30.4.09

Obama é coisa de cinema

Como o cinema e a TV americana prepararam o imaginário coletivo para a eleição de um presidente negro



Agora que o governo de Obama completa 100 dias, lembrei que, já faz um bom tempo, li um excelente artigo no New York Times (infelizmente sem tradução), falando sobre como o cinema e a televisão americana prepararam o imaginário coletivo daquele país para a eleição de um presidente negro. Citando diversos atores que representaram presidentes negros (Morgan Freeman em Impacto profundo, Chris Rock em Um pobretão na Casa Branca, Dennis Haysbert em 24 horas), o artigo resgata com os negros vêm sendo representados e alerta contra o risco de se achar que Hollywood ainda não estereotipa negros.

Nessa trajetória, lembra o texto, é importante a gente observar como heróis negros contribuíram para mudar essa concepção. Will Smith em Independence Day é um bom exemplo. Mas, bem antes desses heróis negros, uma longa jornada foi travada por pessoas como Sidney Poitier, o primeiro ator negro a ganhar o Oscar e durante anos um emblema na luta pela integração racial. Em filmes como Adivinha quem vem para jantar(Sidney Poitier na cena do filme, com Katharine Houghton e Spencer Tracy) e O Sol tornará a brilhar, o cinema conheceu o que era o negro americano comum, exatamente igual ao branco, é claro.

Uma segunda fase foi iniciada, segundo o artigo, com Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (sweetback é uma gíria dos guetos americanos para homens bem-dotados), de Melvin Van Peeble's (foto), que hipersexualizou o homem negro no cinema. Daí para o maniqueísmo em que negro só podia ser policial ou bandido, santo ou sóciopata, foi um pulo. O negro fora da lei virou uma nova mania e o auge pode ter sido Armação perigosa, que projetou o sensacional Morgan Freeman. Até hoje muitos personagens vão nesse tom. O segundo americano negro a ganhar o Oscar (por Dia de Treinamento, em 2001), Denzel Washington, é exemplo.

Outro tipo criado no cinema americano e que ainda persiste é o negro provocador, engraçado, capaz de, olha que feito, fazer uma plateia branca superar o preconceito e gargalhar. E foi aí que vieram Chris Rock e Eddie Murphy, que também passou a encarnar, com o tempo, outro estereótipo - o do pai negro. O artigo lembra de Dr. Dolittle, uma referência óbvia desse tipo de representação.

A última seara reservada aos negros seria a do negro messiânico. Will Smith e seus À procura da felicidade, Eu sou a lenda e Hancock estão aí para provar.

24.4.09

Relíquias: o muro nas favelas, segundo DaMatta

O título dessa Relíquias seria "Leitura obrigatória", mas o Ancelmo se antecipou a mim e, dez dias atrás, assim chamou o texto que o antropólogo Roberto DaMatta publicou no Globo, sobre os muros nas favelas cariocas. Gosto de quase tudo que o DaMatta escreve, mas este texto, em especial, é imperdível. Trata-se de uma reflexão que todo carioca deve fazer e, por que não?, todo brasileiro. Mesmo passados 30 anos de Carnaval, malandros e heróis, um dos livros fundamentais para entender o Brasil, Roberto DaMatta continua imprenscindível.

O problema do muro no Brasil

"As casas americanas não têm muro. É um índice psicológico. A vida de comunidade não compete com a vida de intimidade. É uma continuação, se não for, ao contrário, uma fonte".
Alceu Amoroso Lima, "A Realidade Americana" (1955)


Aqueles primeiros brasileiros que visitaram os Estados Unidos — gente do porte e Monteiro Lobato, Anísio Teixeira, Érico Veríssimo e de Vianna Moog — deram-me régua e compasso para “ler” o Brasil. Porque, num sentido implícito, como desvendaram os antropólogos na figura pioneira de um Gilberto Freyre (que por lá andou, tornando-se mais brasileiro), ao descobrir a América, redescobriam o Brasil numa complexa dialética e presenças e ausências. Só os idiotas viajam para dizer que foram, comeram, compraram e viram e não aprenderam coisa alguma!

A observação que abre essa crônica alinhavou toda uma interpretação da vida social brasileira que expressei num conjunto de trabalhos lidos, usados, criticados, recalcados e ignorados.

