Eram pouco mais de seis horas da tarde de uma sexta-feira, 17 de outubro, quando saí da minha baia, no trabalho, para ficar mais perto da televisão da redação e assistir aos policiais militares paulistas invadirem o apartamento de Santo André, onde, havia quatro dias, Eloá Pimentel e Nayara Rodrigues da Silva eram mantidas reféns. Nas dezenas de mesas à minha volta, outros trinta jornalistas trabalhavam, uns apurando o porquê da baixa audiência da terceira temporada do seriado americano Heroes, outros colhendo opiniões de famosos sobre a gravidez de Ivete Sangalo, e eu preparando um material sobre o Festival de Cinema do Rio.
Como em muitas redações de jornalismo, cerca de dez televisores ficam ligados durante todo o dia, sintonizados na TV Globo ou na Globonews, para que todos possam, seja qual for a posição em que se encontrem, assistir às últimas notícias. Imediatamente anunciado o início da invasão, todos passaram a dividir suas atenções entre seus próprios trabalhos e os lances que a TV transmitia, minuto a minuto. Mas o interesse naquela redação estava além do comum, acima da expectativa que normalmente essas grandes tragédias urbanas geram.
Gente de comunicação quase entra em êxtase ao acompanhar essas coberturas, pois se preocupa não só com o conteúdo humano do que é contado, mas também com a forma escolhida para narrar os fatos. Comparar ângulos escolhidos pelos cinegrafistas de um ou outro canal, a diferença entre as locuções dos âncoras, ou se impressionar com a qualidade da captação de som, tudo dava enorme prazer àquele grupo, que, é bom dizer, nada tinha de sádico. Provavelmente deva ser a mesma sensação que economistas têm ao ver o sobe e desce incessante das bolsas.
Eis, então, que algo aconteceu para aumentar ainda mais a tensão que pairava no ar, provocada por um misto de fome midiática com o natural receio que tínhamos pela vida de todos os envolvidos. Poucos minutos depois de a polícia decidir invadir o apartamento, o Plantão da TV Globo foi acionado, interrompendo uma cena da novela Negócio da China, e a emissora começou uma transmissão que duraria cerca de quinze minutos, mostrando ao vivo todos os detalhes da operação. Visto o estouro da bomba lançada pela polícia, ouvidos os estampidos que pareciam tiros, apesar da torcida geral em contrário, as emissoras e os portais de internet começaram uma guerra de informações digna daquelas teses acadêmicas cheias de teorias. Paralela a esse primeiro conflito, cada jornalista daquela redação começou a travar uma segunda batalha particular.
O primeiro round foi marcado pela total falta de informações sobre o resultado da invasão, como se um ensaio geral fosse necessário para a sucessão de relatos que viria a seguir. Mãos ainda mais suadas e imensos copos de café reabastecidos, cada um procurava achar uma posição que contemplasse simultaneamente o monitor de seu computador de trabalho e algum dos televisores da redação. Passados dois ou três minutos, tudo começou.
As câmeras mostraram uma pessoa sendo retirada do prédio por para-médicos, carregada sobre uma maca, com o rosto coberto. Minutos depois, outra maca foi levada, cuja vítima também não podia ser vista pelas câmeras. Mas era possível ver que se tratava de alguém bastante ensangüentado na altura da perna. As cenas do resgate por macas elevaram ainda mais o lado hollywoodiano de tudo aquilo. Quem estaria sendo carregado? Eloá? Nayara? Lindemberg? Algum policial? Baia a baia, a síndrome do palpite começou a se alastrar. "Ai meu Deus, pelo tamanho do corpo pode ser alguma das meninas", disse uma ensaiando o choro. "Claro que não! Os policiais devem ter matado o seqüestrador, como fizeram com o garoto do 174", respondeu uma redatora no ato, lembrando as muitas semelhanças entre aquele caso e o seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, em 2000. No mesmo compasso que os jornalistas do lado de cá da televisão, os repórteres do lado de lá, numa posição bem menos confortável, limitavam-se a narrar as imagens, certamente por não dispor de outras informações além das implícitas.
