30.1.09

Textosetcetianas: Os rabiscos de Jackson Pollock

O Google ter trocado a logo do site por um quadro de Jackson Pollock, pintor americano que faria aniversário anteontem se vivo fosse, me deu uma boa ideia para uma nova seção aqui do Textos etc. Resolvi batizá-la de Textosetcetianas, não me pergunte por que, pois nem eu sei a resposta. O que eu sei é que todo mês a imagem do alto do blog vai ser o quadro do artista selecionado para a Textosetcetianas da vez.

O estreante, é claro, é o próprio Pollock, cuja parte da obra The Key já ilustra o topo do nosso site, no lugar da colagem que estava lá há meses. Além dela, abaixo há uma seleção de mais seis quadros e uma foto de Pollock. Morto em 1956, ele revolucionou a arte moderna americana ao deixar de lado o simples automatismo psíquico da criação e procurar mostrar o resultado do simples ato de pintar. O movimento é sua maior característica, fruto de um método próprio de criação: ele caminhava sobre suas imensas telas enquanto pintava. Daí ter originado um movimento artístico que ficou conhecido como Action Painting, que acabou sendo a forma que o expressionismo abstrato passou a ser conhecido nos Estados Unidos.

"No chão eu estou mais à vontade, me sinto mais perto, mais uma parte da pintura, já que desse jeito eu posso andar nela, trabalhar dos quatro lados e estar literalmente 'dentro' dela", disse em 1947. Segundo ele, o fato de deixar a tinta fluir naturalmente não o afastava do processo de criação, já que ele podia controlar o fluxo. Admitia, no entanto, que só depois de terminar tinha a noção do que havia feito, do sentido que aquilo tinha.

"Espontânea, livre e instintiva é a pintura de Pollock: é um espaço sem tempo, sem lugar. É o espaço polisensorial. Não há volumes. Há uma sucessão de rabiscos e manchas coloridas", diz o blog Diretório de Arte. Curioso pensar os nomes que ele dava para esse aglomerado de simples rabiscos. Na galeria Textosetcetianas, que você pode ver clicando na imagem abaixo, você percebe isso. Por que cargas d'água o quadro The tea cup (uma xícara de chá) tem esse nome?

Mistérios que tornam ainda mais interessante o prazer de ver a mistura de cores, de formas e, sem preconceitos, de rabiscos.

Textosetcetianas - Jackson Pollock

28.1.09

Os livros do dono da Folha

Em breve devo contar neste blog, menos por cabotinagem do que por curiosidade, a (gostosa) experiência que tive nesse início de ano ao ter de escolher em qual de três das mais importantes redações brasileiras eu iria trabalhar (TV Globo, Folha de S. Paulo ou O Globo). Mas não se afobe não, que nada é pra já. Esse comentário só serve para justificar meu interesse pela lista de livros recomendados por Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S. Paulo e filho de Otávio Frias de Oliveira, dono da Folha morto em 2007. Como não escolhi a Folha (nem a TV Globo), mas sim O Globo, meu interesse por tudo que diz respeito ao mais importante jornal do país aumentou muito. Freud explica...

E por falar em Freud, confesso que me surpreendeu a presença de um livro dele, ultimamente tão rechaçado, nessa tal lista que encontrei hoje no blog Desculpe a Poeira, de Rodrigo Lombardi, jornalista da Abril. Dos sete que Otávio Frias indica, eu faria o mesmo com Crime e Castigo e A metamorfose, o que é raro nessas listas das quais eu sempre discordo. Essa discordância, aliás, é explicada pelo próprio Otávio Frias logo no início do texto.

Colei abaixo a explicação e a lista dele, e aproveito para fazer a pergunta: quais são seus sete livros favoritos? Vale tudo: de Sidney Sheldon a James Joyce! Aproveito também para reforçar a sugestão do Otávio, para que pessoas não acostumadas a ler coisas fora de suas especialidades técnicas tomem coragem para começar por essa lista.


“É difícil transmitir a experiência da leitura. Um livro que foi importante para uma pessoa não será para outra. Toda lista de livros recomendados, além de incerta, é sempre arbitrária. Mesmo assim, ela precisa seguir algum critério.

Esta lista é composta de livros que eu gostaria de ter lido quando tinha 17 anos, época em que é comum estar numa encruzilhada. Claro que podem ser lidos em qualquer época, em outras encruzilhadas. Pessoas que nunca tiveram tempo de ler fora de sua especialidade técnica e agora desejam fazê-lo talvez queiram experimentar alguns destes livros.