Entre nós, a casa murada, com estátuas de leões nos seus limiares e cachorros ferozes nos seus quintais, defendia-se da rua. Nos Estados Unidos, prossegue Alceu Amoroso Lima: "A vida em comunidade precede à vida de intimidade. O geral, nesse terreno, antecipa-se ao particular. O público ao privado. Não há homem público (...) que não tenha a sua altura, os seus ordenados ou rendimentos e até mesmo a sua dieta posta em pratos limpos. Não há barreiras entre a sala de visitas, a sala de jantar e até mesmo os quartos. Tudo é público." E, um pouco mais adiante, com profundidade característica e sem os labirintos retóricos, típicos dos presunçosos que infestam o nosso mundo público, arremata: "A comunidade mata a intimidade naquilo que tem, por vezes, de mais precioso. As linhas suprimem as entrelinhas. A vida superficial se desenvolve em detrimento da vida profunda" (pág. 41 da obra mencionada).

Ou seja, na América não há - como tenho reiterado no meu trabalho - contraste ou paradoxo entre as
normas da casa e da rua. Para bem e mal, ambas - intimidade e vida pública - são expressões de um mesmo e único conjunto de leis escritas no papelório jurídico e - como dizia Rousseau - nos corações.

Quando visitei os Estados Unidos, em 1963, tive o mesmo choque. Não havia muros. A igualdade como valor (e como causa perdida a ser incessantemente perseguida e implementada) suprime muros e conduz a uma terrível transparência. Um dos preços da tal democracia boa de falar, complicada de fazer e duríssima de praticar, é derrubar muros. Mas eis que, neste Brasil democrático, estamos pensando em construí-los em volta de favelas como um modo "ecológico" de proteger a Natureza!

A Grande Muralha do Rio de Janeiro - terra do carnaval, da praia e da mistura aberta -, prestes a ser edificada, não terá nada a ver com ausência de coragem política para zonear a cidade, com o uso dos instrumentos apropriados - fiscalização, policiamento, aplicação da lei, distinção plena e clara do legal e do ilegal -, mas será parte da "questão ecológica". No passado, quando éramos mais honestos e cada qual sabia o seu lugar, os escravos viviam enclausurados em senzalas; hoje, usamos o ideário da correção política e falamos em proteção ambiental para segregar os mais agressivamente desiguais.

Construindo um "muro ecológico" mudamos, como convém, os termos do problema. Não se trata mais de conviver com uma avassaladora pobreza historicamente engendrada por um sistema que odeia a igualdade na prática, para incensá-la no altar do politicamente correto. Não! Trata-se, isso sim, de proteger a Natureza. A proteção da Natureza racionaliza a solução definitiva inapelável (e portanto ditatorial) para a pobreza em massa que envergonha (e ameaça) os que residem ao seu redor. Quando descobrirmos mais invasões, a culpa terá sido do muro, não nossa.

De minha parte, eu - um conservador de carteirinha e já em várias listas de paredão - continuo achando incrível que se continue a pensar que um muro (e não um programa pra valer de educação primária, secundária e de igualdade em geral) vai estancar a desigualdade; tal como no período escravista pensávamos que a Lei do Ventre Livre ia, um belo dia, liquidar espontaneamente a escravidão.

Um muro para deter o avanço da iniquidade social que nós não conseguimos sequer equacionar, não vai deter coisa alguma. Antes de realizar tal monumento ao nosso gosto pela sacralização da desigualdade em escala estupidamente grandiosa, vale a pena pensar numa coisa óbvia. Todo muro tem dois lados. Se do lado de cá, ele impede o avanço do nosso descaso para com os pobres; do lado de lá, ele vai servir de trincheira, casamata e torre para os que se aproveitam da pobreza "criminosamente" e não apenas pelo voto. Com o muro, concretiza-se o que o Zuenir Ventura diagnosticou como uma cidade partida que, murada, será irremediavelmente repartida.

23.4.09

W., Cheney e os nazistas

Por coincidência, na mesma época em que chega ao Brasil W., filme de Oliver Stone sobre o governo Bush, seu antigo vice-presidente, Dick Cheney, disse que os métodos aplicados pela CIA nos interrogatórios com supostos terroristas geraram resultados benéficos aos Estados Unidos. Quem assistiu ao filme sabe que ele mostra Cheney, no filme interpretado por Richard Dreyfuss, sugerindo ao chefe o uso de técnicas não convencionais nos interrogatórios.

