30.12.08

Relíquias: Gilberto Passos Gil Moreira

Quem disse que Faustão não presta deve morder a língua, porque foi no Domingão que passou uma das coisas mais bonitas da TV brasileira ultimamente (depois, é claro, da maravilhosa Capitu, de Luiz Fernando Carvalho). Foi a bela homenagem que o programa fez ao nosso Gilberto Gil, gênio da raça, que foi agraciado pelo Troféu Mario Lago, criado pelo programa há seis anos para homenagear o também brilhante ator.

O vídeo abaixo mostra toda a passagem de Gil pelo programa, desde a homenagem que faz a Dorival Caymmi até o momento que recebe das mãos de Glória Pires o troféu. Há depoimentos de todos (!) os filhos do compositor, além de lindas declarações de amor de Caetano Veloso, Jorge Mautner e outros amigos. Lula também fala, sem dizer muito. O ponto alto é o depoimento de Preta Gil, de marejar os mais frios olhos .

De brinde, coloco nesse baú de relíquias o último CD de Gil, Banda Larga Cordel, o melhor disco que ouvi em 2008. Sensacional mesmo. Para ouvir, clique aqui.

29.12.08

Yes! Nós temos a Cidade da Música

Nunca impliquei com a Cidade da Música, obra faraônica iniciada em 2003 pelo prefeito Cesar Maia, embora entenda os argumentos de quem acha um desatino gastar quase R$ 600 milhões numa cidade tão carente de serviços públicos de qualidade. Mas, ainda assim, acho válido o investimento, visto que dificilmente, num governo com o perfil do que agora se encerra aqui na cidade do Rio, esses recursos teriam destino diferente, como a construção de hospitais, escolas ou melhorias urbanas significativas. Provavelmente seria destinado a outra pirotecnia do alcaide, como obeliscos de gosto duvidoso - como o que corta a Rua Visconde Pirajá, em Ipanema.

O projeto da Cidade da Música é muito interessante. Cesar Maia encomendou-o ao arquiteto francês Christian de Portzamparc, que já recebeu vários prêmios, entre eles o Pritzker, considerado o Nobel da arquitetura. É especializado em projetos de grande porte urbano, como grandes equipamentos culturais, sendo responsável pela criação de salas de música em grandes capitais da Europa, inclusive a Cité de la Musique, de Paris.

O local abriga um complexo com a maior sala de concertos de orquestras sinfônicas e óperas da América Latina. É também, por suas características técnicas, única no mundo. A Cidade da Música foi erguida em uma área de 94 mil metros quadrados, com duas salas de concerto: uma tem capacidade para 1.800 lugares e outra para 800 lugares. Além de salas para concertos e estudos, com atividades de incentivo a novos talentos, formação de platéias e cursos diversos, servirá de sede à Orquestra Sinfônica Brasileira, que ali desenvolverá uma escola de música e um projeto de formação para novos músicos e ouvintes. Ou seja: é algo que o Rio precisava há séculos.

Outro lado positivo é que foi construída em um ponto da cidade extremamente carente de equipamentos de cultura erudita, a Barra da Tijuca, meca do consumo e da cultura de massa. Bem perto dali há uma enorme réplica da Estátua da Liberdade de Nova York, uma da Torre Eiffel e outra da Torre de Piza. Com a Cidade da Música, o bairro muda seu perfil de subserviência cultural e poderá oferecer, além dos shoppings e praias, opções culturais bem mais enriquecedoras aos milhares de moradores de toda a cidade - das partes mais pobres, inclusive - que para lá se bandeiam todo fim de semana.

Como ainda não fui lá, aproveito-me da opinião de gente até mais abalizada, que já foi e entende realmente de música: o crítico musical e agora imortal da Academia Brasileira e Letras Luiz Paulo Horta. Hoje ele publicou um artigo no Globo em que conta como a classe musical está eufórica com a novidade. Parabéns a Cesar Maia, que, embora tenha sido péssimo governante, merece o crédito por esse presente à cidade. Obrigado.

Veja trecho do artigo do Luiz Paulo Horta:

"Por cima e em volta de você, um projeto arquitetônico que é enorme, mas surpreendentemente leve, talvez porque não haja ou não se percebam linhas retas. A impressão é que você está no meio de um vendaval imóvel com os planos sinuosos de concreto, que parecem velas. (...) Faltava conferir a acústica. (...) O som corria bem, e nesse banho de música a sala podia considerar-se definitivamente inaugurada. A classe musical no final estava entre eufórica e estupefata.”

18.12.08

Pontos, vírgulas e outros sinais brasileiros

Preparem as armas, homens de fé! Faltam armamentos pesados? Peguem as pedras portuguesas de nossas calçadas e ao ataque! Temos um novo inimigo e ele se chama Rogério Longen, o catarinense ladrão de doações! Não sabem quem é? Ora, até o William e a Fátima já falaram dele. Os jornais hoje estampam seu rosto e os de seus familiares, que concordam com a necessidade de se expulsar um verme como esse da pátria, da polis, do planeta! E dá-lhe pontos de exclamação. Daqui a pouco, o Lula vai pedir a expulsão dele, como fez com Larry Rohter quando foi chamado de bêbado. Tá certo. No Brasil do pré-sal, ame-ou ou deixe-o voltou a reinar. Rogério Longen não ama! Ele roubou dos flagelados!

O quê? Mensalão? Privataria? Esquema PC? Nossa, quanta interrogação! Ora bolas, tudo isso é besteira perto do que fez esse crápula. Até porque, como todos sabem, nada foi provado contra os acusados. Ninguém sabia de nada. Eram elucubrações infudadas vindas de uma oposição sem espírito republicano. Uns vêm dizer que isso é coisa do Brasil, culpa da suposta corrupção feita por políticos, coisa e tal, tal e coisa. Mentira. O safado é ele. Pilantra, coisa-ruim, malandro. Ponto final.

Que morra para não termos de dividir a mesma calçada! Imagina!? Um brasileiro que rouba dos pobres é capaz de tudo. Como nós, cidadãos honestos, incapazes de furar uma mísera fila, vamos conviver com alguém que teve a coragem de dizer que roubou as fraldas geriátricas para dar à mãe. Como se degenerados desse tipo tivessem uma. Tem nada. E não tem disse-me-disse. Roubou porque é mau. O brasileiro, sim, é bom, trabalhador e ordeiro. O brasileiro nunca confunde o que é dele com o que é do outro. No país do Bolsa Família, coletividade é a palavra de ordem. Afinal, o PAC tem pai, mãe e até um tio paulista, lá do Palácio dos Bandeirantes, que a qualquer momento pode chegar. Somos uma família perfeita, que às vezes briga entre si, mas jamais desrespeita o que é do próximo. Está na Bíblia e a seguimos sem restrições. Aqui, a tolerância é zero - a não ser com nossos pequenos pecados. Quanto a esses, o Compatriota lá de cima dá uma aliviada.

Carro na garagem do vizinho? Tiro quando precisar. Chiclete jogado no chão? Gruda e vira asfalto. Dirigir pelo acostamento? É rapidinho. E a notinha de cinqüenta pro guarda? Bom, aí, você sabe, é aquela coisa, né, cheia de vírgulas, meio assustada, hesitante, mas necessária. Não atrapalha ninguém, é até uma ajudinha pro policial que recebe tão pouco... É isso, né... Desde Pedro Álvares Cabral, os brasileiros se ajudam... Do Zé da Esquina ao Português da Padaria... do Banqueiro ao Camelô... A boa é uma mão lavar a outra... E as duas, já diria o presidente Luiz Inácio Sifu Lula da Silva, se juntam, uma espalmada e a outra fechada, para executar aquele movimento tão pouco fino, mas muito adequado para definir o que temos de fazer com Rogério Longen, o ladrão de doações... É... Corrupto... Que nem o guarda da propina... E como quem paga a propina...

Talvez seja mais prudente ficar nas reticências... Só elas são capazes de acalmar esse Brasil que reage ensandecido ao constatar como somos todos parecidos com Rogério Longen...

9.12.08

Uma cinemateca ideal deve ter...

A Cahiers du Cinéma, principal revista de cinema do mundo, lança este mês em parceria com a Prefeitura de Paris o livro 100 films pour une cinémathèque idéale, que lista as cem películas que não podem faltar numa cinemateca ideal. É claro que deu, como em quase todas as listas do gênero, Cidadão Kane, de Orson Welles, realmente um filme brilhante. Você confere aí embaixo a lista completa.

Sinto falta do meu filme favorito, Sonata de Outono, do Bergman, cuja única obra a figurar na lista é Fanny e Alexander, que nunca assisti, mas de que já ouvi ótimos elogios. E na sua cinemateca, qual filme não poderia faltar?