Todos os sete (na verdade, quatro romances, uma tragédia, uma novela e um ensaio) são considerados excelentes em seu gênero. Quase todos falam de dilemas aos quais somos mais sensíveis quando jovens, quase todos têm um protagonista jovem. A maioria foi escrita no século XX. São livros para iniciantes: na vida ou na leitura adultas.

Sendo esta lista de ordem pessoal, acrescento dois comentários. Nela deveria constar algum livro de Nietzsche, mas prevaleceu a ponderação de que é um escritor pernicioso para jovens, que não deveriam se desfazer tão cedo de suas fantasias idealistas. O outro é que fiz minha própria lista quando tinha 17 anos, mas evidentemente nunca a segui.

1. A Montanha Mágica, de Thomas Mann (tradução de Herbert Caro, editora Nova Fronteira)

Durante breve hospedagem em luxuoso sanatório suíço destinada a se estender por muitos anos, o incauto Hans Castorp é disputado por dois inquilinos, o solar Settembrini e o noturno Naphta. Se o primeiro encarna o otimismo histórico fundado na razão e na ciência, o segundo solapa suas convicções brandindo as verdades contidas no mal. O debate entre os dois é um exuberante passeio pela história das idéias. Castorp também cursa educação sentimental com a esquiva Clawdia Chauchat, neste livro em que o amor -e a própria sanidade- são tomados como variações da doença. Thomas Mann é um escritor circunspecto, apesar do senso de humor: como numa caminhada pelas montanhas, pode levar certo tempo até que o leitor se adapte ao ritmo.

2. A Metamorfose, de Franz Kafka (tradução de Modesto Carone, editora Companhia das Letras)

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” A primeira frase mais famosa, talvez, de toda a literatura resume o problema narrado nesta desconcertante novela em que um caixeiro viajante amanhece nesse deplorável estado. Embora pareça uma “bugstory” de ficção científica, o conto não apenas omite os meios e motivos pelos quais se deu tão insólita transformação, como a aborda em estilo prosaico, corriqueiro. Note o descompasso entre a extravagância do que é relatado e a forma seca, quase burocrática, com que o autor narra. Muitos dos textos de Kafka ficaram inacabados, mas os outros tampouco têm um desfecho. A história parece se esfumar até desaparecer sem explicações. O enigma pode ser Deus, o desencantamento do mundo moderno ou a própria literatura: o leitor decide.

3. Crime e Castigo, de Dostoiévski (tradução de Paulo Bezerra, editora 34)

Muitos adolescentes se identificam com o “rebelde sem causa” que protagoniza este romance e se deixam embriagar pela atmosfera febril em que ele perambula entre tavernas e bordéis. Raskolnikof é um estudante radical, idealista e ambicioso que se espelha em Napoleão, o mito do homem comum, mas extraordinário, para quem não existem limites. Como de hábito em Dostoiévski, os abismos da experiência humana, onde pureza e abjeção se tocam, são focalizados por um ângulo detetivesco que reconstitui ou -caso deste livro- desdobra um homicídio. Muitos acham que o grande escritor russo é melodramático e prolixo demais para o gosto contemporâneo. Continua sendo, porém, um autor para jovens: seus livros dramatizam, com potência inigualável, os dilemas existenciais que a rotina da vida adulta não demora a soterrar no esquecimento.

4. Hamlet, de William Shakespeare (tradução de Millôr Fernandes, editora L&PM)

Tantas vezes você ainda vai tropeçar com essa peça teatral na vida -filmes, citações, paródias- que o melhor talvez seja ler de uma vez. É considerada quase por unanimidade como a maior obra do maior poeta e dramaturgo de todos os tempos, o que não é pouco. Tem também seus desafetos. Para estes, a peça é longa demais, desenvolve sub-tramas em excesso, é desconexa, confusa e no final, sem saber o que fazer com os personagens, o autor mata quase todos numa carnificina cômica pelo excesso. Para a maioria dos críticos porém, Hamlet cria o sujeito moderno na literatura: alguém que se interroga e se transforma durante a narrativa, revelando espessuras interiores em parte ambivalentes, em parte inatingíveis. De quebra, trechos da mais alta poesia. O triângulo entre pai, mãe e filho, que domina a peça, permitiu a Freud “psicanalisar” Hamlet, reduzindo-o a um caso particular do complexo de Édipo.