Ou seja, a velha tortura. Ainda que tenha algumas restrições à obviedade de Oliver Stone, o filme tem o mérito de colocar pingos nos is do vocabuláro americano. É aquele sujeito, com aquela equipe, que eles elegeram e reelegeram. Foi aquela guerra, sem razões, que eles apoiaram. Ok, o país mais rico do mundo foi enganado. Mas o filme mostra que nem todos ali estavam sendo tolos. Os asseclas de Bush – e ele próprio, na minha opinião – sabiam o que estavam fazendo. Obama decidiu revelar como eram essas técnicas especiais de interrogatório, mas disse que ninguém será punido, já que apenas seguiam ordens na época tidas como legais.

É errado comparar situações históricas tão distantes, mas, neste caso, é difícil resistir a fazê-lo e até dar uma exagerada. Não eram esses os argumentos usados pelos oficiais nazistas em Nuremberg?



Tanque de links
Em W., ex-presidente Bush é visto como bufão
Oliver Stone discute W. com plateia de SP hoje
Crítica do New York Times

22.4.09

Cinema e jornalismo de primeira

O letreiro que abre o filme Mataram a Irmã Dorothy, em cartaz nos cinemas nacionais desde a semana passada, já revela que o documentário a seguir é, na essência, um trabalho jornalístico. Com habilidade de repórter, o diretor Daniel Junge denuncia o absurdo da morte de Irmã Dorothy e mostra os bastidores das investigações e do julgamento do mandante e dos executores da missionária americana, que foi assassinada com seis tiros em fevereiro de 2005, em Anapu, no interior do Pará. Dá uma espiada no trailer.



Embora não haja imparcialidade na forma como Junge conta a história (o que, diga-se de passagem, não é um problema no cinema), é respeitado ali um princípio básico do jornalismo – a isenção. Os argumentos dos dois lados – dos advogados de defesa dos acusados e do promotor – são expostos tal qual foram apresentados. E eles falam por si: Dorothy Stang foi assassinada a mando de um fazendeiro local que seria preterido pela implantação do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, a principal bandeira da freira americana.

Como reportagem, a forma como o diretor organiza a informação se destaca, assim como a qualidade dos depoimentos que ele obteve de todas as partes envolvidas, incluindo os assassinos. Usando abundante material de arquivo de reportagens com Irmã Dorothy, Junge edita com sabedoria entrevistas e imagens feitas nos julgamentos dos acusados. Entre o documentário clássico – que desenvolve uma argumentação para comprovar uma tese – e o cinema de observação – que se propõe a mostrar, teoricamente sem interferências, uma situação - Mataram a Irmã Dorothy é, além de cinema, jornalismo de primeira.

19.4.09

O céu dos nossos cachorros - final

Liberta, a Sasha gozou pouco a alforria. Começou a perder a força nas patas traseiras e quase não se levantava. Praticamente cega, só nos enxergava quando chegávamos bem perto. À grama, ela também não ia mais para as necessidades. Estivesse onde estivesse, na hora que fosse, ela não se controlava. Na dela, ficava o dia inteiro na mesma posição e só circulava para fazer suas duas ou três rondas diárias. Ainda assim, se fazia presente pelos latidos altos e intimidadores. No início do ano, quando percebi que em breve ela chegaria aos 10, brinquei que ela iria enterrar a todos nós.

Mas não. Morreu ontem, depois de uma madrugada indigna de sexta para sábado. Pôs muito sangue pelo nariz, em coágulos. Sofrendo barbaridades, não podia mais viver sem a vitalidade que expunha, quando reivindicava o mesmo espaço dentro de casa que a Baby tinha, ou quando punha suas enormes patas brancas na janela da cozinha e, sorrindo, com o linguão pra fora, clamava por um pãozinho.

Discutimos, na sexta à noite, dar a ela o mesmo final que demos à Bonnie. Contra a eutanásia em humanos, concordei em relação à Sasha, mas não sem dor. Os católicos dizem que os cães não têm alma, embora sejam criaturas de Deus. Já o filme Fluke – lembranças de outra vida me lançou a dúvida se eles realmente são ou não espíritos. Sem poder responder, optamos pelo sacrifício do Scooby. Minha mãe e minha irmã, mais uma vez no front do problema, disseram que ela parecia serena e aliviada antes de receber a injeção.