100 films pour une cineémathèque ideal

1. Cidadão Kane (1941) - Orson Welles
2. O Mensageiro do Diabo (1955) - Charles Laughton
3. A Regra do Jogo (1939) - Jean Renoir
4. Aurora (1927) - Friedrich Wilhelm Murnau
5. O Atalante (1934) - Jean Vigo
6. M, o Vampiro de Dusseldorf (1931) - Fritz Lang
7. Cantando na Chuva (1952) - Stanley Donen & Gene Kelly
8. Um Corpo que Cai (1958) - Alfred Hitchcock
9. O Boulevard do Crime (1945) - Marcel Carné
10. Rastro de Ódio (1956) - John Ford
11. Ouro e Maldição (1924) - Erich von Stroheim
12. Rio Bravo - Onde Começa o Inferno (1959) - Howard Hawks
13. Ser ou Não Ser (1942) - Ernst Lubitsch
14. Era uma Vez em Tóquio (1953) - Yasujiro Ozu
15. Desprezo (1963) - Jean-Luc Godard
16. Contos da Lua Vaga (1953) - Kenji Mizoguchi
17. Luzes da Cidade (1931) - Charlie Chaplin
18. A General (1927) - Buster Keaton
19. Nosferatu (1922) - Friedrich Wilhelm Murnau
20. A Sala de Música (1958) - Satyajit Ray
21. Monstros (1932) - Tod Browning
22. Johnny Guitar (1954) - Nicholas Ray
23. A Mãe e a Puta (1973) - Jean Eustache
24. O Grande Ditador (1940) - Charlie Chaplin
25. O Leopardo (1963) - Luchino Visconti
26. Hiroshima, Meu Amor (1959) - Alain Resnais
27. A Caixa de Pandora (1929) - Georg Wilhelm Pabst
28. Intriga Internacional (1959) - Alfred Hitchcock
29. O Batedor de Carteiras (1959) - Robert Bresson
30. Amores de Apache (1952) - Jacques Becker
31. A Condessa Descalça (1954) - Joseph Mankiewicz
32. O Tesouro do Barba Rubra (1955) - Fritz Lang
33. Desejos Proibidos (1953) - Max Ophüls
34. O Prazer (1952) - Max Ophüls
35. O Franco Atirador (1978) - Michael Cimino
36. A Aventura (1960) - Michelangelo Antonioni
37. O Encouraçado Potemkin (1925) - Sergei M. Eisenstein
38. Interlúdio (1946) - Alfred Hitchcock
39. Ivan, o Terrível (1944) - Sergei M. Eisenstein
40. O Poderoso Chefão (1972) - Francis Ford Coppola
41. A Marca da Maldade (1958) - Orson Welles
42. Vento e Areia (1928) - Victor Sjöström
43. 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) - Stanley Kubrick
44. Fanny e Alexander (1982) - Ingmar Bergman
45. A Turba (1928) - King Vidor
46. 8 1/2 (1963) - Federico Fellini
47. Sel Sol (1962) - Chris Marker
48. O Demônio das Onze Horas (1965) - Jean-Luc Godard
49. O Romance de um Trapaceiro (1936) - Sacha Guitry
50. Amarcord (1973) - Federico Fellini
51. A Bela e a Fera (1946) - Jean Cocteau
52. Quanto mais Quente Melhor (1959) - Billy Wilder
53. Deus Sabe quanto Amei (1958) - Vincente Minnelli
54. Gertrud (1964) - Carl Theodor Dreyer
55. King Kong (1933) - Ernst Shoedsack & Merian J. Cooper
56. Laura (1944) - Otto Preminger
57. Os Sete Samurais (1954) - Akira Kurosawa
58. Os Incompreendidos (1959) - François Truffaut
59. A Doce Vida (1960) - Federico Fellini
60. Os Vivos e os Mortos (1987) - John Huston
61. Ladrão de Alcova (1932) - Ernst Lubitsch
62. A Felicidade não se Compra (1946) - Frank Capra
63. Monsieur Verdoux (1947) - Charlie Chaplin
64. O Martírio de Joana d’Arc (1928) - Carl Theodor Dreyer
65. Acossado (1960) - Jean-Luc Godard
66. Apocalypse Now (1979) - Francis Ford Coppola
67. Barry Lyndon (1975) - Stanley Kubrick
68. A Grande Ilusão (1937) - Jean Renoir
69. Intolerância (1916) - David Wark Griffith
70. Partie de Campagne (1936) - Jean Renoir
71. Playtime (1967) - Jacques Tati
72. Roma, Cidade Aberta (1945) - Roberto Rossellini
73. Sedução da Carne (1954) - Luchino Visconti
74. Tempos Modernos (1936) - Charlie Chaplin
75. Van Gogh (1991) - Maurice Pialat
76. Tarde Demais para Esquecer (1957) - Leo McCarey
77. Andrei Rublev - O Artista Maldito (1969) - Andrei Tarkovsky
78. A Imperatriz Galante (1934) - Joseph von Sternberg
79. Intendente Sansho (1954) - Kenji Mizoguchi
80. Fale com Ela (2002) - Pedro Almodóvar
81. Um Convidado bem Trapalhão (1968) - Blake Edwards
82. Tabu (1930) - Friedrich Wilhelm Murnau
83. A Roda da Fortuna (1953) - Vincente Minnelli
84. Nasce uma Estrela (1954) - George Cukor
85. As Férias do Sr. Hulot (1953) - Jacques Tati
86. A Terra do Sonho Distante (1963) - Elia Kazan
87. O Alucinado (1953) - Luis Buñuel
88. A Morte num Beijo (1955) - Robert Aldrich
89. Era uma Vez na América (1984) - Sergio Leone
90. Trágico Amanhecer (1939) - Marcel Carné
91. Carta de uma Desconhecida (1948) - Max Ophüls
92. Lola, a Flor Proibida (1961) - Jacques Demy
93. Manhattan (1979) - Woody Allen
94. Cidade dos Sonhos (2001) - David Lynch
95. Minha Noite com Ela (1969) - Eric Rohmer
96. Noite e Neblina (1955) - Alain Resnais
97. Em Busca do Ouro (1925) - Charlie Chaplin
98. Scarface - A Vergonha de uma Nação (1932) - Howard Hawks
99. Ladrões de Bicicletas (1948) - Vittorio de Sica
100. Napoleão (1927) - Abel Gance

3.12.08

Os olhos oblíquos de Cauã Raymond

Cauã Raymond tem em A favorita seu papel de mais destaque na TV, interpretando o antes-pilantra-agora-mocinho Harley. Tamanha felicidade deve emocioná-lo a ponto de suscitar uma série de surtos alucionatórios, fazendo seus olhos revirarem enlouquecidamente. Repara só no final da cena abaixo, lá para os 5m55s.

Governo Lula, o sigilo eterno

O sigilo eterno é um crime histórico. Não há informação que não possa ser de conhecimento da sociedade após determinado período. No caso concreto, o governo deseja esconder informações do tempo da Guerra do Paraguai (1864-1870).

O Ministério das Relações Exteriores sustenta uma posição desde o governo do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002): manter em segredo documentos que se referem à demarcação de fronteiras do Brasil com países vizinhos ao final daquela peleja.

É absurdo manter em segredo documentos com mais de cem anos. O argumento do Itamaraty é que seria criada uma crise diplomática com o Paraguai. Em 2004, a Folha revelou que autoridades brasileiras subornaram árbitros que demarcaram fronteiras, subtraindo território do Paraguai no século 19. A Argentina, aliada do Brasil na Guerra do Paraguai, também teria se beneficiado do mesmo expediente, de acordo com documentos ultra-secretos mantidos em sigilo.

O trecho acima é de um artigo de Kennedy Alencar, articulista da Folha, que criticou dois pontos falhos do governo Lula, que estão relacionados: o acesso à informação e os direitos humanos. Áreas que um governo do PT não poderia (ou esperávamos que não fosse) falhar. Mas, assim como na ética, no meio ambiente (em parte), e em tantas outras áreas que não acreditávamos que o governo falharia, ele falhou. Tomara que os segredos do governo Lula, como os pormenores dos casos de corrupção também não sejam sigilos eternos.

28.11.08

Van Gogh sem preconceitos

Bruno Gagliasso é vítima de preconceito por ser um ator bonito. Isso fica provado com a peça Um certo Van Gogh, em cartaz aqui no Rio, no Teatro Leblon, após temporada em São Paulo. É bem verdade que não se trata (e provavelmente nunca vai se tratar) de um novo Paulo Autran, mas tampouco estamos diante de um Ricardo Macchi, aquele poste que falava ‘eu te amo’ com a mesma intensidade de um ‘bom dia’. Bruno sabe fazer além do dever de casa, embora não receba esse reconhecimento pelo simples fato de ser um cara bonito. Com essa peça, tem tudo para quebrar a impressão, ajudado por uma série de acertos como a boa direção, uma talentosa equipe de atores coadjuvantes, uma iluminação e um cenário belíssimos, embora prejudicado pelo texto claudicante e por um ou outro tropeço de sua interpretação.

A peça fala de um atormentado rapaz, Timotéo, que vive desde pequeno sob uma série de angústias, sendo a maior delas o fato de seus pais terem perdido um bebê anterior a ele a quem também tinham chamado de Timóteo. Instável, cheio de questionamentos existenciais, ele abandona uma comunidade alternativa em que vivia para morar na cidade grande com o irmão, um bem-sucedido estudante universitário que até lhe consegue uma bolsa de estudo. Ao conhecer a história do pintor neerlandês Vincent Van Gogh, ele identifica várias semelhanças entre a sua briografia e a do artista. Começa a se aprofundar na vida e na obra de Van Gogh, misturando realidade e fantasia, comédia e drama.

A direção de João Fonseca é o ponto alto da peça, tornando um texto pouco empolgante num espetáculo muitíssimo bem concebido e acertadamente bem dividido em dois tempos – passado e presente, ou devaneio e realidade. Coisa difícil de ser bem resolvida dramaturgicamente, essa divisão não torna a peça chata e, feito ainda mais difícil, consegue dar dinamismo e levar a ação para frente. As soluções espaciais encontradas por Fonseca mostram como é importante cenógrafo (Nello Marrese) e diretor dialogarem para superar a freqüente burocracia que permeia essa relação.

E o cenário de Marresse é realmente muito funcional à peça. O jogo de luz feito por Daniela Sanchez embeleza bastante o conjunto e também serve com maestria às escolhas feitas por Fonseca. No balanço, ainda devem ficar do lado positivo a atuação de Marcelo Valle, disparado o melhor ator em cena. Pedro Garcia Netto e Larissa Bracher estão corretos.

Marcelo Valle e Bruno Gagliasso

Tudo muito bem se não fossem os tropeços do texto, muito mais eficiente nos momentos de comédia que nos de drama, quando resvala na pieguice. Novata, Daniela Pereira de Carvalho assina o texto de um projeto idealizado pelo próprio Bruno Gagliasso. Assim como ele, descoberto pela novela infantil Chiquititas em 2000 e, desde então, em permanente processo de aprimoramento, não faltarão oportunidades para Daniela desenvolver seu talento, que aprece mais, vale repetir, na comédia. Mas só o tempo dirá se a moça saberá aproveitá-las como Bruno vem fazendo.

27.11.08

Músicas de amizade

O Textos etc vive um momento meio ternurinha e fez uma seleção de cinco músicas sobre amizade. E tem de tudo na lista: de Chico Buarque a Balão Mágico. Vale a pena ouvir.


26.11.08

O Rio vai à praia - 2

Fora a roupa, em 1958 levava-se pouca coisa para a praia, talvez porque ainda não fosse a opção de lazer preferida dos cariocas e, portanto, não houvesse de fato tantos apetrechos para se levar para a praia. O jornalista Carlos Eduardo Novaes, autor de Cem anos de praia, relato sobre os cem primeiros anos das areias de Copacabana, conta que nos anos 50 levava-se principalmente toalhas. Os mais moderninhos também carregavam barraca, óculos escuros, bóias (oficialmente os primeiros objetos carregados para dentro d’água), que tanto podiam ser de pneus, de avião ou de carros. Óleo de bronzear também constavam do kit básico, embora somente quem tivesse acesso a material importado pudesse ter realmente óleo de bronzear. O resto das pessoas se contentava – ou se enganava – com a banha de cozinha, e seu terrível cheiro, ou com a gordura de coco, de odor mais tolerável. A esteira, segundo o jornalista, só chegou ao Rio de Janeiro, também naquele período, porque os cariocas começaram a viajar para o Nordeste a turismo, dentro do contexto de integração nacional estimulada pelo governo JK.

Mas imbatível mesmo nos anos 50, segundo Carlos Eduardo, parece ter sido o radinho de pilha. E era pura verdade, pois foi exatamente em 1958 que a Standard Eletric lançou o magnífico transístor. Batizado de Sonistor, era um rádio portátil com seis transistores de alta potência “para máxima sonoridade”. O anúncio dizia que apenas três pilhas portáteis eram necessárias para que a antena interna de alto alcance captasse todas as estações. Se, naquele tempo, carioca já tivesse o hábito de ir à praia durante todo o ano, é bem possível que muitos tenham ouvido no meio da areia a partida do dia 29 de junho, quando o capitão Bellini ergueu a Jules Rimet. Ou escutado os primeiros acordes dissonantes da Bossa Nova – sem cantar junto, como manda João Gilberto.

