As promessas feitas pelos candidatos à Prefeitura do Rio para a Lapa, no Centro da cidade, podem ou não ser cumpridas a partir de 2009, mas pelo menos um presente deve ser dado em 2009 ao bairro, que chega a receber 100 mil pessoas por fim de semana. O documentário provisoriamente batizado de Sistema Lapa de Samba deve entrar na segunda fase de produção nas próximas semanas, após trechos já filmados terem circulado pela internet, organizados em um vídeo promocional criado pelo diretor Bruno Maia, autor do projeto, para facilitar o fechamento de parcerias e a captação de recursos para as fases de produção seguintes.
O vídeo dá o tom de uma das possibilidades de recorte que Bruno aventa dar ao seu filme, além de trazer bons trechos dos depoimentos de Beth Carvalho, Perfeito Fortuna (dono da Fundição Progresso, a maior casa noturna da região), Mart'nália, Teresa Cristina, musa do movimento de renascimento que a Lapa vive há dez anos, Arlindo Cruz, Pedro Holanda e outras personalidades que fazem parte do sistema, mezzo samba, mezzo capitalista, que domina o bairro.
E foi este caráter ambíguo mas complementar do bairro que pautou parte da minha conversa com o diretor Bruno Maia, coisa de duas semanas atrás num bar de Botafogo, entre latas de Coca Zero e rebeldes toalhas de mesa levantadas pelo vento. Agitado, gesticulador, perspicaz e com talento para frasista, Bruno é jornalista especializado na cobertura de música (ele edita o Sobremusica), já dirigiu um primeiro documentário, que prefere deixar na gaveta por um tempo, e tenta provar com seu novo filme que é possível fazer cinema de qualidade com pouco dinheiro no Brasil. Ainda sobre o cinema, adianta que está mais interessado no tema de seu documentário que em firmar-se como documentarista.
Outro rótulo que rejeita é o de ter feito parte da primeira geração do renascimento da Lapa, formada pela classe média da Zona Sul do Rio que a partir de 1997 invadiu a degradada região para, junto com bambas do samba de outros tempos, dar à luz um dos movimentos culturais brasileiros mais significativos desse início de século. Não há registro de um ponto, um evento, uma data que marque essa nova Lapa, o que já evidencia a naturalidade como tudo aconteceu. Hoje, numa espécie de dilema ovo-galinha, não se sabe o que veio antes: as dezenas de casas noturnas ou o interesse do público por um espaço cultural de qualidade na cidade. A verdade é que a Lapa há muito a Lapa deixou de ser noite alternativa. Copiando a ironia Bruno, se alguém ocupa o espaço de noite alternativa hoje na cidade, este alguém é a Baronetti (boate de hip-hop e techno em Ipanema, freqüentada por jovens de classe média alta que gastam cerca de R$ 70 por noite e protagonizam cenas como a da morte do estudante Daniel Duque, em junho deste ano).
O tripé que dá nome ao filme é explicado pelo já citado caráter dúbio da Lapa, que mistura interesses musicais, artísticos ou de lazer, com interesses financeiros. Citando Michael Herschmann, professor de Comunicação da UFRJ que publicou o livro Lapa - Cidade da música, Bruno acredita que o bairro é um exemplo de sucesso da economia criativa, em que a indústria criativa é auto-sustentável, sem precisar de incentivos do governo ou patrocínios de empresas. E o sucesso é tamanho que os artistas também podem prescindir de contratos com gravadoras e eventuais discos de sucesso para sobreviver de música. Ali, apenas os shows são suficientes para que cada um tire seu sustento e continue tocando a bola para frente.
Mas vale aqui a pergunta: o desinteresse é dos artistas pelas gravadoras ou das gravadoras pelos artistas? Sem dúvida, responde Bruno, é a segunda opção. Dos astros da Lapa, apenas alguns nomes, como Teresa Cristina, Fino Coletivo, Casuarina, gravaram discos, e nenhum deles teve grande sucesso comercial. "Se um deles estourasse de vendas, as gravadoras enlouqueceriam para tê-los como contratados. Foi assim com os sertanejos, os pagodeiros, os MCs do Funk e não seria diferente com o samba da Lapa", elucubra.
Linguagem do filme ainda será definida
Rejeitando uma tendência iniciada no documentário brasileiro talvez por Eduardo Coutinho, Bruno e sua equipe – formada, entre outros, pelo também jornalista Mário Cascardo – não fazem entrevistas prévias antes de gravar os depoimentos. Por duas razões: uma de cunho orçamentário e outra que tem a ver com a personalidade do próprio Bruno, que conduz as conversas e dirige todas as cenas. “Não teria cara para, depois da Teresa Cristina contar uma história maravilhosa para mim, pedir que repetisse na frente das câmeras. Soaria artificial”. Mas nem só de vantagens se faz essa escolha. Ter de voltar ao mesmo entrevistado para checar alguma informação, fazer novas perguntas ou gravar outros momentos, é algo que pode acontecer nessa nova fase da produção, que deve começar em breve, após Bruno firmar parceria com uma produtora especializada em documentários.
Nessa nova fase, também será feita outra escolha, sobre a linguagem do filme, discussão que ganha relevância com a falta de originalidade e ousadia que atinge o subgênero "documentários sobre música" atualmente no Brasil. Os três que lembro rapidamente, Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, Meu tempo é hoje (2003), de Izabel Jaguaribe, e O Mistério do Samba (2008), de Lula Buarque de Holanda e Carolina Jabor, apresentam o mesmo formato de mesclar cinema de observação com depoimentos, fórmula que funciona, mas já está pra lá de desgastada. Mas ele confessa ainda não ter encontrado um jeito de superá-la e nem sabe se o deseja, pois admite não gostar, por exemplo, de "documentários que sobrepõem a narração do processo de produção ao conteúdo do filme", embora reconheça não ser essa a única maneira de ir além do esquema observação-depoimentos.
Mesmo assim, Bruno garante que nada está definido, pois muito pode acontecer na nova etapa de gravações que se inicia. Mas, pelo tom do promo divulgado na internet (assista aqui no Textos etc), a tendência é a montagem seguir mais uma vez essa linguagem que, temos de admitir, funciona muito bem com o excelente material do qual ele dispõe.
16.9.08
Samba, capitalismo e escolhas na Lapa de Bruno Maia
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