Lá no céu dos cães, que desde crianças somos levados a imaginar, ela deve ter encontrado a Baby ou, quem sabe, ter sido recebida por ela. Será que o acerto de contas já foi feito? Talvez façam as pazes ao perceberem que, além do ódio mútuo, há em comum o amor que ambas dedicaram a minha mãe, a mim, a minha irmã e ao meu cunhado. Aqui embaixo, só resta muita saudade e a certeza de que, de onde estiver – se é que está em algum lugar - ela e todos nossos caninos estão nos protegendo e mandando altíssimas doses do que eles mais sabem dar: paz, conforto, atenção, lealdade, amizade, carinho, e muito, muito amor.

O céu dos nossos cachorros - parte II

As últimas que se mudaram para nossa memória foram a cocker spaniel Baby, ano passado, e a Sashinha, ontem. Duas personagens de um mesmo carma, as biografias das duas se misturam, pois uma viveu para odiar a outra. Tiveram a relação mais doida que já acompanhei no mundo animal. Exceto a feminilidade, se estranhavam em tudo. A Baby era pequena, caramelo, com aquelas enormes orelhas penduradas. Extremamente carente, perturbou os donos até conseguir se tornar cachorrinha de madame, com direito a não querer compartilhar o jardim com os demais cães e a frequentar o espaço VIP de dentro de casa. Já a Sasha era o oposto. Grandalhona, estabanada, quase um potro, foi para o lado de fora tão logo completou quatro meses. Independente, só exigia atenção em dois momentos: quando a Baby estava dentro de casa, o que a fazia se sentir rejeitada (com razão), e quando oferecíamos a ela um de seus pratos favoritos: pão francês. Exceção da máxima dos opostos que se atraem, o excesso de diferenças entre Sasha e Baby foi explosivo.

A cocker, medindo pelo menos um quarto da Sasha, impunha toques de recolher, cerceava sua liberdade de ir e vir e a enquadrava como se ela fosse a dog e a Sasha, a cocker. Tímido, quase envergonhado de seu tamanho, o Scooby aceitou durante muitos anos sua condição de excluído. Mas nós, eu em especial, nunca a excluíamos. Fazia de tudo para que se sentisse amada. E isso, posso dizer, ela era. Comprada num canil perto daqui de casa, a Sasha veio com a missão de nos proteger depois de um assalto que sofremos na porta de casa, quando levaram nosso carro. Talvez tenha sido por saber desse seu dever que ela, como a Bonnie, tenha teimado tanto em ficar entre nós. Para uma raça que dificilmente chega aos 10 anos, em maio próximo ela alcançaria a marca.

Acho que muito da sobrevida que ela teve foi pela morte da Baby, durante uma briga entre as duas, no início do ano passado. Terceiro confronto, aquele foi fatal. Entrando no cinema, atendi o telefone e corri para casa, desesperado, quando ouvi minha mãe gritar:

- Filho, vem pra casa, a Sasha matou a Baby. Foi horrível, vem logo, pelo amor de Deus!

Corri, como se pudesse ajudar, mas foi em vão. A lógica animal tinha prevalecido e a Sasha, como uma negra que se alforriava, havia estraçalhado a Baby, que por tantos anos havia sido sua feitora. Minha irmã, meu cunhado e minha mãe tentaram fazer tudo. Tentaram apartar até com uma cadeira de ferro, que partiu no dorso da dog. A pequena e quase fascista Baby era sacudida no ar pela Sasha. Além da Baby, o derrotado ali fomos nós, que vimos como é inútil a eterna tentativa de humanizar os bichos de estimação.

Continua no próximo post

O céu dos nossos cachorros - parte I

A ideia para essas linhas chegou há umas semanas, acompanhada da intuição de que em breve minha cachorra, a dog alemão Sasha, estava para subir. Mais de um metro de altura, provavelmente uns 60 e tantos quilos, toda preta, peito e patas brancas, a Sashinha se mudou ontem de manhã para a minha lembrança. E, posso dizer sem titubear, lá estará para sempre – ou até a senilidade vir e, imperiosa, roubar também minhas memórias caninas. Sempre tive cachorros, com ênfase no plural. Já chegamos a ter seis de uma só vez. O Scooby (nós a chamávamos assim, já que era da mesma raça do personagem do desenho), pelos quase dez anos que nos protegeu, com seu porte de guarda, seu latido intimidador, sua postura de ataque, entrou no seleto hall dos cães inesquecíveis da minha casa.