5. O Mal-estar na Civilização, de Sigmund Freud (tradução brasileira sob a revisão de Jayme Salomão, editora Imago)

Certos autores dão à sua época não apenas o espírito, mas o quadro de referências e até o vocabulário. É o caso de Dante no século XIV, Voltaire no XVIII e Freud no XX. A influência de suas idéias extrapolou a psicologia clínica para se irradiar por todos os campos da cultura e da arte. Este ensaio é talvez o texto mais ambicioso, ao menos quanto ao tema, do criador da psicanálise: o assunto é o próprio desenvolvimento da sociedade até hoje, o que possibilita a Freud transferir seus achados do psiquismo individual para o coletivo. Em seu esquema de pensamento, as vantagens obtidas com a civilização material dependem de um grau crescente de repressão das energias instintuais, desviadas para tais objetivos de longo prazo. O preço a pagar pela vida em sociedade é uma ampla renúncia ao desejo, que se converte em frustração e enfermidade, daí o mal-estar.

6. O Estrangeiro, de Albert Camus (tradução de Valérie Rumjanet, editora Record)

Meursault perde sua mãe e não consegue sentir nada durante o velório. Numa cidade do litoral argelino, ele atravessa os dias -um passeio de ônibus, um mergulho no mar, uma tarde com a namorada- como se a superfície das coisas tivesse existência própria, embora incompreensível. Sem saber como nem o porquê, ainda que a cena seja longamente descrita, ele mata um árabe com quem cruza ao caminhar na praia, atordoado pelo sol a pino. Assiste, então, ao próprio julgamento como se fosse o de outra pessoa. O isolamento desse personagem num mundo que não faz mais sentido é um dos pontos altos da literatura moderna. Situa também o existencialismo de Camus, para quem o sentido da experiência humana só pode ser determinado pelo agir do próprio sujeito diante de opções que ele é livre para tomar ou rechaçar.

7. O Fio da Navalha, de W. Somerset Maugham (tradução de Lígia Junqueira Smith, editora Globo)

Nos ambientes endinheirados de Chicago, Isabel ama Larry, mas termina se casando com Gray. Entre a vida de aventuras e desprendimento material que o namorado lhe oferece e a estabilidade de um bom casamento, ela não hesita muito. Voltarão a se encontrar; após uma recaída romântica, porém, Isabel, já agora mulher madura, confirma sua decisão anterior. Enquanto isso, após viagens e estudos, Larry se converteu em adepto de filosofias orientais. O livro é um desses romances ingleses amenos e agradáveis, em que os requintes da vida nos círculos elegantes são descritos com graça e contrapostos, no caso, à cativante personalidade “alternativa”, pré-hippie, do herói. No desfecho, uma penetrante e esclarecedora discussão sobre religião, vida e morte.”

17.1.09

Taxi driver

Um amigo (não daqueles amiguinhos que levam o nome por uma dessas convenções bobocas da vida, mas daqueles que levam por merecimento - e levarão existências afora) acaba de chegar dos Estados Unidos, onde foi passar Natal e Réveillon. Mal ele pôs os pés fora do avião, fiz uma encomenda: que tal contar para os milhões de leitores do Textos etc suas impressões da América em crise? Que país você encontrou, com seu olhar de cineasta que sabe como contar uma boa história? Depressivo? Eufórico? Blazé? Ao ouvir a resposta positiva ao convite, relaxei, pois sabia que em breve meus leitores receberiam um belo texto. Com vocês, o resultado, assinado por Luís Gustavo Ferraz, cineasta, mineiro e meu amigo.

Taxi driver

por Luís Gustavo Ferraz

Em julho de 2007, eu estava de férias em Cascais, balneário vizinho a Lisboa, Portugal. Uma das melhores coisas de lá era o esquema de empréstimo de bicicletas pela secretaria de turismo. Foi assim, pedalando, que conheci as praias da cidadezinha e adjacências. Um dia, quando parei para comer um sanduíche numa dessas praias, um sujeito se aproximou e me pediu a bicicleta emprestada, para fazer uma entrega de não-lembro-o-quê. Ele disse que voltaria em 10 minutos.

