Mercado no Rio de Janeiro do final do século XIX: os trabalhadores da cidade tinham na capoeira um elemento de rebeldia
Onde hoje é a Rua Gonçalves Ledo, no Centro do Rio, um dia já foi a Rua São Jorge. Onde hoje se misturam empresários, camelôs, funcionários públicos e estudantes já foi palco para o encontro diário de dezenas de pessoas que se organizavam em uma grande roda. Éram os urubus-malandros, forma como eram chamados os capoeiristas experientes e astutos. Criada no Brasil, a capoeira vem sendo reconhecida pelo Ministério da Cultura como um patrimônio cultural brasileiro. A consagração de Mestre Bimba, referência nacional no jogo, em 2003, com o recebimento da Ordem do Mérito Cultural das mãos do presidente Lula em 2003, reforçou uma política cultural orientada para sua valorização. A trajetória histórica da capoeira, e, especificamente da capoeira carioca, explica as razões da necessidade desse reconhecimento. Foi realmente um movimento de resistência cultural e política, embora hoje estudos mostrem que a habilidade dos capoeiristas também foi emprestada para senhores e políticos da Corte.
A partir da segunda metade do século XIX, a capoeira se tornou uma marca de tradição da população trabalhadora urbana e rebelde na maior cidade do Império brasileiro, que reunia escravos e livres, brasileiros e imigrantes, jovens e adultos, negros e brancos. Na verdade, o que os unia de verdade era o fato de pertencerem, todos eles, ao último andar da pirâmide social. E eram justamente eles que protagonizavam os “jogos de capoeira”, forma como os policiais se referiam às agressivas lutas entre portadores de navalhas e hábeis praticantes da capoeira. Apesar da fama, o estilo carioca perdeu espaço ao longo do século XX, principalmente por dois motivos. Primeiro, porque entrou em cena a versão baiana, dominada pelos mestres Bimba e Pastinha. Depois, porque o primeiro chefe da polícia da cidade na República, Sampaio Ferraz, a reprimiu com fúria e vigor. E isso também teve um motivo.
Historicamente, na escravidão urbana, a capoeira teve o papel de forjar novas identidades locais entre os escravos. Em artigo para a finada revista Nossa História, Carlos Eugênio Líbano, professor de História Brasileira da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que documentos históricos brasileiros são insistentes em mostrar a capoeira como fenômeno urbano da cultura escrava. “Podemos afirmar ainda hipoteticamente que o nascimento da capoeira se deu nas primeiras grandes cidades do país, Salvador e Rio de Janeiro, ambiente propício, a partir de 1700”, explica o professor. A polêmica se a capoeira trata-se de um jogo ou uma luta é irrelevante, garante Carlos Eugênio, já que na África, especialmente entre os povos bantos (grande grupo lingüístico que domina a África do sul, que compôs grande parte do quadro de escravos trazidos para o Brasil), a luta sempre tem características de dança. “O que a capoeira moderna faz é juntar os dois” – completa.
Tipos sociais da capoeira do século XIX: negros, mulatos, crianças de rua e imigrantes pobres
Ao se debruçarem sobre o estudo da capoeira carioca, historiadores a identificam como um sinal de resistência das camadas populares frente ao poder das elites. No entanto, ao mesmo tempo que enfrentava a ordem policial e a escravidão, os capoeiristas participavam ativamente das lutas políticas dentro dos grupos dominantes, como capangas de senhores da Corte. Relatos Históricos, como os narrados por Plácido de Abreu em seu clássico Os capoeiras, de 1886, dizem que alguns chegavam até a incorporar termos e trejeitos do vocabulário de juízes e políticos da época.
A transformação da capoeira carioca começou com o fim do tráfico negreiro, em 1850. Os escravos africanos iam, aos poucos, sumindo das cidades, pois muitos iam para as fazendas de café, dessa vez por conta do tráfico interno. O ano-chave para a mudança definitiva em sua história foi, porém, com a Guerra do Paraguai (1865-1870). Jogados aos milhares no campo de batalha, os cariocas ganharam o respeito da oficialidade por serem imbatíveis na luta corpo-a-corpo. Voltaram consagrados. A capoeira entrava definitivamente na agenda política da Corte Imperial do Rio de Janeiro, com o entusiasmo da elite conservadora pelo poder marcial daquela gente.
E foi aquela gente que entrou nas disputas eleitorais entre liberais e conservadores da época. Nascia um ódio que duraria muitos anos entre capoeiristas e republicanos. A repressão capitaneada por Sampaio Ferraz deixaria a capoeira do Rio de Janeiro entrar no limbo. Mas se entrou no limbo político, já estava eternizado, no entanto, no imaginário cultural. Ficaram célebres a irreverência, a ousadia e a rapidez dos capoeiristas. Era uma força cultural e simbólica da marginália, que desafiava a elite e suas propostas modernizadoras que traziam junto uma forte marca de exclusão.
Hoje, a capoeira vive um momento muito positivo. Diferentes ações de preservação cultural e difusão da capoeira no Brasil e no mundo vêm sendo desenvolvidas desde a gestão Gil e, Deus permita, continua na gestão de Juca Ferreira. No contexto interno, quem trabalha são os Pontos de Cultura, em diferentes regiões do país, com turmas de capoeira abertas há quatro anos. Internacionalmente, a capoeira é associada como mais um valor cultural da marca Brasil, que Cultura e Relações Exteriores trabalham mundo afora. No ano do Brasil na França, em 2005, a capoeira mereceu exposição, debates e aulas práticas em plena Paris. Os capoeiristas, esses urubus-malandros, merecem.
30.8.08
No tempo dos urubus-malandros
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Um comentário:
Vivendo e aprendendo... esse termo urubu-malandro era muito usado na minha casa ( quando eu era uma garota ) quando se referia ao jeito ,o andar de uma pessoa tipo indolente.Agora descobri de onde veio.
Quem muito bem descreve o ambiente e a arte da capoeira é o Jorge Amado em seus livros.
Esse blog cada dia está mais show !!!!
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