O primeiro a participar desse grupo foi o Oscar, beagle que minha mãe e meu pai compraram em 1980, dois anos depois de se casarem. Nunca conheci um canino que tenha vivido mais que o Cazinho (todos nossos cães recebem nome e, de lambuja, alguns apelidos. Durou, acho que não por acaso, quase o mesmo tempo do casamento dos meus pais. Morreu aos 17, em 1997; o casamento faleceu pouco antes, em 1996.

Na mesma época dele, marcou sua pata na calçada da memória a terna e eterna Baal, a primeira pastora alemã que nos protegeu, acompanhou e deu amor. A segunda, espécie de reencarnação da fidelidade da Baal, foi a Bonnie, dona de um olhar dócil e compreensivo que só as mães têm. Apesar de nunca ter tido filhotes, ela foi mãe de várias gerações que por aqui passaram. Ajudou a criá-los, mesmo que não fossem pastores como ela, mostrando como deviam se comportar, a que ordens obedecer, como brincar. Com a gente, ela acompanhou barras pra lá de pesadas. Lembro, pequeno, de abraçá-la na busca do conforto que só os amigos dão. Certamente cônscia da sua importância, não se entregou à velhice e resistiu o quanto pôde à morte. Cega, vítima de sucessivos derrames, sem andar, a decisão de sacrificá-la foi dolorosa, mas necessária.

Duas das educadas pela Boninha foram as labradoras Brida e Larissa. Do tipo amarelo, tinham diferentes os focinhos e os olhos. A primeira tinha fuço marrom e olhos verdes, a segunda era mais tradicional e sempre ostentava sua pureza de raça com os olhos escuros e o nariz preto. Ambas morreram precocemente, antes de completar três anos, deixando vazio o espaço de alegria que os labradores preenchem tão bem.

No território dos machos, além do Oscar, reinou o Sutter. Meio pastor alemão, meio vira-lata brasileiro, tinha a personalidade mais curiosa que por aqui já latiu. Quando jovem, gostava de murar a hera numa coreografia que parecia combinada com o cachorro do vizinho. Cada um do seu lado, os dois iam e voltavam, latindo, estranhando-se, tentando marcar o terreno já divido pelos seus donos e pelo concreto. Mais velhinho, tornou-se mais reservado e dava confiança para poucos.

Continua no próximo post

Novidades no Textos etc

Quem se coça para vir ao blog e não se contenta com as atualizações que recebe no e-mail já deve ter percebido algumas das novidades que o blog vem implementando, como parte de sua Política de Comunicação para 2009. Depois de acaloradas discussões entre nossos 27 diretores, em evento realizado este mês na Costa do Sauípe, o Textos etc decidiu:

- Abraçar o Twitter: o microblog mais famoso do mundo é soberano e quem a ele não se unir será alijado do mundo capitalista. Concluído isso, temos agora uma poderosa ferramenta de comunicação, atualizada ao longo do dia com notinhas, links, dicas e escabrosos comentários deste que vos fala. Para quem já tuíta, é só procurar por textosetc. Os demais podem acompanhar pela barra lateral do blog.

- Demitir a equipe responsável pelo Rádio Textos etc: aquilo ali tava um saco. Agora, para ouvir música no blog só pelas Seleções Musicais ou em eventuais Relíquias.

- Criar o Tanque de links: algumas matérias terão, ao pé do texto, bons links para quem quiser ler, ver ou ouvir mais sobre o assunto. A novidade já foi implementada no post sobre o compositor de Lobão tem razão.

- O Textosetcetianas, seção que mensalmente decora nosso blog com a obra de algum artista plástico, seguirá firme e forte.

Basicamente é isso. Deitem e rolem, mas sem excessos.