Desconfiado como bom mineiro, em condições normais eu teria dito não, constrangido. Mas após seis meses de intercâmbio na Europa, disse sim. É que ao longo desse tempo fiquei muito impressionado com a solidariedade, a hospitalidade ou o que chamo de “espírito de albergue” dos jovens europeus. Conheci gente de quase todos os países da região, em parte graças às viagens que fiz e em parte graças aos europeus em intercâmbio na Espanha, onde morei. O programa de intercâmbio entre as universidades de lá, o “Erasmus”, é muito intenso.

Tudo isso, porém, é um preâmbulo para falar de outra viagem, a minha segunda saída do Brasil, quase um mês atrás. A minha irmã, Paula, fez 15 anos, ganhou de presente uma viagem aos Estados Unidos e eu, o irmão sortudo, ganhei de presente a missão de acompanhar, proteger, traduzir e agasalhar a caçula da família no exterior. Enquanto a viagem à Europa fora um intercâmbio acadêmico, esta última foi simplesmente um passeio; mas isso não evitou que eu fizesse inúmeras comparações, algumas exageradas e outras com alguma razão, entre esses dois pedaços do planeta, afinal os dois únicos que conheço fora do Brasil.

Além da empolgação natural de quem pretende se divertir à beça no país mais rico do mundo, entre musicais da Broadway e montanhas-russas de parques temáticos, parti com a expectativa extra de conhecer a “América” num momento diferente, em que a tradicional pujança econômica dá lugar à maior crise desde 1929. Mas o fato é que cheguei a Nova York, porta de entrada por excelência daquele país, e não encontrei nenhum sinal palpável da crise, além das manchetes dos jornais e da TV.

Com a iminência do Natal, as ruas estavam apinhadas de gente, comprando, comprando, comprando. Papai Noel não parecia economizar um centavo, apesar da crise que se instalara definitivamente em outubro passado. O que havia era uma atmosfera contagiante, todos com seus pacotes e apressados para adquirir o próximo, tudo coberto de neve e iluminado com muito neón. É claro que vários dos felizardos eram turistas estrangeiros, mas a maioria eram nova-iorquinos ou turistas americanos – você percebe pelo sotaque e pelas feições.

Apesar da imensa concentração de pessoas, o contato com o outro era bem menor do que eu havia visto e vivido em Madri e na Europa de forma geral. Difícil ver gente se conhecendo num bar ou restaurante, quando a garçonete quer que você saia logo para que entre o próximo cliente. Tive a impressão de que esse raciocínio fordista perpassa todas as situações sociais e de que todas as situações sociais se desdobram em situações de consumo – o que atingiria o ápice exatamente no Natal, quando a troca de dinheiro por produtos se intensifica sobre os balcões. Digo que é uma “impressão” porque é bem possível que essas comparações acabem em generalizações injustas, que não aprendi a evitar, apesar das aulas de antropologia. A Europa, muito embora tenha desenvolvido um elogiável senso de comunidade, ainda padece, paradoxalmente, de muito nacionalismo e xenofobia.

Só consigo compreender e explicar de uma forma a grande festa do consumo que vi, em meio a uma crise tão aguda: os americanos são mestres na produção de espetáculos. Enquanto a CNN confirmava as expectativas, dizendo que aquele seria o pior Natal para o comércio em muito tempo, nada disso transparecia no clima de feira da Quinta Avenida. Há uma TV de LCD em cada cômodo e um SUV na garagem de muitos lares americanos, mas, de repente, não há dinheiro para pagar o teto que abriga tudo isso. Assim estourou a bolha das hipotecas, primeiro grande sinal da crise que estava por vir. O espetáculo das aparências escondia (e ainda esconde, acredito) muita coisa.

Na era do virtual, os bancos emprestam grana que não existe para gente que não pode pagar. Os cidadãos são irresponsáveis, sim, mas a questão é muito mais profunda: existe toda uma lógica de consumo que os estimula a gastar. Tradicionalmente, os Estados Unidos são um dos países que menos poupam em todo o mundo, e não é à toa que nestes tempos difíceis haja uma campanha publicitária incentivando o povo americano a economizar. Foi só no primeiro dia em Orlando, início da última parte da viagem, que conheci alguém que parecia realmente disposto a atender ao chamado dessa publicidade bastante incomum.