Entre elucubrações sobre o resultado da invasão e reações indignadas sobre a decisão da polícia, eu e alguns colegas decidimos percorrer outros sites de notícias para, numa tentativa de saciar a tal fome midiática, ver como os diferentes meios, internet e TV, tratavam o assunto, e qual daria primeiro as notícias. Os dois deram quase ao mesmo tempo a informação de que as duas vitimas nas macas eram realmente as meninas Eloá e Nayara. A TV Globo apresentava o Plantão, a Globonews idem, e os sites Folha Online e G1 sequer geravam matérias, optando apenas por criar imensos boxes em suas primeiras páginas, sem que o texto escrito nas manchetes correspondesse a algum link. Era apenas a informação, nua, crua, e dura: "Seqüestro no ABC termina de forma trágica e meninas são baleadas".
As reações de todos ali, naquele momento, foram parecidas num ponto e diferentes noutro. Parecidas porque raiva, medo, pena, indignação, impotência, tudo era compartilhado pelos coleguinhas (forma mezzo carinhosa mezzo corporativista pela qual um jornalista se refere a outro), que, antes de jornalistas, eram pessoas. Mas algo os diferenciava, justamente por serem, além de pessoas, também jornalistas: ninguém conseguia deixar transparecer como aquela notícia tinha abalado a todos. Matéria-prima diária, que apuramos, escrevemos, filmamos, gravamos, fotografamos, editamos e reproduzimos, a notícia deveria ser algo contra a qual estávamos há tempo vacinados. Mas não estávamos e, na inútil tentativa de simular uma falsa supremacia do jornalista sobre ela, cada um começou a fazer um grande exercício teatral para camuflar o contrário. Uns preferiam simplesmente parar de acompanhar a cobertura, mergulhando nas últimas peripécias da cantora Amy Winehouse, ou trabalhando na tradução de um vídeo americano de humor. Outros vociferavam contra a polícia, contra o seqüestrador, contra as (in)decisões e supostas covardias das mais de 100 horas de negociação. Um, mais filosófico, banhava-se de pessimismo e atribuía aquele desenlace ao caráter pérfido do ser humano e à sua enorme capacidade de auto-destruição.
Mas o desfecho estava longe do fim, o que ficou claro com o furo (como os veículos chamam as notícias que dão na frente dos concorrentes) noticiado pela Folha Online. Dessa vez, a manchete era acompanhada de uma pequena chamada que, clicada, levava a um texto, curto e simples, provavelmente redigido com a pressa exigida pelo jornalismo on-line. Reproduzindo informações passadas pelo secretário de segurança Ronaldo Marzagão, o governador José Serra informara à jornalista Cátia Seabra que a garota Eloá havia falecido logo após chegar ao Centro Hospitalar de Santo André, vítima de um tiro na cabeça. Não menos dura, essa notícia insuflou novamente escapistas, indignados e pessimistas. Sem pertencer a nenhum dos três grupos, os olhos de uma amiga da baia em frente à minha encheram d'água, ao compartilhar com a mãe, pelo celular, o quanto tudo aquilo era terrível.
Imediatamente, da Folha Online fui para outros sites ver como haviam noticiado a morte da menina. Nada. Só gigantescos dois minutos depois (sim, em internet dois minutos são muito tempo) o G1 colocou no ar um box, apenas com a manchete, sem estar ligado a nenhum texto. "Governo de SP diz que garota Eloá morreu; hospital nega". Foi o auge da guerra. Afinal, uma versão confrontava-se diretamente com a outra. A negativa do hospital podia ser verdadeira, mas como duvidar de uma informação oficial do governo? Os que tinham optado por se refugiar em seus próprios trabalhos foram novamente atraídos para os portais de notícia ou para a frente da televisão. Ainda havia esperança, ainda havia notícia.