16.4.09

Relíquias: O garoto do Festival da Canção

Na semana de lançamento do novo álbum de Caetano Veloso, Zii e Zie, não há relíquia que deva ser mais lembrada do que a lindíssima defesa que Caê fez de Alegria Alegria no Festival da Canção, em 1968, a qual, é bom lembrar, o autor deste prestimoso blog só viu em vídeo. Ao vivo, assisti a um show dele e de Milton Nascimento, no Canecão, quando da época do lançamento do álbum com músicas criadas para o filme O Coronel e o Lobisomem. Se ouvi-lo hoje impressiona, na época ele devia dar um nó na garganta. Pelo menos é isso que acontece ao ver o garoto de voz jovem e ar despretensioso arrebatar a plateia com uma música tão revolucionária esteticamente como era naquele momento Alegria Alegria. Espia aí:



Tanque de links:
- Crítica que Marcus Preto publicou na Folha de S. Paulo
- No Globo: Antonio Carlos Miguel elogia composições, apesar do marketing
- Ouça Perdeu, A base de Guantánamo e Lobão tem razão

15.4.09

Por que parar, parar por quê?

Foi estranho e triste quando, há duas semanas, a agente literária espanhola Carmen Balcells, representante de grandes nomes da literatura latino-americana, como Isabel Allende e Mario Vargas Llosa, disse ao jornal chileno La tercera que seu cliente mais importante (responsável por mais de um terço de sua receita), o colombiano Gabriel García Márquez, "provavelmente não irá escrever nunca mais". A notícia foi estranha por ter sido divulgada pela agente e não por ele. E triste porque ele ainda é um dos melhores escritores em atividade. García Márquez foi, sem dúvida, o autor que mais li, influenciado talvez pelo magnífico Cem Anos de Solidão.

Não só era falsa a notícia, negada peremptoriamente por Márquez, como ele disse ao diário colombiano El Tiempo que "a única coisa certa é que eu não faço outra coisa a não ser escrever". Melhor assim.

Aproveitando o gancho, o Idéias & Livros, suplemento literário do Jornal do Brasil, foi a campo e publicou, no último sábado, um mosaico com as respostas de vários escritores à pergunta: o que o faria parar? O resultado foi ótimo. Cony disse que é definitiva sua aposentadoria da literatura (pelo menos, ainda contamos com suas ótimas colunas na Folha) e defendeu que é importante saber a hora de parar.

Outros pesos pesados, como João Ubaldo e Sérgio Sant'Anna, garantiram que ainda escreverão por muito mais tempo. "Quando eu era jovem e pouco vivido, tive a impressão de que a fonte secaria logo. Concordo totalmente com quem diz que o escritor escreve o mesmo livro toda vida, mas acho que esse mesmo livro vai se enriquecendo, com a vivência", disse Ubaldo.

Sérgio escreve um romance ambientado em Praga para a coleção Amores Expressos (aquela que levou vários escritores para morarem um período numa grande capital do mundo e lá criarem uma história de amor). Aproveitou para dar a receita: "Sou leitor de E. M. Cioran, meu autor de 'ajuto-ajuda', que sempre fez pouco caso das ambições literárias, como aliás de todo o resto, e considera que o ser humano deve sair desta para nenhuma muito discretamente".

A matéria vale ser lida também porque os repórteres Alvaro Costa e Silva e Alexandre Werneck fizeram a mesma pergunta a escritores mais novos e não tão consagrados, como Cecília Giannetti, autora do bom Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, e Joca Terron, de quem nunca li nada, mas já respeito pelos elogios que a crítica literária Beatriz Resende faz a ele.

14.4.09

Figurinha de braço erguido e bigode absurdo

A revista Piauí publicou este mês alguns cartuns de uma série do caricaturista e ilustrador alemão Achim Greser, chamada Der Führer Privat (A Vida Privada do Führer, em que Hitler é exposto em toda a banalidade e ridículo de seu eventual cotidiano sem poder.

Passados quase setenta anos desde que Charlie Chaplin (com O Grande Ditador, de 1940) e Ernst Lubitsch (com Ser ou Não Ser, de 1942) satirizaram o nazismo, retratar o Führer em sua roupagem mais risível continua sendo quase tabu. Achim Greser, ao contrário, se dedica a apontar para o ridículo da figurinha de braço erguido e bigodinho absurdo, escondida pela máquina de propaganda do Terceiro Reich. (...) usa um traço deliberadamente ingênuo, quase infantil, para retratar Adolf Hitler como ele menos gostaria de ser visto: em toda a sua banalidade.


Escolhi meus favoritos, mas outros podem ser vistos no site da revista ou no livro Der Führer Privat (editora Tiamat, Berlim). O que você acha de fazer humor com Hitler?