Mas talvez Rubem Braga não estivesse tão errado sobre Copacabana, pois foi naquele período que a especulação imobiliária encontrou seu auge no bairro, e Ipanema começou a roubar o posto de Copa. A própria Bossa Nova, embora tenha num primeiro momento, sido seduzida pelos encantos da Princesinha, desenvolveu-se muito mais em Ipanema, que ainda mantinha o ar de paraíso pouco habitado, para barquinhos, banquinhos e violões à beira-mar. Mas se o interesse da galera de 1958 na Praia de Ipanema era eminentemente musical, hoje em dia a coisa é outra. Autor de uma uma dissertação de mestrado sobre as tripos da praia de Ipanema, pelo Instituto COPPEAD, da UFRJ, Gustavo Americano cita em sua tese de mestrado os visitantes do Posto 9 e do trecho em frente à rua Farme de Amoedo como alguns dos subgrupos que hoje dominam a orla carioca.

Entre o Hotel Caesar Park e a Rua Joana Angélica, o trecho em frente ao Posto 9 foi um reduto de acontecimentos que promoveram pequenas revoluções comportamentais na sociedade carioca de 1958 para hoje. A barriga grávida de Leila Diniz em 1971, a tanguinha de crochê de Gabeira nos anos 80, os apitaços para alertar contra o combate policial à maconha. Ainda hoje, o local guarda a marca da diversidade “O que mais diferencia esse grupo é a sociabilidade, pois este é o fato que atrai seus membros à praia. Sentam-se em grandes grupos e conversam bastante, bebendo cerveja e compartilhando cigarros de maconha, hoje não mais tão combatidos”, define.

Já no ponto da praia em frente à Rua Farme de Amoedo, aconteceu, segundo Americano, um fenômeno singular. A partir de entrevitas com diversos freqüentadores, ele concluiu que o trecho, freqüentado durante as décadas de 80 e 90 por cariocas simpatizantes à causa gay, coisa inimaginável em 1958, transformou-se a partir dos anos 2000 em um ponto do turismo gay ao redor do mundo, constando inclusive de roteiros pensados exclusivamente para esse tipo de público. O perfil de freqüentador desse trecho hoje é definido por Americano como de homens, brasileiros e estrangeiros, com corpos extremamente malhados que pouco se falam, talvez pela forte presença de estrangeiros. “Eles usam principalmente a linguagem corporal como forma de comunicação, seja passando bronzeador, seja com gestos ou toques”, explica.

Mas se hoje Ipanema é só alegria, em 1958 a bossa era outra. Ipanema era só felicidade, cantarolava Vinícius dando as costas para enfadonhos diplomatas. Estes, aliás, não tinham tanto trabalho como nos dias de hoje para divulgar o país lá fora, porque ele fazia isso por si só. A conquista da primeira Copa, colocando para escanteio nosso vira-latismo, os primeiros contornos de Brasília, a magnífica capital construída no meio do nada, numa espécie de Marcha ao Oeste tupiniquim, a cultura nacional fazendo ainda mais gols, com Nelson Rodrigues e Os Sete Gatinhos, Tom e Vinícius com Chega de Saudade, a imprensa carioca com revistas e jornais cheios de criatividade e vitalidade. E, para coroar tantas conquistas humanas, sociais, concretas, as praias do Rio e de várias outras cidades entravam no itinerário obrigatório de qualquer pessoa que quisesse tirar uma chinfra. Confusão era causada por biquíni abaixo do umbigo, e não por arrastão. Doença era insolação e não alergia na pele devido à poluição. Espaço sobrava, não só porque ir à praia ainda era um hábito pouco cultivado, mas também porque havia bem menos pessoas na cidade. A limpeza da areia, clara e fina, e das águas, calmas e de boa temperatura, eram o cenário perfeito para a utopia em que os brasileiros, em especial os cariocas, mergulharam em 1958. Mas como todo final de tarde que anuncia o fim da praia, o ano acabou. E, com ele, um Rio que era só felicidade.

25.11.08

O Rio vai à praia

Como eram hábitos, moda, vedetes, acessórios e outras bossas nas praias do Rio em 1958

Banhistas em 1958, nas areias de Copacabana

Um dia, 2008 poderá ser tema de livros, teses, filmes, debates e efemérides mundo afora. Obama, os atletas chineses, a discutida derrocada capitalista, as Isabelas e Eloás, ou simplesmente a acachapante popularidade do Lula: tudo poderá ser lembrado para transformar nossos queridos doze meses num ano-fetiche. Quem duvida deveria ter lido mais jornal, assistido mais à TV, navegado mais pelo ciberespaço nos últimos tempos, pois foi exatamente isso que ao longo de 2008 foi feito. Agitação política e cultural de 1968, chegada da família real, morte de Machado de Assis, publicação de Grande Sertões: Veredas. Sobrou comemoração, como se as tragédias diuturnas já não se bastassem. Empolgado pelo efeméride-way-of-life, que tal criar mais uma e, influenciado pelo calor que pouco a pouco se instala nos termômetros da cidade, pensar como o carioca ia à praia 50 anos atrás, no verão de 1958? O que era moda, o que levava, quem ia à praia? Aliás, o que era “a praia” naquela época?

Praia era sinônimo de Copacabana, Ipanema e, no máximo, Leblon. São Conrado, Barra, Recreio e outras eram tão ficção científica quanto o badalado Eu, robô, de Isaac Asimov, lançado pouco antes. Vedete de poetas, cronistas, letristas e especuladores imobiliários, Copacabana perdia, pelo menos literariamente, o posto de Princesinha, pois foi exatamente em 1958 que Rubem Braga sentenciou sua morte em Ai de ti, Copacabana: “Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera do teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas”. Sem lembrar de avisar aos milhares de banhistas que lotavam a praia sobre o falecimento do bairro, Rubem deve ter se impressionado com a quantidade de coisa que aconteceu nas então estreitas faixas de areia do bairro.

A primeira delas foi a popularização do biquíni, ou melhor, do duas-peças, forma como a invenção francesa era chamada. Segundo a consultora de moda Helen Pomposelli, professora de História da Moda da Universidade Estácio de Sá, a moda praia, apesar de sempre ter sido vista como o patinho feito das passarelas brasileiras, não teve dificuldade para lançar estilos genuinamente nacionais ao longo da segunda metade do século XX, movimento iniciado a partir dos anos 50. Não por acaso, foi justamente nessa época o auge de um processo iniciado alguns verões antes, quando as diferentes cidades marítimas do país voltaram os olhos para suas orlas e seus moradores se tornaram banhistas inveterados, deixando de lado o preconceito que a elite tinha com o banho de mar.

“Só mais para o final da década, à medida que se aproximava dos anos 60, o biquíni começou a conquistar sua praia”, explica Helen, lembrando que naquela época a parte de cima parecia mais um grande top, enquanto a parte de baixo era um grande calçolão, maldosamente batizado, devido ao tamanho, de pára-quedas. Havia modelos que começavam acima do umbigo e ia até o início das coxas, mas até esses rendiam às mulheres pitorescos elogios: umas eram uma uva, outras eram um estouro e as de corpo perfeito – que, na época, significava cintura fina e seios grandes, no melhor estilo americano – eram batizadas de certinhas.

Nélia Paula, a primeira certinha a ir de biquíni à Copa
O duas-peças deve muito de sua popularização na época a vedetes como Nélia Paula, que foi a primeira de suas colegas a aparecer em frente ao Copacabana Palace de biquíni, feito que passou a ser repetido quase diariamente pelas aspirantes ao cargo, como Carmen Verônica e Íris Bruzzi. Ambas pertenciam ao disputado time das Certinhas do Lalau, o concurso de beleza promovido por Stanislaw Ponte Preta, heterônimo do cronista Sérgio Porto. Em 1958, Sérgio já estava no sexto ano da escolha das certinhas, cuja lista era publicada sempre no final do ano nas páginas do Última Hora e da revista O Cruzeiro.

Continua amanhã

19.11.08

A construção do star system brasileiro

Star system, para os desavisados, é o termo usado para se referir ao processo pelo qual Hollywood enraizou-se no imaginário coletivo mundial, fazendo com que seus atores e atrizes sempre atraiam espectadores para os filmes por lá produzidos. É graças a esse sistema, hoje óbvio e natural para todos nós, que qualquer filme estrelado por um Tom Cruise obtém uma bilheteria razoável, independente da qualidade do filme. Bom dizer que o mesmo já acontecia na década de 40, quando Humphrey Bogart estrelou Casablanca (1942).

Sem querer entras nos prós e contras desse modelo de produção, preparei recentemente um material na Globo.com que mostra como se deu a formação do star system brasileiro, cujo criador mais bem-sucedido foi inegavelmente, pelo menos no quesito durabilidade, a TV Globo, a partir do ano de criação da emissora, 1965. As vinhetas de fim de ano da emissora, com os famosos versos Hoje a festa é sua/ Hoje a festa é nossa sendo entoados por elenco e jornalistas uníssonos, provam como o star system global foi arquitetado desde cedo.

A novidade é que boa parte dessas vinhetas agora estão disponíveis na Globo.com, na seção A festa é sua. Clique aqui para ver o catálogo com as vinhetas antigas. Divirta-se.

14.11.08

Relíquias: Como Allan Konigsberg se tornou Woody Allen

A revista Bravo, que traz na capa da edição desse mês uma bela matéria sobre Woody Allen, publicou em seu site uma compilação de cenas dos filmes do diretor. Tentando identificar diferenças marcantes na obra de Woody, a revista agrupou os vídeos em quatro fases. Sem pretendê-lo, conseguiu traçar um painel de como Allan Stewart Konigsberg se tornou Woody Allen, um dos maiores diretores norte-americanos.

A primeira fase seria dos filmes "piada-puxa-piada", aqueles até meio cansativos, em que ele mesmo contava as piadas que escrevia. Depois, veio uma das fases mais interessantes, quando ele ganhou o Oscar (e não foi buscar) por Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), mudando seu jeito de filmar e passando a explorar mais os conflitos existenciais dos personagens. A terceira fase, segundo a Bravo, seria a de Nova York, quando ele se consolida como o maior cineasta que filmou a alma da Big Apple. Não por acaso, o expoente desse momento foi Manhattan (1978). A última seria a que ele é visivelmente influenciado pela literatura. A revista cita como filmes-síntese desse momento Hannah e Suas Irmãs (1983), inspirado na peça Três Irmãs, de Tchekov. Eu citaria outro: o excelente Ponto Final - Match Point (2005), nitidamente influenciado por Crime e Castigo, de Dostoiévski. O trailer do filme, em inglês, você confere aí embaixo.