Cinco minutos se passaram desde a fagulha acionada pelo G1, e as mãos voltaram a suar com a música do Plantão da TV Globo. Inundando a redação de tristeza, Fátima Bernardes, com ar taciturno, disse que a assessoria de imprensa do Palácio dos Bandeirantes havia informado que a menina Eloá Pimentel acabara de falecer, vítima de dois disparos, um na cabeça e outro na virilha, acontecidos no momento da invasão policial ao apartamento. "A cobertura completa sobre essa tragédia você vai ver no Jornal Nacional."
A partir daí, não restou dúvida de que a menina estava morta. Afinal, a jornalista mais conhecida do Brasil, provavelmente uma das brasileiras com mais credibilidade, apresentadora do produto jornalístico mais consumido, havia acabado de confirmar o acontecido. O próprio formato do Plantão, pensado justamente para dar notícias de impacto e de grande interesse público, contribuiu para que todos aumentássemos nossas certezas. Quem questionasse, argumentando que o hospital desmentia a morte, estava isolado e certamente estaria errado. "Se a TV Globo deu, meu amigo, desista", disse o indignado, que atribuía a negativa do hospital a uma manobra para esconder a truculência policial. O pessimista voltou a vociferar contra a natureza humana e os escapistas aproveitaram o fim de tarde para fumar um cigarro do lado de fora do prédio.
Eu queria acreditar na sobrevivência da garota e, enquanto aumentava o escopo dos sites de notícia bisbilhotados, torcia para que minha intuição estivesse certa. Minutos depois, um colega passou pelo programa de mensagens instantâneas o link para o Uol Notícias, que também reproduzia a versão do hospital. Pouco a pouco, aquela hipótese ganhava corpo. De isolados, os questionadores passaram à nobre e anárquica condição de cavaleiros da esperança. Quinze minutos se passaram sem que o front fosse bombardeado por novas versões, até que a Folha Online contra-atacou. "Governo volta atrás e diz que garota mantida refém permanece em estado grave". Ao reproduzir, com comentários, a manchete por toda a redação o indignado conseguiu o que queria. "Tá vendo? É tudo culpa desses políticos. Eles querem fazer politicagem até com a vida da menina", reclamava elevando o tom de voz. "É verdade! Que horror! Político é mesmo um nojo, né não?", outro resmungou, aderindo ao indignado, que se aprazia ao ver que conquistara mais um seguidor.
Minutos depois da web, a TV saiu da trincheira e também adotou a tática da defesa por meio do ataque. Fátima Bernardes interrompeu novamente a programação, embalada pelo suspense da vinheta, para corrigir em alto e bom tom a confusão e dar nome aos bois : "O Palácio dos Bandeirantes acaba de dizer que não está confirmada a morte da menina Eloá Cristina da Silva. Como dissemos há pouco aqui no Plantão, enquanto o hospital insistia que Eloá estava viva, os assessores de imprensa do Palácio dos Bandeirantes Juliano Nóbrega e Adalberto Botini confirmavam oficialmente a informação da morte. Momentos depois, a assessora de imprensa Paula Santa Maria, também do Palácio, negou a informação, dizendo que Eloá continua internada em estado grave no hospital. Outras informações a qualquer momento e a cobertura completa no Jornal Nacional".
Explicações dadas, responsabilidades repassadas, erros esquecidos, os portais e os telejornais da noite detalharam como haviam sido os tiros que atingiram as duas meninas e quão grave era o estado de Eloá. Terminava a batalha entre as mídias, mas continuava a guerra íntima dos jornalistas, cujos veículos em que trabalhavam até podiam cumprir seus papéis e continuar a competir pela primazia da notícia. Os profissionais, no entanto, numa desoladora e unânime postura, fossem eles pessimistas, indignados, escapistas ou esperançosos, sabiam que a triste, inevitável e derradeira notícia mais cedo ou mais tarde teria que ser dada.
22.10.08
Eloá minuto a minuto
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