13.4.09

Nem Poliana nem apocalipse

Trecho da Entrevista da 2ª, na Folha de S. Paulo, com o consultor americano James L. McGregor, que vive há 22 anos na China, me fez pensar sobre a cobertura que a nossa mídia está fazendo da crise:

"O governo quer manter a sociedade feliz e confiante. Eles controlam a mídia, que vive repetindo "as coisas vão bem, estamos melhor que no resto do mundo". Como resultado, os chineses não estão deprimidos como os ocidentais.
Enquanto isso, nos EUA a mídia mata o espírito, o ânimo. O discurso é apocalíptico."

Li isso e fiquei, meio de brincadeira, meio sério, pensando no que é melhor. É claro que é sempre preferível viver a realidade do que a anestesia, mas, às vezes, deve ser gostoso ficar suspenso num mundo cor de rosa... Achar que tudo é uma maravilha, que se vive num país perfeito. Só uma mídia controlada faria isso. Mas, é sempre bom frisar, uma mídia sem controle não é sinônimo de isenta.

No Brasil, além do inerente (e real) noticiário negativo, há o interesse político em aproveitar a situação para minar a popularidade de Lula. Desde o início de 2006, quando os efeitos do mensalão pararam de agir sobre as pesquisas, tenta-se, sem sucesso, baixar os índices de aprovação dele. A crise econômica é a grande chance. James Carville, marqueteiro da campanha de 1992 de Bill Clinton, cunhou a já vulgarizada frase "É a economia, estúpido!" e, não sem razão, apontou que é nos bolsos dos cidadãos que os governos são realmente avaliados. As manchetes vêm se apegando a isso e sempre acham alguma forma de ligar o governo às causas dos problemas que surgem.

Mas, cá entre nós, é preciso? Se o governo não conseguir diminuir os efeitos negativos, é claro que os índices de aprovação vão baixar. Ao criticar por criticar, a mídia esvazia o discurso e perde credibilidade. Entre o mundo de Poliana chinês e o apocalipse da cobertura brasileira, o melhor, para a mídia, para os leitores, para o país, seria a isenção.

12.4.09

A casa do roteiro

Hoje me deparei com um site de layout e proposta simples, mas rico para quem gosta de cinema. O Roteiro de Cinema é um depósito de referências sobre, obviamente, roteiro cinematográfico. Livros, softwares, grupos de internet, notícias, lista de roteiros para download, cursos, serviços, entidades, notícias sempre atualizadas.

Eles já dispõem, entre outros, de 60 roteiros de longas, 45 de novelas, 210 de curtas e 14 de documentários. Sim, há gente que escreva roteiro para documentários. José Carvalho (O primeiro dia, Deus é brasileiro), roteirista que entrevistei aqui há um ano, é um dos que defendem a importância do script para dar a necessária estrutura narrativa ao documentário.

Mesmo que a sua não seja aprender a escrever textos para a telona, é uma delícia ver os roteiros, como eles são feitos, e até, quem sabe, assistir a um filme com o script na mão. Eu já fiz isso e recomendo. Lá no site, tem roteiro para todos os gostos. De capítulos da novela Celebridade, da TV Globo, ao excelente roteiro de Cidade de Deus, escrito por Bráulio Mantovani (indicado ao Oscar pelo trabalho). Divirta-se e boa semana.

10.4.09

Punk tipo exportação

Não sei por que cargas d'água não lembrei de postar aqui no blog os comentários sobre o show do Simple Plan, a que assisti, a trabalho, na última semana de março. Sei que no jornalismo notícia velha é notícia morta, mas acho que essa ainda tem lá seu frescor. Espero que sim. Para quem conhece pouco ou nada sobre a banda, como eu antes de receber o convite para o show, preparei uma seleção de algumas músicas mais famosas. Está logo depois do texto.

Embora eu soubesse do relativo sucesso que eles fazem no Brasil, confesso que me surpreendi ao ver a banda canadense fazer borrar o rímel de quase todas as garotas e, vá lá, garotos que se acotovelaram no Citibank Hall para assistir à etapa carioca da atual turnê, que misturou músicas dos três álbuns do grupo. Abstraindo a compreensível euforia dos fãs, de visual mezzo emo, mezzo teen, o show foi um belo repeteco de repertório, brincadeiras, gestos e truques já feitos em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia e Recife. No dia seguinte, o grupo ainda se apresentaria em Belo Horizonte.