11.11.08

Cada época tem a TV que merece

Timaço na TV Globo: Sérgio Cardoso em cena de O médico e o monstro, adaptação feita por Domingos de Oliveira do romance homônimo de Roberto L. Stevenson, com direção de Ziembinski

Escrever ontem sobre o Grande Teatro Tupi me fez lembrar de outro exemplo que mostrou o vigor da nossa teledramaturgia e também a importância dos anos 70 para a consolidação de um alto padrão de qualidade. Em 1971, a infante TV Globo tentou reeditar o sucesso da TV Tupi lançando o Caso Especial, um programa que trazia, em dias e horários diversos, episódios de duração média de uma hora e com formato fortemente influenciado pela proposta da Tupi. Ficou 28 anos no ar e, em 172 montagens, produziu dramaturgos brasileiros e estrangeiros, além de histórias originais. A direção dos episódios, até 1978, era estelar: Paulo José, Ziembinski e Domingos Oliveira. Entre os bambas encenados, houve Shakespere, Dostoiévski, Tchekhov, Vianinha, Plínio Marcos, Clarice Lispector e até o diretor de cinema Akyra Kurosawa.

Em 1979, optou-se por radicalizar ainda mais a proposta de teatro na TV, transformando-o num teleteatro. Nessa fase, ele passou a ser apresentado dentro do programa Aplauso, sob coordenação de Paulo José. A partir de 1980, os episódios foram ficando escassos, mas não menos ousados nas escolhas. Estrangeiros como Shakespeare foram encenados novamente - Otelo foi adaptado em 1983 por Aguinaldo Silva, com o previsível abrasileiramento do personagem, que passou a se chamar Otelo de Oliveira. Mas foram os autores nacionais a principal escolha nos anos 80 e 90: Jorge Amado, Rubem Fonseca, João Ubaldo, João Cabral de Melo Neto, Machado de Assis, dirigidos por diretores de TV e de cinema (Guel Arraes, Roberto Talma, Roberto Farias).

O suspiro final foi em 1995, com A farsa da boa preguiça, adaptado da peça homônima de Ariano Suassuna. Por falar em preguiça, dói pensar que tínhamos uma TV mais ousada e menos submissa aos devaneios bigbrotherianos, e, conseqüentemente, melhor.

A tempo: as duas minisséries em produção pela Globo deverão dar um sopro de qualidade à atual grade da emissora, insossa até dizer chega. A primeira é Maysa, contando a vida cantora, sob a direção de seu filho, Jayme Monjardim, e a outra é Capitu, dirigida pelo mágico Luiz Fernando Carvalho, um dos diretores que mais criativamente trabalha a linguagem televisiva, alçando-a a patamares que quase anulam os perniciosos efeitos do Big Brother e escatologias do tipo.

Que tal ter aula de teatro com Fernanda Montenegro?

É raro divulgar algum evento aqui no Textos etc, mas dessa vez é impossível não abrir exceção para As Escolas dos Mestres. Calma, apressado leitor! Apesar do nome meio piegas do encontro promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, a idéia é bem legal: reunir grandes atores para que eles contem histórias e experiências de fases das suas carreiras em que mais cresceram profissionalmente. Em novembro, os encontros vêm acontecendo desde o dia 6, quando Marco Nanini falou sobre o Conservatório de Teatro e a influência de Dercy Gonçalves, Eva Todor e Afonso Stuart para o humor no teatro brasileiro.

Nessa quinta, 13, Sérgio Brito, Fernanda Montenegro, Nathália Timberg e Ítalo Rossi serão os convidados para falar sobre o Grande Teatro Tupi, um dos momentos mais ricos da teledramaturgia brasileira. Fernando Torres, Sérgio Britto e Flávio Rangel revezaram-se na direção de 450 telepeças durante nove anos de programa, e adaptaram peças de Henrik Ibsen, Tennessee Williams, Pirandello, Bernard Shaw, Eugene O'Neill, Frederico Lorca, Górki, Jorge de Andrade, Nelson Rodrigues e outros.

O grupo de atores era originário principalmente dos remanescentes do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), grupo criado e dirigido por Franco Zampari. Com a proposta de levar dramaturgia de qualidade para a até então incipiente programação televisiva, ao Grande Teatro Tupi deve-se boa parte do padrão de qualidade alcançado pela teledramaturgia brasileira nas décadas seguintes.

Com a morte de Fernando Torres, em setembro deste ano, é importante lembrarmos e discutirmos essa fase de ousadia e experimentalismo da TV brasileira, que cultiva cada vez menos as duas coisas. Tomara que a ida ao CCBB do Rio nessa quinta para ouvir Fernanda, Ítalo, Sérgio e Nathália falando sobre o Grande Teatro, seja não apenas um prazer, mas também um estímulo para que, como telespectadores, exijamos menos Big Brother e mais qualidade. A tempo: a entrada é franca e serão distribuídas200 senhas uma hora antes.

Serviço
Quando: 13/11, às 18h30
Onde: CCBB do Rio de Janeiro - Rua Primeiro de Março, 66 - Centro.

30.10.08

Deus provavelmente não existe. Divirta-se

Os mais crentes não precisam deixar de visitar o Textos etc, tampouco os ateus terão neste post um motivo para festa. O título deste post tem a ver com matéria do site da revista Época que conta a história da jornalista inglesa Ariane Sherine, de 28 anos. Quando caminhava lépida e fagueira por Londres, Sherine deparou-se com um ônibus que estampava a propaganda de um grupo protestante: "Quando o filho Dele vier, ele encontrará fé na Terra?". Atéia convicta, Sherine entrou no site indicado no anúncio e impressionou-se com o teor ofensivo aos que não acreditam em Deus. "Você será condenada a separar-se de Deus e passará a eternidade em tormento no inferno", sentenciava o tal grupo.

Indignada, Sherine tentou reclamar com o órgão que regula a publicidade inglesa (o equivalente ao nosso Conar) mas a funcionária que a atendeu alegou que nada podiam fazer, pois a ofensa estava num site e não numa peça publicitária. Indignada, a moça escreveu em junho um artigo para o The Guardian e convocou ateus e simpatizantes da causa para, juntos, colocarem nos ônibus londrinos propaganda de teor ateu.

Pedindo 5 libras a 4680 ateus, ela esperava colocar pôsteres em 60 ônibus durante um período de quatro semanas, mas a idéia cresceu. Ganhou o apoio da British Humanist Association, grupo que promove causas ateístas no Reino Unido, e do acadêmico britânico Richard Dawkins, autor do livro Deus, um delírio. Os primeiros anúncios saem em janeiro e devem também estar presentes em outros espaços da cidade, como na simulação ao lado, na fachada de um shopping. O slogan "Deus provavelmente não existe", acompanhado da frase "Agora pare de se preocupar e divirta-se" tem uma outra curiosidade embutida.

Em publicidade, é antiético dizer alguma coisa que você não pode provar. Daí o "provavelmente", inspirado no famoso slogan da cerveja Carlsberg: "Probably the best lager in the world" (Provavelmente a melhor cerveja do mundo). O redator da Carlsberg, que não poderia jamais provar objetivamente um adjetivo tão subjetivo quanto "melhor", teve que apelar, engenhosamente, para o "provavelmente".

22.10.08

Eloá minuto a minuto

Eram pouco mais de seis horas da tarde de uma sexta-feira, 17 de outubro, quando saí da minha baia, no trabalho, para ficar mais perto da televisão da redação e assistir aos policiais militares paulistas invadirem o apartamento de Santo André, onde, havia quatro dias, Eloá Pimentel e Nayara Rodrigues da Silva eram mantidas reféns. Nas dezenas de mesas à minha volta, outros trinta jornalistas trabalhavam, uns apurando o porquê da baixa audiência da terceira temporada do seriado americano Heroes, outros colhendo opiniões de famosos sobre a gravidez de Ivete Sangalo, e eu preparando um material sobre o Festival de Cinema do Rio.

Como em muitas redações de jornalismo, cerca de dez televisores ficam ligados durante todo o dia, sintonizados na TV Globo ou na Globonews, para que todos possam, seja qual for a posição em que se encontrem, assistir às últimas notícias. Imediatamente anunciado o início da invasão, todos passaram a dividir suas atenções entre seus próprios trabalhos e os lances que a TV transmitia, minuto a minuto. Mas o interesse naquela redação estava além do comum, acima da expectativa que normalmente essas grandes tragédias urbanas geram.

Gente de comunicação quase entra em êxtase ao acompanhar essas coberturas, pois se preocupa não só com o conteúdo humano do que é contado, mas também com a forma escolhida para narrar os fatos. Comparar ângulos escolhidos pelos cinegrafistas de um ou outro canal, a diferença entre as locuções dos âncoras, ou se impressionar com a qualidade da captação de som, tudo dava enorme prazer àquele grupo, que, é bom dizer, nada tinha de sádico. Provavelmente deva ser a mesma sensação que economistas têm ao ver o sobe e desce incessante das bolsas.

Eis, então, que algo aconteceu para aumentar ainda mais a tensão que pairava no ar, provocada por um misto de fome midiática com o natural receio que tínhamos pela vida de todos os envolvidos. Poucos minutos depois de a polícia decidir invadir o apartamento, o Plantão da TV Globo foi acionado, interrompendo uma cena da novela Negócio da China, e a emissora começou uma transmissão que duraria cerca de quinze minutos, mostrando ao vivo todos os detalhes da operação. Visto o estouro da bomba lançada pela polícia, ouvidos os estampidos que pareciam tiros, apesar da torcida geral em contrário, as emissoras e os portais de internet começaram uma guerra de informações digna daquelas teses acadêmicas cheias de teorias. Paralela a esse primeiro conflito, cada jornalista daquela redação começou a travar uma segunda batalha particular.

O primeiro round foi marcado pela total falta de informações sobre o resultado da invasão, como se um ensaio geral fosse necessário para a sucessão de relatos que viria a seguir. Mãos ainda mais suadas e imensos copos de café reabastecidos, cada um procurava achar uma posição que contemplasse simultaneamente o monitor de seu computador de trabalho e algum dos televisores da redação. Passados dois ou três minutos, tudo começou.

As câmeras mostraram uma pessoa sendo retirada do prédio por para-médicos, carregada sobre uma maca, com o rosto coberto. Minutos depois, outra maca foi levada, cuja vítima também não podia ser vista pelas câmeras. Mas era possível ver que se tratava de alguém bastante ensangüentado na altura da perna. As cenas do resgate por macas elevaram ainda mais o lado hollywoodiano de tudo aquilo. Quem estaria sendo carregado? Eloá? Nayara? Lindemberg? Algum policial? Baia a baia, a síndrome do palpite começou a se alastrar. "Ai meu Deus, pelo tamanho do corpo pode ser alguma das meninas", disse uma ensaiando o choro. "Claro que não! Os policiais devem ter matado o seqüestrador, como fizeram com o garoto do 174", respondeu uma redatora no ato, lembrando as muitas semelhanças entre aquele caso e o seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, em 2000. No mesmo compasso que os jornalistas do lado de cá da televisão, os repórteres do lado de lá, numa posição bem menos confortável, limitavam-se a narrar as imagens, certamente por não dispor de outras informações além das implícitas.