O sujeito se chamava Albert e era engenheiro, mas, desde novembro, dirigia todas as noites o táxi que então nos levava de um dos parques da Disney de volta para o hotel. O carro era da cooperativa do irmão, e com o dinheiro extra ganho ao volante ele estava se precavendo contra a crise. Lamentou sobre os crescentes índices de desemprego e o fiasco generalizado da era Bush. Sobre Obama, falou esperançoso: “Ele é muito jovem e pode não ter muita experiência, mas nós precisamos de mudança”. E, com precisão econométrica, completou: “Dentro de seis meses a um ano, tudo terá voltado ao normal”.

200 voltas de montanha-russa depois, a crise se fez esquecer. O espetáculo venceu. Ele é o que me encanta de verdade na cultura americana. Veio 2009, um réveillon em plena Disney, repleto dos melhores votos e perspectivas. Eu provavelmente só teria pensado na crise de novo quando o amigo e blogueiro Guilherme me pediu que escrevesse este texto – caso não tivesse acontecido o seguinte: no penúltimo dia da viagem, um homem de paletó e calça brancos se aproximou de mim num ponto de ônibus. Disse que precisava de dinheiro para tomar um táxi e chegar a tempo ao funeral da filha, por isso tentou me vender o seu relógio de pulso, um Omega que parecia legítimo, por meros 20 dólares.

Dei os 20 dólares para ele e não aceitei o relógio. Posso até ter sido vítima de um golpe, mas sinceramente acho que não fui. Nem é essa a questão, para mim. A questão é a necessidade de criar uma relação de compra e venda numa situação como aquela. Sem fé na solidariedade, o homem se agarrou naquilo que, mesmo em tempos de crise, rege uma parcela grande demais, a meu ver, das relações sociais na América, e que talvez esteja na origem mais profunda da própria crise: a troca material em excesso.

Em Cascais, quando um estranho também havia me abordado com uma história que poderia ser mentira, eu também havia lhe dado crédito, exatamente como agora. Naquela ocasião, o sujeito voltou com a bicicleta em perfeito estado dentro dos 10 minutos prometidos, tempo que eu havia levado para comer o meu sanduíche de queijo e atum numa praia de Portugal. Um ano e meio depois, na Flórida, tirei outro dos meus sanduíches de viagem da mochila. À primeira mordida, uma história puxou a outra, uma viagem puxou a outra e, enquanto o homem tomava o táxi com os meus 20 dólares, voltei a fazer comparações.

15.1.09

O tempo não para - nem o filme

Estreia amanhã o documentário sobre os Titãs, Titãs, A Vida Até Parece uma Festa, que tive o prazer de assistir no último Festival do Rio, a convite da produção. O filme é feito todo a partir de material filmado pela banda durante 21 anos, entre 1986 e 2007. São cenas dos bastidores a que ninguém nunca teve acesso, como o processo de composição do grupo, a escolha das músicas que entrariam ou não num disco, as polêmicas como a prisão de Tony Beloto, quando ele foi flagrado com drogas, e outras coisas mais.

Muitas histórias ainda são do tempo em que os Titãs ainda eram Marcelo Frommer e Nando Reis também. As despedidas dos dois são contadas, sendo que eles preferem manter a versão (que até pode ser verdadeira) de que Nando saiu numa boa. A morte de Frommer e a mensagem que todos eles gravaram juntos uma coletiva de imprensa sobre o acontecimento também está lá e é o momento mais bonito - e triste - do filme.

A edição do filme, dirigido pelo titã Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves - que dirigiu o clipe Epitáfio, em 2002 -, é o mais impressionante, pois encadeia com destreza uma grande quantidade de material de arquivo, nem sempre bem filmado ou com boa qualidade. O filme não para. Em momento nenhum você deixa de bater o pé e até de cantar as músicas de uma das melhores bandas pop brasileiras.

Abaixo, coloquei o vídeo de uma entrevista que eu filmei para a Globo.com no dia da exibição do Festival. A tempo: a tal Ângela a que o Branco Mello faz menção é a mulher dele, a atriz Ângela Figueiredo.

12.1.09

Não, não se vá...

São 9:19 da noite e aproveito para escrever no intervalo comercial de A Favorita, novela das oito da Globo que termina essa semana, apesar dos milhares de snifs que eu e tantos outros telespectadores não cansam de enxugar. João Emanuel Carneiro, a primeira novidade em duas décadas entre o primeiro time de novelistas da emissora, merece todo o mérito por esse sucesso. A Favorita, ao contrário de sua antecessora, Duas Caras, não pretendeu romper com nenhum paradigma do folhetim. Pelo contrário. Reafirmou todos eles, capítulo a capítulo, sem vergonha de ser novela. E das boas.