Pierre Bouvier (voz), Chuck Comeau (bateria e voz), David Desrosiers (baixo e voz), Sebastian Lefebvre (guitarra e voz) e Jeff Stinco (guitarra) podem se orgulhar de ter um público fiel no Rio de Janeiro. Mas nem tão amplo como das outras vezes que vieram à cidade. O Citibank Hall estava pela metade.

"O show ter sido marcado num dia de semana prejudicou muito, porque o público deles é principalmente adolescente. As pessoas têm aula amanhã", tentava justificar uma fã responsável pelo site do grupo no Brasil.

Mas os que lá estavam se esbaldaram com o pop punk (muito mais pop do que punk) do grupo, que completa dez anos em 2009. O hit Generation abriu o show e deu play nas lágrimas dos fãs. A cada música, era uma nova sessão de amigas se entreolhando e gritando "É aquela!". Algumas até, por que não?, se beijando. E foi nesse acorde que viram outras também famosas, como I’m just a kid, Addicted, I’d do nothing e Perfect, do álbum No pads, no helms... Just Balls (2002).

Do segundo disco, Still not getting any (2004), vieram os dois maiores sucessos no Brasil, Shut-up e Welcome to my life, além de Jump, Crazy, Me against the world e Untitled, que, para ser executada, requereu uma operação repetida em quase todos os shows do grupo mundo afora. As luzes se apagam, os fãs acham que é só um daqueles momentos em que devem gritar freneticamente por bis, e, tchan tchan tchan, o vocalista Pierre Bouvier aparece no fundo da casa de espetáculos e, uau, pega todos de surpresa. Ou melhor: não pega ninguém de surpresa, já que fã de verdade já estava cansado de ver o truque repetido em escala globa nos vídeos da banda no YouTube.

As músicas do terceiro e mais recente álbum, Simple Plan (2008), tiveram um significado importante para fãs mais antigos, pouco satisfeitos com as mudanças de rumo que o grupo têm dado na carreira. O último álbum é fruto da parceria com produtores de grandes artistas pop, como Nate "Danja" Hills, que trabalha com Nelly Furtado, Justin Tamberlake e Britney Spears. As críticas de que a banda pop punk estaria se tornando uma boy band como tantas outras vieram do lado da mídia especializada e de muitos fãs, decepcionados com o tom ainda mais meloso de muitas das canções do último álbum. Sabidamente mais famosos fora do que dentro do Canadá, os cinco tocaram Take my hand, The end, Your love is a lie, When I’m gone, Time to say goodbye, No love e Save you, composta por Bouvier para seu irmão que se recuperava de um câncer. Entre uma e outra love song, teve espaço para um medley que incluiu o hit lésbico I kissed a girl, de Katy Perry, e Summer love, de Justin Timberlake.

Elogios ao Rio de Janeiro, bebericadas de caipirinha ("uma das melhores coisas do Brasil"), e declarações de amor às brasileiras ("vocês são lindas") marcaram o batido repertório não musical do show. Depois de, ao longo da noite, agradecer 17 vezes com um "muito obrigado", em bom português, Bouvier ainda anunciou que camisas contendo cinco entradas para o backstage estariam à venda por R$ 50 do lado de fora. Uma baixinha de óculos, provavelmente lembrando dos shows de rock, tirou a blusa e mostrou um infantil top azul com coraçõezinhos vermelhos, no exato momento em que o vocalista apontava para a plateia e bradava o clichê "I love you". Mas era isso que todas (e todos) os fãs estavam esperando.

A nova-iorquina Robyn Smolenky, de 20 anos, veio com a namorada Emily Munzenberg, da mesma idade, para assistir ao show que já perdeu a conta de quantas vezes viu. Levando a tiracolo o ursinho feito a mão que daria ao baixista David Desrosiers, Robyn exibia com orgulho as bandeiras de arco-íris tatuadas e o visual dark contrastando com o longo cabelo loiro. Para lembrar a maior loucura que já fez pelo ídolo, a moça é rápida. Desenrola um cartaz até então guardado debaixo do braço e sorri. Nele, está escrita a frase que simboliza o tanto de sex appeal que há no sucesso dos bonitos, mas musicalmente inexpressivos garotos canadenses: "Please, turn me straight" (Por favor, me transforme em heterossexual).