Entre elucubrações sobre o resultado da invasão e reações indignadas sobre a decisão da polícia, eu e alguns colegas decidimos percorrer outros sites de notícias para, numa tentativa de saciar a tal fome midiática, ver como os diferentes meios, internet e TV, tratavam o assunto, e qual daria primeiro as notícias. Os dois deram quase ao mesmo tempo a informação de que as duas vitimas nas macas eram realmente as meninas Eloá e Nayara. A TV Globo apresentava o Plantão, a Globonews idem, e os sites Folha Online e G1 sequer geravam matérias, optando apenas por criar imensos boxes em suas primeiras páginas, sem que o texto escrito nas manchetes correspondesse a algum link. Era apenas a informação, nua, crua, e dura: "Seqüestro no ABC termina de forma trágica e meninas são baleadas".

As reações de todos ali, naquele momento, foram parecidas num ponto e diferentes noutro. Parecidas porque raiva, medo, pena, indignação, impotência, tudo era compartilhado pelos coleguinhas (forma mezzo carinhosa mezzo corporativista pela qual um jornalista se refere a outro), que, antes de jornalistas, eram pessoas. Mas algo os diferenciava, justamente por serem, além de pessoas, também jornalistas: ninguém conseguia deixar transparecer como aquela notícia tinha abalado a todos. Matéria-prima diária, que apuramos, escrevemos, filmamos, gravamos, fotografamos, editamos e reproduzimos, a notícia deveria ser algo contra a qual estávamos há tempo vacinados. Mas não estávamos e, na inútil tentativa de simular uma falsa supremacia do jornalista sobre ela, cada um começou a fazer um grande exercício teatral para camuflar o contrário. Uns preferiam simplesmente parar de acompanhar a cobertura, mergulhando nas últimas peripécias da cantora Amy Winehouse, ou trabalhando na tradução de um vídeo americano de humor. Outros vociferavam contra a polícia, contra o seqüestrador, contra as (in)decisões e supostas covardias das mais de 100 horas de negociação. Um, mais filosófico, banhava-se de pessimismo e atribuía aquele desenlace ao caráter pérfido do ser humano e à sua enorme capacidade de auto-destruição.

Mas o desfecho estava longe do fim, o que ficou claro com o furo (como os veículos chamam as notícias que dão na frente dos concorrentes) noticiado pela Folha Online. Dessa vez, a manchete era acompanhada de uma pequena chamada que, clicada, levava a um texto, curto e simples, provavelmente redigido com a pressa exigida pelo jornalismo on-line. Reproduzindo informações passadas pelo secretário de segurança Ronaldo Marzagão, o governador José Serra informara à jornalista Cátia Seabra que a garota Eloá havia falecido logo após chegar ao Centro Hospitalar de Santo André, vítima de um tiro na cabeça. Não menos dura, essa notícia insuflou novamente escapistas, indignados e pessimistas. Sem pertencer a nenhum dos três grupos, os olhos de uma amiga da baia em frente à minha encheram d'água, ao compartilhar com a mãe, pelo celular, o quanto tudo aquilo era terrível.

Imediatamente, da Folha Online fui para outros sites ver como haviam noticiado a morte da menina. Nada. Só gigantescos dois minutos depois (sim, em internet dois minutos são muito tempo) o G1 colocou no ar um box, apenas com a manchete, sem estar ligado a nenhum texto. "Governo de SP diz que garota Eloá morreu; hospital nega". Foi o auge da guerra. Afinal, uma versão confrontava-se diretamente com a outra. A negativa do hospital podia ser verdadeira, mas como duvidar de uma informação oficial do governo? Os que tinham optado por se refugiar em seus próprios trabalhos foram novamente atraídos para os portais de notícia ou para a frente da televisão. Ainda havia esperança, ainda havia notícia.

Cinco minutos se passaram desde a fagulha acionada pelo G1, e as mãos voltaram a suar com a música do Plantão da TV Globo. Inundando a redação de tristeza, Fátima Bernardes, com ar taciturno, disse que a assessoria de imprensa do Palácio dos Bandeirantes havia informado que a menina Eloá Pimentel acabara de falecer, vítima de dois disparos, um na cabeça e outro na virilha, acontecidos no momento da invasão policial ao apartamento. "A cobertura completa sobre essa tragédia você vai ver no Jornal Nacional."

A partir daí, não restou dúvida de que a menina estava morta. Afinal, a jornalista mais conhecida do Brasil, provavelmente uma das brasileiras com mais credibilidade, apresentadora do produto jornalístico mais consumido, havia acabado de confirmar o acontecido. O próprio formato do Plantão, pensado justamente para dar notícias de impacto e de grande interesse público, contribuiu para que todos aumentássemos nossas certezas. Quem questionasse, argumentando que o hospital desmentia a morte, estava isolado e certamente estaria errado. "Se a TV Globo deu, meu amigo, desista", disse o indignado, que atribuía a negativa do hospital a uma manobra para esconder a truculência policial. O pessimista voltou a vociferar contra a natureza humana e os escapistas aproveitaram o fim de tarde para fumar um cigarro do lado de fora do prédio.

Eu queria acreditar na sobrevivência da garota e, enquanto aumentava o escopo dos sites de notícia bisbilhotados, torcia para que minha intuição estivesse certa. Minutos depois, um colega passou pelo programa de mensagens instantâneas o link para o Uol Notícias, que também reproduzia a versão do hospital. Pouco a pouco, aquela hipótese ganhava corpo. De isolados, os questionadores passaram à nobre e anárquica condição de cavaleiros da esperança. Quinze minutos se passaram sem que o front fosse bombardeado por novas versões, até que a Folha Online contra-atacou. "Governo volta atrás e diz que garota mantida refém permanece em estado grave". Ao reproduzir, com comentários, a manchete por toda a redação o indignado conseguiu o que queria. "Tá vendo? É tudo culpa desses políticos. Eles querem fazer politicagem até com a vida da menina", reclamava elevando o tom de voz. "É verdade! Que horror! Político é mesmo um nojo, né não?", outro resmungou, aderindo ao indignado, que se aprazia ao ver que conquistara mais um seguidor.

Minutos depois da web, a TV saiu da trincheira e também adotou a tática da defesa por meio do ataque. Fátima Bernardes interrompeu novamente a programação, embalada pelo suspense da vinheta, para corrigir em alto e bom tom a confusão e dar nome aos bois : "O Palácio dos Bandeirantes acaba de dizer que não está confirmada a morte da menina Eloá Cristina da Silva. Como dissemos há pouco aqui no Plantão, enquanto o hospital insistia que Eloá estava viva, os assessores de imprensa do Palácio dos Bandeirantes Juliano Nóbrega e Adalberto Botini confirmavam oficialmente a informação da morte. Momentos depois, a assessora de imprensa Paula Santa Maria, também do Palácio, negou a informação, dizendo que Eloá continua internada em estado grave no hospital. Outras informações a qualquer momento e a cobertura completa no Jornal Nacional".

Explicações dadas, responsabilidades repassadas, erros esquecidos, os portais e os telejornais da noite detalharam como haviam sido os tiros que atingiram as duas meninas e quão grave era o estado de Eloá. Terminava a batalha entre as mídias, mas continuava a guerra íntima dos jornalistas, cujos veículos em que trabalhavam até podiam cumprir seus papéis e continuar a competir pela primazia da notícia. Os profissionais, no entanto, numa desoladora e unânime postura, fossem eles pessimistas, indignados, escapistas ou esperançosos, sabiam que a triste, inevitável e derradeira notícia mais cedo ou mais tarde teria que ser dada.

16.10.08

Estupro não é ficção

"Meus pais e irmãs tinham saído e você estava varrendo a sala quando eu e o Adalberto demos o bote. Não lembro qual foi o nosso papo, mas imagino que tenha sido a coisa mais ridícula do mundo. Pedimos, insistimos sem parar para que você “desse” para nós. (…) Lembro de poucos detalhes. Você não queria, mas por força da nossa insistência acabou cedendo. Sinto ódio do Brasil quando penso que você provavelmente tivesse medo de perder o emprego."

O texto acima faz parte da coluna mensal que o cineasta Henrique Goldman assina para a revista Trip. Em setembro, ele assinou o texto Carta aberta a Luísa, em que confessa e pede desculpas à empregada que estuprou junto com um colega quando tinha 14 anos. Numa espécie de catarse, ele termina o texto da seguinte forma:

"Espero que você esteja bem. Espero que para você a memória daquela tarde não seja tão ruim e que você hoje possa rir do que aconteceu."

Já tinha lido o texto de Goldman antes de ler o comentário indignado de Carla Rodrigues, jornalista bastante engajada na luta pelos direitos humanos e, em especial, das mulheres. Mas o blog de Carla me fez ver o quanto aquilo era ainda mais nojento que parecia, tanto da parte do autor quanto da Trip.

Além da clara escrotidão, a posição da Trip, que após polêmica sobre o texto alegou ser um conteúdo fictício, também foi repugnante. A revista publicou uma nota no site pedindo desculpas por não ter informado o caráter fictício na versão impressa e também pela nota biográfica sobre Henrique (notas biográficas são aquelas duas linhas que vêm depois de artigos, informando quem é o autor, o que ele faz etc.). A nota pela qual a revista pede desculpas diz que Henrique, com o tempo, aprendeu a "ser mais jeitosinho com as mulheres".

Com a hipocrisia de lado, deixemos claro, então, que não há evidências que provem ser o texto fictício. Uma revista experiente como a Trip, editada por jornalistas talentosíssimos, não comete erros primários como esquecer de dizer que um determinado texto é uma ficção. E os leitores que ignoram a internet, que não acessam ou sequer se indignaram com o que leram? Esse "erro" foi reforçado o machismo, a discriminação de classe, e de cor, já que a maioria das empregadas domésticas brasileiras são negras e pobres.

Mesmo que o texto seja realmente fictício, a visão presente nele, de que o estupro teria um lado sociológico, de submissão da mulher, é errada, pois isso vai além de qualquer gilbertofreyrianismo. É falta de caráter.

Para assinar a petição que pede à revista Trip a publicação de carta de protesto contra o texto, clique aqui.

9.10.08

Sinhá Iracema

Um lado pouco conhecido do autor de grandes livros do romantismo brasileiro, José de Alencar, ganha projeção com a publicação de uma série de cartas em que o criador de Iracema defende abertamente a manutenção da escravisão no país. Apesar de já conhecidas dos pesquisadores, as cartas só agora chegam ao público, no livro Cartas a Favor da Escravidão, organizado pelo historiador Tâmis Parron.

