26.6.09

O lirismo dos loucos de Bandeira

Um século separa o nascimento de Manuel Bandeira do meu, mas cada um desses anos de diferença se dilui toda vez que eu leio uma de suas poesias. Confesso que sempre fui mais de prosa que de poesia, talvez por nunca ter tido um professor na escola ou na vida que me encaminhasse pelos labirintos dos versos e estrofes, às vezes demasiadamente enigmáticos para mim. Mas com Bandeira é diferente. Autor homenageado este ano pela Festa Literária de Paraty, o poeta é conhecido por despertar o gosto pela poesia.

De hoje até o fim da Flip, dia 5 de julho, o Textos etc vai publicar 10 dos poemas dele, todos comentados a partir das observações feitas pelo crítico Davi Arriguci Jr. em seu rico Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. Espero que esses poemas e a riqueza neles contida, apontada pela sofisticada percepção do Davi, despertem em outras pessoas também o desejo de mergulhar na poesia bandeiriana.

O escolhido para abrir a série é Poética, que faz parte do livro Libertinagem, de 1930, o quarto publicado, mas primeiro realmente moderno. É neste livro que está grande parte de seus poemas mais conhecidos, que se revezam entre humor, paixão e erotismo. Nele, ele cria uma mistura inovadora e moderna, chegando a uma emoção poética com palavras simples, colhidas no vocabulário do dia a dia, das ruas, da boca da pessoa comum e não dos intelectuais com dicionário decorado.

Além disso, o Poética também mostra sua concepção da poesia como transe ou inspiração súbita. Como diz o Davi, ele encarna a paixão no poema, o lirismo, como diz nos últimos versos, dos loucos, dos bêbedos e dos clowns de Shakespeare.

Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

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