O mistério entre quem era a mocinha e quem era a vilã até deu contornos de transgressão ao folhetim, mas eles restringiram-se ao primeiro terço da novela, como, aliás, sempre foi previsto. Até a maravilhosa revelação da vilania de Flora (a angelical Patrícia Pillar) e da divindade de Donatela (uma Cláudia Raia sempre ameaçadora, com aquelas suas pernas gigantescas e sensualmente perigosas), ficamos num delicioso jogo de quem-matou-Odete-Roitman. Depois de colocados os pingos nos is, o jogo deu lugar a uma gastrite que só piorava a cada gancho (jargão para se referir ao final de uma cena ou capítulo que praticamente obriga o telespectador a estar no dia seguinte em frente à TV) criado por João Emanuel. E, vamos combinar, ele sabe criar gancho como ninguém!

Mas não foi só de bons ganchos que se fez o sucesso da novela que ora termina, para desespero dos suicidas em potencial. O ambiente noir criado pela produção, a trilha incidental meio de máfia italiana, a criativa abertura de cores escuras, uma São Paulo soturna como só ela sabe ser, tudo isso transformou Triunfo na Gotham City do ABC paulista. Até o climão sertanejo foi digerível.

É claro que houve erros. Esquecer que se tem uma Rosi Campos no elenco é imperdoável. Mas tudo bem. As atuações brilhantes, nada menos que brilhantes, de Patrícia Pillar, Ary Fontoura, Milton Gonçalves, Lilia Cabral, Mauro Mendonça e Murilo Benício compensam eventuais desvios. O crescimento de atores como Cláudia Raia, Cauã Raymond e Mariana Ximenes também foi bom de acompanhar. Duro foi aguentar uma ou outra careta de Cauã e todas as de Carmo Dalla Vechia. Seu Zé Bob foi sofrível.

Os favoritos

Nem um pouco doloroso foi assistir desde o dia 2 de junho aos seis capítulos semanais da trama que foi de 37 pontos de audiência no mês de estreia a quase 50 nos capítulos-chave. Graças ao bom Deus o brasileiro, em se tratando de novela e partida de futebol, sabe reconhecer o que é bom.

8.1.09

Maysa não é TV

O mais interessante em Maysa, minissérie da Globo no ar desde segunda-feira, não são os diálogos de Manoel Carlos, a produção esmerada, tampouco a trilha sonora baseada nas músicas da cantora, que não chega a ser novidade. O fantástico ali é a fotografia. Engana-se quem pensa que está assistindo TV. Aquilo ali é cinema, e não poderia ser diferente, já que é um diretor de fotografia de cinema que está por trás das duas câmeras digitais modelo Arri-D21 que filmaram toda a trajetória de Maysa, de 1950 até sua morte.

O nome dele é Affonso Beato, um dos melhores profissionais da área no Brasil, fotógrafo de filmes tão diferentes quanto A rainha, de Stephen Fears, Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar, e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, clássico de Glauber Rocha.

Devoto assumido da película, Beato teve que usar uma tecnologia digital que simula a película para clicar a minissérie, já que os custos de se filmar em película as dezenas de horas de uma produção como essa encareceria demais o projeto. Também é curioso pensar como são diferentes as fotografias de trabalhos como A rainha, Tudo sobre minha mãe e essa minissérie, Maysa. Beato pertence a uma linha de diretores de fotografia que não impõem uma única estética a todos os filme que clicam. Ele entende que cada trabalho é um trabalho e procura servir à história com um determinado tratamento, condizente com o que aquela obra exige.

Basta assistir à minissérie para se perceber que dessa vez a escolha também foi acertada. Coloquei abaixo um trecho do capítulo de ontem, cujo enquadramento inicial é genial, embora não saibamos quem é o dono da ideia, o próprio Beato ou o diretor Jayme Monjardim.