São sete escritos públicos endereçados por Alencar ao imperador d. Pedro II em 1867, em que o escritor critica a decisão do soberano de encaminhar ao Legislativo uma proposta de discutir o fim da escravidão. "A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito", disse numa delas.

Autor romântico por excelência, José de Alencar escreveu romances regionalistas (Tronco de Ipê), indianistas (O Guarani, Iracema) e urbanos (Senhora, Lucíola), estes últimos considerados duas das mais importantes obras do romance romântico urbano brasileiro. De fato, em nenhum deles faz menções explicitamente negativas à escravidão ou sequer sugere que suas práticas devessem ser condenadas.

Na introdução do livro, Tâmis Parron afirma que o fato das cartas não terem sido publicadas durante todo o século XX se trata de uma "provável tentativa de expurgar sua memória artística de uma posição moralmente insustentável para os padrões culturais hegemônicos desde o final do século 19".

5.10.08

Seria mais engraçado se não fosse triste

Em dia de eleição, o único talvez em que o Rio vislumbre alguma possibilidade de mudança, nada melhor que o humor legitimamente carioca para lidar com a falta de esperança nos candidatos que ora se apresentam. Por isso, recomendo a todos, inclusive aos candidatos, se acesso a eles tivesse, o livro Guia Antiturístico do Rio de Janeiro (R$ 29,90), uma homenagem satírica feita à cidade no início dos anos 60, pelo escritor Marques Rebelo, em uma série de 14 colunas no jornal Última Hora.

Às vésperas da comemoração do quarto centenário do Rio, Marques Rebelo, um autor eminentemente carioca desconhecido das novas gerações, apesar de seu texto carregado de humor e ironia de qualidade, uniu-se ao cartunista Antônio Nássara e rabiscou o projeto de um livro que combinaria os textos de um e charges do outro. Só este ano o livro foi concretizado, numa parceria das editoras Batel e Desiderata, que convidaram o cartunista Jaguar, outro que leva a cidade no sangue, para ilustrar com charges suas o texto ácido do autor.

No prefácio, Millôr Fernandes define bem o livro, uma grande brincadeira organizada em capítulos curtíssimos, às vezes restritos a uma palavra, que simulam um guia turístico clássico e apresentam o Rio sempre com olhar de deboche ao epíteto de cidade maravilhosa. Transportes, educação, divisão administrativa, população, tudo é matéria-prima para a ironia e a crítica extremamente atuais, apesar de escritas há quase 50 anos. E é aí que dói um pouco ler o livro nesse domingo de chuva, tristeza e eleição, não necessariamente nessa mesma ordem.

Homer versus McCain

Pena este vídeo da FOX ser totalmente em inglês, mas acho que dá para todos entenderem, ainda que em linhas gerais. O vídeo será exibido pela televisão americana dia 2 de novembro, na antevéspera das eleições presidenciais.

29.9.08

A partir de janeiro, idéia perde acento

O presidente Lula pode até não saber (provavelmente não sabe), mas ao assinar o acordo para a reforma ortográfica hoje na Academia Brasileira de Letras fez um enorme favor aos milhões de brasileiros que escrevem diariamente em português no Brasil. Consegui uma síntese das regras mais importantes, para que você comece a treinar para janeiro de 2009, mês a partir do qual se tornará vigente o acordo.

Primeiro, o k, o w e o y entrarão no alfabeto, que passa a ter 26 letras. Bingo para os professores de inglês, que terão menos trabalho para lidar com o complexo de inferiridade das crianças que não entendem por que o inglês tem mais letras que o português. Outra novidade, essa bem-vindíssima, é a morte do trema, que desaparece totalmente e só fica em palavras estrangeiras, como Müller. Dessa forma, agüentar vai virar simplesmente aguentar e tranqüilo vai passar a ser tranquilo. Mas atenção: a pronúncia não muda em nada. Vamos continuar a falar trancuilo e não trankilo, como em espanhol.

A mais estranha mudança para mim é no acento agudo, que vai desaparecer nos ditongos abertos ei e oi. Ou seja: palavras como idéia e heróico passarão a ser ideia e heroico. O acento circunflexo, meu Deus, também vai desaparecer em palavras com o o e o e duplo. Agora, em vez de vôo e enjôo, vai ser voo e enjoo. Em vez de crêem e lêem, vai ser creem e leem. Muito estranho isso.

Mas nada que se compare ao sumiço do acento diferencial. Para os desavisados, vale lembrar que esse tipo de acento, que pode ser agudo ou circunflexo, serve para marcar a diferença de significado entre palavras com a mesma grafia. Atualmente, distingüe-se o pára (do verbo parar) do para (preposição) por meio dele. Pelo (combinação de per mais lo) e pêlo (do corpo) também são diferenciados pelo agonizante acento diferencial.

A última mudança signigicativa para nós, brasileiros, é sobre o hífen, cujo emprego só não é mais difícil que a vírgula. Agora, com a reforma, ele some quando o segundo elemento da palavra começar com s ou r. Nesses casos, as consoantes devem ser dobradas, como em antissemita (atualmente, anti-semita) e em antirreligioso (atualmente, anti-religioso). Quando os prefixos terminam em r, no entanto, mantém-se o hífen: super-resistente, hiper-requintado. Mas não se afobe não, que nada é pra já. As regras de emprego do hífen ainda não foram todas definidas. Palavras como pé-de-moleque ou café-da-manhã, hifenizadas caso a caso, ainda dependem de regras que serão criadas pela Academia Brasileira de Letras.

Tomara que não demorem tanto quanto a definição esse acordo assinado hoje, cujas discussões tiveram início nos idos dos anos 90.

Relíquias: O dia em que o The Observer copiou o Textos etc

Ok, ok, foi só uma brincadeira para tornar o título atrativo. Mas é bem verdade que o jornalão britânico The Observer, braço do The Guardian publicado apenas aos domingos, fez uma lista dos cinqüenta melhores vídeos culturais do Youtube, proposta similar à seção Relíquias do nosso Textos etc. Posso estar enganado, mas acho que, salvo uma crônica do Artur da Távola, quando da sua morte, o Relíquias só publicou, desde seu começo em maio deste ano, vídeos culturais garimpados nos confins da internet.

Na lista deles, há coisas fantásticas. Quem gosta de jazz vai se satisfazer com John Coltrane no sax para My favourite things. Os cinéfilos podem acessar David Lynch discorrendo sobre seu cinema, assunto bem mais interessante que a tal meditação transcedental que o trouxe ao Brasil mês passado e arrebatou multidões. Ainda sobre cinema, há testes de Marlene Dietrich, James Dean, Marlon Brando e de Paul Newman, morto neste sábado, para filmes variados. Na literatura, há Jack Kerouac lendo seu On the road.

Vale a pena escarafunchar a seleção do The Observer. Mas nada de deixar de acessar o Textos etc para ver também as nossas relíquias.

22.9.08

Ensaio sobre a Cegueira - linhas tardias

Graças ao novo filme de Fernando Meirelles, Ensaio sobre a Cegueira (Blindness), novos leitores estão se incorporando à legião de fãs do escritor português e ganhador do Nobel José Saramago, autor do livro homônimo que inspirou o filme.

Constatei isso hoje em uma livraria que freqüento com certa regularidade, cujos donos conheço. Eles me confirmaram o que já desconfiava: a nova edição do livro, um dos que mais prestígio deu à bem-sucedida carreira de Saramago, está vendendo bastante. Esse, aliás, é o maior mérito da obra de Meirelles, cuja adaptação foi muitíssimo bem realizada.

Analisado isoladamente, acho o filme bom, mas visto como adaptação do maravilhoso livro de Saramago, o filme é ótimo. Quem leu sabe do que falo. Lembro até hoje de uma conversa que tive com um amigo, em novembro de 2006, quando divulguei aqui no Textos etc o início do trabalho de adaptação. Naquela ocasião, comentamos sobre como nos parecia uma tarefa difícil, tanto do ponto de vista do roteiro quanto da direção de Fernando Meirelles, apesar de concordarmos sobre o talento do diretor para tanto.

A criação do roteiro parecia difícil devido à forma particular como o livro é escrito, que resulta numa estrutura narrativa muito diferente, com raros e longos parágrafos, que encadeiam os acontecimentos de forma um pouco filosófica, distante, por isso, do que se entende por linguagem de cinema. Além disso, existem características na história que teoricamente a afastariam do tipo de cinema que Fernando gosta de fazer, que ele mesmo batizou de entretenimento inteligente. Os personagens, por exemplo, não têm nome, sendo chamados pelos papéis que representam. O médico da história é sempre 'o médico', a mulher do médico é sempre 'a mulher do médico', o menino é sempre 'o menino', e por aí em diante.


Elenco de estrelas no novo filme do diretor de Cidade de Deus

Já para a direção, a dificuldade estava em outros pontos, mais relacionados com a temática da cegueira. Como representar a estranha epidemia da cegueira branca que vitima os moradores do imaginário país, sem seduzir-se pela facilidade da tela branca? Como falar sobre cegos e os temas morais que estão presentes na obra de Saramago sem soar entendiante ou piegas? Meirelles encontrou como.

Além de contar com a fotografia de César Charlone, seu tradicional parceiro, o diretor usou em Ensaio a mesma linguagem pela qual foi criticado em Cidade de Deus, com cenas curtas e rápidas que não abrem muitas portas para a reflexão do espectador, pelo menos não no momento em que está assistindo ao filme. A montagem nervosa tenta mostrar a tensão por que passam os personagens e uma série de procedimentos óticos relativos a foco, reflexos duplicadores e formas que replicam a órbita ocular tentam colocar o espectador no mesmo barco dos cegos do filme. Dentro da estratégia do tal entretenimento inteligente a que Meirelles se propõe, a tática é perfeita, pois consegue um filme interessante, ágil, e que permite questionamentos posteriores sobre a metáfora da cegueira proposta por Saramago.

Apesar de ter mantido no nome do filme a palavra ensaio, que remete à idéia de papel, a algo escrito, Meirelles não filmou mais um exemplo de adaptação fracassada, que fica presa à literatura e não se assume como cinema. Resta saber se os que não leram o livro conseguiram, apenas com o filme, perceber a intenção metafórica da história, de mostrar que já vivemos num mundo de cegos, esgotados não só visualmente, mas também como seres humanos incapazes de sentir, e que precisaríamos de uma epidemia como aquela para voltarmos a enxergar de verdade, para resgatarmos o humanismo perdido.

Você, por exemplo, conseguiu ver?

19.9.08

Leitores do New York Times fulos da vida

Leitores do New York Times estão lotando de e-mails e comentários os servidores do principal jornal americano reclamando do fato do governo usar o dinheiro público, colhido por meio do pagamento de impostos feito por eles, para salvar o mercado financeiro.

