandeira deu um novo sentido ao poético. Espécie de autobiografia, Itinerário de Pasárgada foi o livro em que Bandeira reuniu as reminiscências mais antigas que tinha. Uma corrida de ciclistas, um pátio de hotel, ou qualquer outra lembrança de quando ele tinha cerca de três anos. Bandeira explica no livro que, todas as vezes que voltava a essas memórias quase apagadas, sentia uma emoção diferente. Mais tarde, ligou essas “emoções diferentes” à experiência do poético. Raras as vezes da vida de adulto aquela emoção se repetia. Era a emoção da poética.

A diferença, segundo Arrigucci, entre a emoção poética e a emoção normal do dia a dia é que ela nos dá a sensação de um universo. Esses sentimentos nos dão uma sensação de totalidade completa. Nos abrem para a dimensão do insondável. Bandeira chamou isso de alumbramento (do espanhol alumbrar, que quer dizer parir, mas também pode ser uma iluminação espiritual, um sopro de algo mais).

Esses raros momentos de “emoção diferente” são momentos de alumbramento. É uma espécie de núcleo simbólico da experiência. É uma síntese de uma totalidade. Simbólico porque é um símbolo, que tem um lado metonímico e também uma base de continuidade no concreto.

Isso tem a ver com a simplicidade de Bandeira. Ele cria poesia a partir de uma conversa no bonde, de uma receita de doce, de uma bula de remédio. Pode estar nos amores ou nos chinelos, nas coisas lógicas ou nas desbaratadas. Arrigucci chama de “estilo humilde” esta capacidade do autor. O temo “humilde” refere-se ao princípio do Cristianismo de comunicar coisas complexas de formas simples (como a transubstanciação, por exemplo). Por isso, ele explica, pode parecer que Bandeira está falando de coisas simples, mas está falando de temas muito profundos.

E foi em grande estilo, de forma simples mas conteúdo complexo, que teve início a Flip 2009. Que venha Adriana Calcanhoto e seu show de abertura.