6.1.09

AI-5 exige didatismo

Didatismo é muito importante quando você é leigo em um assunto, e um tanto chato quando se tem um pouquinho mais de conhecimento sobre o tema. Mas, nesse post, perante a triste revelação de pesquisa do Datafolha, de que somente dois de cada 10 brasileiros já ouviram falar no AI-5 (o Ato Institucional nº5, baixado em 1968 pelo ditador Costa e Silva, e que revelou a verdadeira face da ditadura miliar), o didatismo será um tanto quanto necessário. Fiz um texto simples e informativo que pode ser lido em três minutos para tentar suprir essa lacuna. Caso você não seja leigo e já tenha ouvido falar em AI-5, não prossiga com a leitura, e vá direto para o maravilhoso hotsite que a Folha de S. Paulo fez sobre o AI-5. Lá, você encontra uma reconstituição da reunião em que se sentaram os homens que governavam o país, para acabar com qualquer perspectiva de liberdade que ainda restava.

Caso tenha decidido continuar, imagine um deputado subir no palanque de Brasília hoje e se inflamar contra políticos corruptos, fazendo um discurso bem estruturado e conclamando as meninas brasileiras a não namorar jovens políticos que tivessem qualquer vínculo com partidos corruptos. Provavelmente, o deputado seria alvo de chacotas de seus pares e de maldosas notinhas das colunas sociais no dia seguinte, mas certamente teria sua liberdade de expressão resguardada. Mas em 2 de setembro de 1968 não foi isso que aconteceu. Deputado pelo MDB da Guanabara (estado que hoje é a cidade do Rio), Márcio Moreira Alvez fez um empolado e corajoso discurso em que colocava o dedo na ferida que já ardia há quatro anos, desde o golpe militar: a tortura promovida pelo Exército brasileiro contra seus opositores.

Ao receber a palavra, Márcio, do alto de seu idealismo, fez um dos discursos mais corajosos que aquela tribuna, tão vilipendiada, já havia presenciado. Criticou o crescente militarismo e a dura repressão em que, desde março, com a morte do estudante Edson Luiz, o país havia megulhado. "Creio Sr. Presidente, que é possível resolver esta farsa, esta 'democratura', este falso entendimento, pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre civis e militares deve cessar, pois só assim conseguiremos fazer com que esse país volte à democracia".

Criticando então o colaboracionismo dos civis com o regime militar, Márcio sugeria que as moças não dessem bola para os jovens oficiais e tampouco os pais deixassem seus filhos enfileirar os desfiles do 7 de setembro, dali a cinco dias, por mais que suas escolas fossem coagidas pelo governo. Concordar, para ele, era também uma forma de torturar, por mais que quem o fizesse não fosse um militar.

O governo tentou responsabilizar criminalmente o deputado pelo discurso que fizera e recorreu ao STF para dar início ao processo. Mas, para isso, era necessária a autorização do Congresso, já que a Constituição de 1967 previa a imunidade dos parlamentares. Em uma das sessões mais dignas do Parlamento brasileiro, não foi permitida a abertura por uma grande diferença de votos a favor de Márcio: 216 contra 141.

A votação enfureceu a linha dura da ditadura, encabeçada por militares como o ditador Costa e Silva e o então chefe do Sistema Nacional de Informação (SNI), o futuro ditador Médici. Costa e Silva reuniu então seu ministério e o vice-presidente para que decidissem se baixavam ou não um novo ato institucional, o 5º em quatro anos. Esse novo ato daria imensos poderes ao presidente da República e aprofundaria o regime autoritário em que estávamos afundados. Agora, o ocupante da cadeira de Costa e Silva poderia fechar o Congresso Nacional e outros legislativos, cassar mandatos eletivos, suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, intervir em Estados e municípios, decretar confisco de bens por enriquecimento ilícito e suspender o direito de habeas corpus para crimes políticos.

Centenas de pessoas foram cassadas, entre deputados federais, ministros do STF, senadores, um ministro do Supremo Tribunal Militar (STM), além de professores de universidades públicas (Fernando Henrique Cardoso entre eles). Emissoras de televisão e de rádio e redações de jornais foram ocupadas por censores. Artistas como Marília Pêra, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram apenas os primeiros a conhecer as carceragens da polícia política. Ao todo, 333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos em 1969 (dos quais 78 deputados federais, cinco senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos e 23 vereadores). O Congresso permaneceu fechado até outubro, quando foi reaberto para eleger Médici.

O fato de 80% dos brasileiros desconhecerem esse grave fato contra da história recente do país mostra como é frágil nossa democracia, que se vangloria de eleger um sociólogo e um ex-operário de partidos opostos, mas sacode os ombros para a ignorância e o analfabetismo político de seus cidadãos.

De mais, feliz 2009, ano que vai dar trabalho, mas promete ser pra lá de recompensador.