"Talvez o governo possa livrar minha família de pagar o carro ou quitar minha dívida de cartão de crédito, já que está sendo tão generoso", diz um leitor.

Aqui no Brasil volta e meia vivemos situações parecidas, quando dívidas impagáveis de empresas são perdoadas em nome da sobreviência de um determinado ramo da economia. Com a Varig, houve esse discurso, com a Eletropaulo idem. O senador Eduardo Suplicy, quando ouve críticas a seu Programa de Renda Mínima (que prevê o pagamento pelo governo de uma quantia fixa a todos os cidadãos que se encontram abaixo de uma determinada faixa de renda), contrataca dizendo que ninguém chia contra os financiamentos do BNDES a empresas. Quem argumenta dizendo que as grandes empresas criam empregos e geram riqueza, o senador replica que consumidores com dinheiro no bolso fazem a mesmíssima coisa (e mostra os números do Bolsa Família para provar).

E, em meio a essa discussão que tende ao infinito, o texto mais interessante que li motivado pela recente estatização de várias instituições financeiras nos Estados Unidos foi publicado no excelente blog O Biscoito Fino e a Massa, de onde tirei o trecho abaixo, um cutucão oportuno e de vara nada curta.

Num momento econômico como este, não dá vontade de aproximar-se de um desses fundamentalistas do mercado -- heraldos da sapiência infinita da receita neoliberal, Marios e Alvaros Vargas Llosa, aquela penca de economistas do tucanato, os engravatados moleques de recado do FMI e a longuíssima lista de catervas e congêneres –, tocá-los suavemente no ombro e sussurar nos seus ouvidos: e aí, companheiro, como anda a sua fé no dogma?

16.9.08

Samba, capitalismo e escolhas na Lapa de Bruno Maia

As promessas feitas pelos candidatos à Prefeitura do Rio para a Lapa, no Centro da cidade, podem ou não ser cumpridas a partir de 2009, mas pelo menos um presente deve ser dado em 2009 ao bairro, que chega a receber 100 mil pessoas por fim de semana. O documentário provisoriamente batizado de Sistema Lapa de Samba deve entrar na segunda fase de produção nas próximas semanas, após trechos já filmados terem circulado pela internet, organizados em um vídeo promocional criado pelo diretor Bruno Maia, autor do projeto, para facilitar o fechamento de parcerias e a captação de recursos para as fases de produção seguintes.

O vídeo dá o tom de uma das possibilidades de recorte que Bruno aventa dar ao seu filme, além de trazer bons trechos dos depoimentos de Beth Carvalho, Perfeito Fortuna (dono da Fundição Progresso, a maior casa noturna da região), Mart'nália, Teresa Cristina, musa do movimento de renascimento que a Lapa vive há dez anos, Arlindo Cruz, Pedro Holanda e outras personalidades que fazem parte do sistema, mezzo samba, mezzo capitalista, que domina o bairro.

E foi este caráter ambíguo mas complementar do bairro que pautou parte da minha conversa com o diretor Bruno Maia, coisa de duas semanas atrás num bar de Botafogo, entre latas de Coca Zero e rebeldes toalhas de mesa levantadas pelo vento. Agitado, gesticulador, perspicaz e com talento para frasista, Bruno é jornalista especializado na cobertura de música (ele edita o Sobremusica), já dirigiu um primeiro documentário, que prefere deixar na gaveta por um tempo, e tenta provar com seu novo filme que é possível fazer cinema de qualidade com pouco dinheiro no Brasil. Ainda sobre o cinema, adianta que está mais interessado no tema de seu documentário que em firmar-se como documentarista.

Outro rótulo que rejeita é o de ter feito parte da primeira geração do renascimento da Lapa, formada pela classe média da Zona Sul do Rio que a partir de 1997 invadiu a degradada região para, junto com bambas do samba de outros tempos, dar à luz um dos movimentos culturais brasileiros mais significativos desse início de século. Não há registro de um ponto, um evento, uma data que marque essa nova Lapa, o que já evidencia a naturalidade como tudo aconteceu. Hoje, numa espécie de dilema ovo-galinha, não se sabe o que veio antes: as dezenas de casas noturnas ou o interesse do público por um espaço cultural de qualidade na cidade. A verdade é que a Lapa há muito a Lapa deixou de ser noite alternativa. Copiando a ironia Bruno, se alguém ocupa o espaço de noite alternativa hoje na cidade, este alguém é a Baronetti (boate de hip-hop e techno em Ipanema, freqüentada por jovens de classe média alta que gastam cerca de R$ 70 por noite e protagonizam cenas como a da morte do estudante Daniel Duque, em junho deste ano).

O tripé que dá nome ao filme é explicado pelo já citado caráter dúbio da Lapa, que mistura interesses musicais, artísticos ou de lazer, com interesses financeiros. Citando Michael Herschmann, professor de Comunicação da UFRJ que publicou o livro Lapa - Cidade da música, Bruno acredita que o bairro é um exemplo de sucesso da economia criativa, em que a indústria criativa é auto-sustentável, sem precisar de incentivos do governo ou patrocínios de empresas. E o sucesso é tamanho que os artistas também podem prescindir de contratos com gravadoras e eventuais discos de sucesso para sobreviver de música. Ali, apenas os shows são suficientes para que cada um tire seu sustento e continue tocando a bola para frente.

Mas vale aqui a pergunta: o desinteresse é dos artistas pelas gravadoras ou das gravadoras pelos artistas? Sem dúvida, responde Bruno, é a segunda opção. Dos astros da Lapa, apenas alguns nomes, como Teresa Cristina, Fino Coletivo, Casuarina, gravaram discos, e nenhum deles teve grande sucesso comercial. "Se um deles estourasse de vendas, as gravadoras enlouqueceriam para tê-los como contratados. Foi assim com os sertanejos, os pagodeiros, os MCs do Funk e não seria diferente com o samba da Lapa", elucubra.


Linguagem do filme ainda será definida

Rejeitando uma tendência iniciada no documentário brasileiro talvez por Eduardo Coutinho, Bruno e sua equipe – formada, entre outros, pelo também jornalista Mário Cascardo – não fazem entrevistas prévias antes de gravar os depoimentos. Por duas razões: uma de cunho orçamentário e outra que tem a ver com a personalidade do próprio Bruno, que conduz as conversas e dirige todas as cenas. “Não teria cara para, depois da Teresa Cristina contar uma história maravilhosa para mim, pedir que repetisse na frente das câmeras. Soaria artificial”. Mas nem só de vantagens se faz essa escolha. Ter de voltar ao mesmo entrevistado para checar alguma informação, fazer novas perguntas ou gravar outros momentos, é algo que pode acontecer nessa nova fase da produção, que deve começar em breve, após Bruno firmar parceria com uma produtora especializada em documentários.

Nessa nova fase, também será feita outra escolha, sobre a linguagem do filme, discussão que ganha relevância com a falta de originalidade e ousadia que atinge o subgênero "documentários sobre música" atualmente no Brasil. Os três que lembro rapidamente, Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, Meu tempo é hoje (2003), de Izabel Jaguaribe, e O Mistério do Samba (2008), de Lula Buarque de Holanda e Carolina Jabor, apresentam o mesmo formato de mesclar cinema de observação com depoimentos, fórmula que funciona, mas já está pra lá de desgastada. Mas ele confessa ainda não ter encontrado um jeito de superá-la e nem sabe se o deseja, pois admite não gostar, por exemplo, de "documentários que sobrepõem a narração do processo de produção ao conteúdo do filme", embora reconheça não ser essa a única maneira de ir além do esquema observação-depoimentos.

Mesmo assim, Bruno garante que nada está definido, pois muito pode acontecer na nova etapa de gravações que se inicia. Mas, pelo tom do promo divulgado na internet (assista aqui no Textos etc), a tendência é a montagem seguir mais uma vez essa linguagem que, temos de admitir, funciona muito bem com o excelente material do qual ele dispõe.

15.9.08

Imagem e palavra para contar histórias

O gaúcho Flávio Damm rivaliza com Evandro Teixeira na disputa pelo trono de maior fotojornalista brasileiro, apesar dos dois possuírem estilos diferentes de fotografar. Enquantro Evandro possui um rico acervo de fotos políticas, que poderiam ser consideradas mais jornalísticas, pela ousadia de ângulos e diferentes conotações que consegue criar, Flávio é dono de um conjunto de imagens que prima pela beleza da composição e a sensibilidade do conteúdo, o que poderia enquadrá-lo em um rol de fotojornalistas com veia mais artística.

Mas como este blog não acredita na separação estanque entre essas esferas, nem na suposta superioridade de uma em relação à outra, é preferível parar com a ladainha e dizer que, assim com Evandro, Flávio também lançou este ano mais um livro de fotos. Mas não apenas delas se fazem as belas imagens de seu livro. Preto no Branco – Fotos & Fatos (Editora Photos, R$65) mistura textos e fotos, duas formas diferentes de contar histórias e criar imagens.

Em 2002, na Praça Camões em Portugal, Flávio ficou 40 minutos esperando algo de curioso acontecer em frente à parede pintada. Eis que a sorte lhe presenteou


E se ele já havia mostrado a maestria com que contava histórias por meio da fotografia, em Preto no Branco ele mostra que também é fera no texto. Na verdade, ele narra fatos por trás das fotos que tirou e que outros grandes fotógrafos tiraram. Uma das mais saborosas é sobre Nair de Teffé, viúva do ex-presidente Hermes da Fonseca e primeira caricaturista da imprensa brasileira. Ela assinava sob o pseudônimo masculino de Rian, anagrama de seu nome, e atendia a pedidos do marido para avacalhar seus opositores, entre eles Rui Barbosa, por meio de suas charges. Quando Flávio a localizou, décadas depois dos tempos de Glória como primeira-dama, morava em Niterói e estava sendo processada pela Receita Federal. Sempre usando a caricatura como arma, vingou-se fazendo caricaturas do então ministro da Fazenda Delfim Netto.

Outra boa história contada é o caso do deputado Barreto Pinto, que se deixou fotografar por Jean Mazon apenas de fraque e cueca para as páginas de O Cruzeiro. O resultado foi o recorde na venda de jornal e a cassação por quebra de decoro parlamentar, num tempo em que o parlamento ainda tinha envergadura para criticar a falta de modos de seus pares.

Mas é no final do livro que estão as relíquias de Preto no Branco. As mais importantes fotos de Flávio, tiradas desde que, literalmente por acidente, tornou-se fotógrafo. Era uma partida de Grêmio e Internacional, e ele, que não entende bulhufas de futebol, lá estava quando viu desaparecer frente aos seus olhos uma arquibancada inteira. As fotos do desabamento da arquibancada e das vítimas foram parar na capa da Folha da Tarde e da extinta Revista do Globo, de Porto Alegre.

