9.2.09

Relíquias: Bem mais que a chica dos turbantes

Do texto de Ruy Castro, na Folha desse domingo (íntegra é exclusiva para assinantes), sobre Carmem Miranda, a cantora que faria cem anos hoje e que foi muito mais do que a chica dos turbantes e frutas na cabeça que enlouqueceu Hollywood:

De setembro de 1929 a maio de 1939 (com direito a uma curta prorrogação em setembro de 1940), Carmen Miranda gravou 281 músicas no Brasil, em discos avulsos de 78 rpm -uma música por face, como se dizia. Se na época já existisse o álbum convencional de 12 faixas, isso equivaleria a 23 LPs -mais de dois por ano, durante dez anos. Se se fizer os cálculos baseados nas avaras possibilidades dos 78s, Carmen lançou uma média de 2,5 músicas por mês, todo mês, chovesse ou fizesse sol, durante aqueles dez anos. Nenhuma outra cantora brasileira, antes, durante ou depois, chegou perto de tais números - até hoje.

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Mas, mais do que isto, Carmen levou um jeito novo de cantar -esperto, moleque, malicioso- em oposição ao "sentimento" ou "sinceridade" dos outros cantores. Com um drible de língua, podia-se ouvi-la sublinhar certas palavras ou extrair conteúdos insuspeitos de um verso.

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Mas o poder da máquina é arrasador. Quando Carmen foi trabalhar nos Estados Unidos, teve de deixar para trás seu grande instrumento de trabalho -as sutilezas da língua portuguesa- e trocá-lo por sua graça como dançarina e comediante e limitar seu repertório a músicas mais simples, como "Mamãe Eu Quero" e "Touradas em Madri". Em Hollywood, por imposição da indústria, os turbantes, os balangandãs e as saias só fizeram crescer. Nada de mal nisso -mas esta foi a Carmen que o mundo passou a conhecer e que, ironicamente, o Brasil também pôs no lugar da cantora que tinha quebrado tudo.


Mas a relíquia em questão, garimpada nos porões do Youtube, é o documentário Carmen Miranda, de 1969, dirigido por Jorge Ileli. O anúncio pelo Repórter Esso de sua morte e a comoção gerada pela notícia são o ponto de partida de Ileli. Divirta-se com o filme, dividido em duas partes.



1.2.09

Como crianças num carrossel

A metrópole e a vida mental, um ensaio de 1903 do sociólogo alemão Georg Simmel, é perfeito para se ampliar uma das discussões subjacentes ao filme O lutador, que estreia no próximo dia 6 de fevereiro. A história gira em torno de Randy "Carneiro" Robinson (interpretação impecável que rendeu uma indicação ao Oscar e o Globo de Ouro de melhor ator a Mickey Rourke, o galã anos 80 de 9 1/2 semanas de amor), um lutador de meia idade decadente, que já fez muito sucesso, mas agora enfrenta as consequências de uma vida desregrada e é impedido de continuar lutando.

Embora o ingresso valha por diversos outros motivos, como o bom retrato que faz de ex-famosos que não conseguem lidar com a distância dos holofotes, o que mais me impressionou no filme foi a brutalidade das cenas de luta livre, que mostram uma carnificina à la Paixão de Cristo (não o evento religioso, mas o filme de Mel Gibson). E é nesse ponto que me lembrei do ensaio de Simmel, que fala das consequências da vida na metrópole sobre o indivídio, e explica como, para conseguir viver em grandes cidades, o homem vai aos poucos anestesiando-se e incorporando como naturais diversas experiências que vive. Aplicada ao cinema e aos meios audiovisuais em geral, a idéia de Simmel nos faz pensar como sucessivas cenas de violência e carnificina de filmes como Paixão de Cristo, Silêncio dos Inocentes, Tropa de Elite, acabam por acostumar o espectador, que passa a se chocar cada vez menos com esse tipo de imagem.

Nas cenas de briga de O lutador - muito bem filmadas por Darren Aronofsky -, os adversários usam grampeadores uns nos outros, cortam-se com giletes para aumentar a quantidade de machucados no rosto e enfiam arames farpados na pele para rasgar o tecido e fazer jorrar ainda mais sangue. É impossível evitar o desconforto na cadeira do cinema ou deixar de ouvir as expressões de incredulidade da parte da plateia que ainda não se anestesiou e se questiona como pode existir aquilo.

Na verdade, a razão para entender por que dois homens sobem num ringue e perdem litros de sangue enquanto se flagelam, ou ainda para entender como pode existir público que aplaude uma atrocidade dessas, é respondida numa frase de Randy "Carneiro" Robinson. Ao ser alertado pela stripper Cassidy de que poderia infartar caso entrasse novamente numa luta, Randy responde que ele só se machuca de verdade quando sai do ringue.

A beleza do filme está em mostrar como isso, que para muitos é uma selvageria, é tão humano quanto o sobe-e-desce de crianças num carrossel. A barbaridade de grampos pregados na carne e tecidos rasgados é a forma de vida escolhida por esses gladiadores contemporâneos. Às vezes, quem sabe, pode realmente ser menos dolorosa.