Tirada na aldeia espanhola Pedrazza de la Sierra, que tem 140 habitantes


Depois do prodigioso começo, passou 15 anos em O Cruzeiro, grande escola de fotojornalismo para sua geração. Até que decidiu abdicar da estabilidade e se tornar free-lancer, criando a Agência Jornalística Imagem, onde conseguiu reunir um acervo que já rendeu a publicação de 12 livros, entre os quais Brasil futebol rei (1965), Ilustrações do Rio (1970) e Um Cândido pintor Portinari (1971).

Sempre fotógrafo, Flávio também assina uma coluna para a revista Photo Magazine e para o Portal Photos. O site da Associação Brasileira de Imprensa possui uma seleção de suas fotos, de onde tirei as duas maravilhas que ilustram essa matéria.

10.9.08

Algemas simbolizam paradoxo brasileiro

Semana passada, em entrevista a O Globo, Paulo Maluf elogiou a decisão do Supremo que proíbe o uso de algemas em presos que não ofereçam perigo.


“O que está acontecendo agora é espetáculo (...) Pegar um indivíduo que foi prefeito de São Paulo, às seis horas da manhã, de pijama, algemar, como se a polícia fosse capitão do mato e ele fosse um escravo nojeto? Eu cumprimento o Supremo por ter tirado o nepotismo e as algemas. Algema é para gente perigosa.”


Ao comparar o uso de algemas à prática realizada durante a escravidão pelos capitães do mato, o deputado apenas mostrou a forma como nós, brasileiros, encaramos nossa sociedade. A algema reforça nosso vira-latismo, coloca o sujeito debaixo da sola do sapato, ao lado do estrato mais imundo e humilhante da pirâmide social: exatamente aquele em que ficavam os escravos antes de 1888 e que hoje fica a o povo, a ralé, a patuléia.

Em artigo publicado no dia 22 de agosto na Folha de S. Paulo, o delegado federal Jorge Barbosa Pontes, chefe da Interpol no Brasil, contou uma situação que ilustra bem este ponto de vista. Quando visitou a Scotland Yard, na Inglaterra, observou um cartaz em que estava escrita a ordem para que os policiais algemassem, indistintamente, todos os que se encontrassem em condição de preso ou detido. A recomendação tinha, explicou o delegado, uma razão clara: não colocar os policiais e a sociedade em risco. Afinal, rico, pobre, velho, jovem, homem, mulher, banqueiro, funcionário público, todos possuem os mesmos mecanismos psíquicos capazes de provocar reações violentas nas situações em que se sentem acuados. O desespero criado na tensão da prisão pode colocar a vida do policial, a de transeuntes ou a do próprio preso em risco. Não há como o policial adivinhar o que se passa na cabeça de uma pessoa que acaba de ser presa, mesmo que ela não resista à prisão e demonstre ser a pessoa mais calma do mundo.

Reação violenta não é exclusividade dos homens de poucos recursos e pouca instrução. Vale lembrar aqui o jornalista Pimenta Neves, ex- manda-chuva do Estado de S. Paulo, que matou a namorada pelas costas ao ser rejeitado. Ou ainda o caso do ator Guilherme de Pádua, que assassinou a atriz Daniela Perez. Seguindo esse raciocínio, o delegado Pontes acredita que um preso acusado de crime financeiro, por exemplo, pode reagir de forma violenta ao perceber que caiu em desgraça e que terá sua fortuna congelada pelas autoridades.

Mas se preso na Inglaterra significa estar algemado, o mesmo não acontece no Brasil, pois aqui as duas argolas de aço remetem aos terríveis grilhões da escravidão e às lembranças mais nojentas que vêm a reboque. Não foi à toa que o Supremo só agora, com a prisão de um dos mais importantes banqueiros do País, resolveu criar uma súmula vinculante (instrumento que obriga todas as instâncias do Judiciário a seguir a uma determinação do STF) para regular o uso das algemas. Aludindo a princípios humanistas, os defensores da restrição às algemas não querem que exista um aparelho repressivo que realmente trate ricos e pobres da mesma maneira.

Tachar de indigna a colocação de algemas é um erro, justamente porque não é indigno, seja para quem rouba um pão, seja para quem rouba um bilhão. Mas contra o primeiro caso, crime comum e sempre combatido, não há gritos ou contestações em relação às algemas. Como disse o delegado Pontes em seu artigo, “a algema não grita, não cria contraste quando colocada num joão-ninguém”.

4.9.08

Adrian Sudbury morreu


Adrian Sudbury died peacefully in his sleep with his dad Keith and mum Kay last night.

Foi com essas palavras (Adrian Sudbury morreu em paz durante seu sono, ao lado do pai, Keith, e da mãe, Kay, na noite passada) que a inglesa Liam McNeilis informou no Baldy's Blog sobre a morte de seu amigo e autor do blog, o jornalista Adrian Sudbury.

Conforme contado aqui no Textos etc em junho, Adrian sofria de dois tipos de leucemia ao mesmo tempo, coincidência raríssima, e decidiu criar um blog para contar seu tratamento e sua luta pela vida. Mas a vida, infelizmente, se tornava mais rala a cada post.

E os posts faziam o movimento contrário, tornando-se cada vez mais acessados e importantes para a conscientização das pessoas sobre a dificuldade em se conseguir medulas ósseas compatíveis para transplante. Alçado à categoria de celebridade instantânea, Adrian passou a freqüentar programas de televisão com assiduidade de colocar as capas da Caras no chinelo. Mas, como bem observou sua avó em um pequeno depoimento ao blog do neto depois de sua morte, ele merece sim o título de celebridade, no sentido real da palavra, de pessoa que fez algo realmente célebre para merecer a alcunha.

Bsata dizer que no dia 20 de agosto, quando Adrian morreu, havia recebido pouco antes um telefonema do próprio primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, parabenizando-o por toda sua campanha e dizendo que estava rezando por sua saúde.


Texto do blog pode ajudar pacientes e familiares

Jornalista que era, Adrian escreveu posts lindos, ainda que tristes. Seu primeiro, publicado em 28 de março de 2007, contava como tinha sido um tapa na cara receber a notícia de que tinha câncer e de que, aos 25 anos, aparentemente gozando da mais perfeita saúde, deveria começar já a quimioterapia. A partir desse primeiro, ele descrever com detalhes, post a post, seu tratamento, sempre de forma positiva e natural.

E foi este o ponto que mais me chamou atenção no Baldy`s Blog. Ele, mesmo careca, mesmo sofrendo, não se expressa de forma depressiva e prefere adotar uma atitude de maturidade, de enfrentamento, de ousadia em estar vivo. Sua amiga Liam McNeilis diz que o blog pode vir a se tornar um livro. Será um bom presente para todos que gostam de ler textos sensíveis sem resvalar na pieguice. Mas será ainda mais importante para parentes e pacientes de câncer, que precisem de um exemplo para lidar com uma doença tão degradante.

3.9.08

A Copacabana caótica de Rubem Braga

Depois de um tempo sem ser publicada, a série de matérias sobre como o bairro de Copacabana é representado pelos meios culturais, o Textos etc volta com força total. O especial As esquinas de Copacabana mergulhará dessa vez sobre a representação de Copacabana como um bairro caótico, tão comum quanto sua retratação como um paraíso. Essas representações refletem o modo como foram e são vistas as mudanças por que o bairro passou e passa desde a segunda metade do século XX. A intensa vida noturna, as prostitutas atraídas pelos turistas, as crianças que vivem nas ruas, mendigando e assaltando, os crimes cometidos por pequenos traficantes, cafetões e batedores de carteira. São tantos pecados que o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza dedica toda sua obra literária a eles. No entanto, bem antes do detetive Espinosa sonhar em existir, já existia uma crônica escrita por olhos bem mais pessimistas que os do detetive sobre as transformações por que passava Copa.

O cronista Rubem Braga escreve sua Ai de ti, Copacabana em 1958 e, num texto carregado de imagens bíblicas e mitológicas, prevê que o apocalipse se abaterá sobre o bairro. É bom lembrar que as abordagens de Luiz Alfredo e de Rubem são diferentes antes de tudo porque falam a partir de épocas diferentes. Enquanto o cronista escreve sob o choque de presenciar o balneário mudando tão rapidamente e o caos começando a se instalar, o romancista escreve no final dos anos 1990 com o caos pra lá de instalado.

Clique aqui para ler Ai de ti, Copacabana

Rubem trata Copacabana como uma pessoa, que se ilude, que erra, que peca. Adotando um ponto de vista de Deus judaico-cristão, que castiga seus filhos pecadores, o cronista aponta ao longo do texto quais foram os pecados do bairro, transformado em pessoa, a quem acusa de vaidade, numa comparação com uma prostituta, que não soube ler todos os avisos que recebeu Dele.

Mas o Deus que ameaça com mais e mais castigos não culpa apenas a Copacabana- prostituta por todos os males. Culpa também a especulação imobiliária, os ricos moradores que "dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas" para tentar fugir do calor do verão, os playboys que "passam em seus cadilaques buzinando alto", as donzelas que se "estendem na praia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez", os mancebos que "fazem das lambretas instrumentos de concupiscência", os fariseus que rezam nas igrejas de dia e jogam flores para Iemanjá à noite. Critica, no fundo, um modo de vida que havia chegado para ficar, produto da modernidade, como se viu no capítulo dedicado à história de Copacabana. A "multidão de pecados" a que Rubem Braga alude em sua crônica, numa visão pra lá de apocalíptica, foi o que despertou a ira divina. Já nas primeiras linhas, fica bem claro quão profunda é essa fúria. “Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera do teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.”

Saindo um pouco da análise, vale um comentário sobre o caráter profético do texto de Rubem Braga. Escrito em 1958, em sua coluna de crônicas, o texto diz que ondas se levantarão e inundarão o bairro e vale-se bastante da imaginação ao dizer que "siris comerão cabeças de homens fritas na casca", tal como nós, homens, fazemos com os siris. Diz ainda que os edifícios de cimento serão abatidos pelo mar que “ousaram um dia desafiar”, quando construídos como uma alta muralha. Fantasias à parte, é curioso como previsões parecidas são feitas hoje não mais por profissionais da imaginação que são os escritores, mas por cientistas, profissionais da razão. Em pleno caiu-a-ficha-sobre-o-aquecimento-global, jornais nos inundam, sem trocadilhos, com imagens catastróficas da terra sendo invadida pelo mar. O sertão, salve Glauber Rocha, pode mesmo virar mar. E poder ser justamente Copacabana, esse inferno na terra, a primeira atingida.

Na próxima parte da série As esquinas de Copacabana: O caos na Copacabana de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Leia as outras reportagens do especial As esquinas de Copacabana:
História do bairro 1: O mirante azul começa a se transformar
História do bairro 2: Balneário de uma Europa Tropical
História do bairro 3: A cidade dentro da cidade
Representações de Copa: A Copacabana paradisíaca
Representações de Copa: A Copacabana paradisíaca na televisão