26.4.08

O mirante azul começa a se transformar

Diferente de outros bairros cariocas, como Tijuca e Botafogo, por exemplo, que atravessaram longas etapas de transformação, Copacabana já nasceu com a configuração de um bairro. Em menos de 30 anos, já estava ocupado e dotado de todos os serviços urbanos. Pode-se dizer que Copacabana nasceu moderna porque não trazia em si marcos da cidade do passado e sim da cidade moderna. Foi fruto do empreendimento imobiliário de cunho capitalista, em que rapidamente foi absorvido tudo o que havia de novidade, seja nas formas arquitetônicas, nos materiais de construção, seja nos hábitos e costumes. Em Copacabana se forjou o novo modo de viver do carioca.

Nas sucessivas demolições que se processaram, o bairro foi perdendo os vestígios do seu passado. Enquanto no Centro, o morro do Castelo, berço histórico da cidade, era arrasado, Copacabana perdia sua Igrejinha de N.S. de Copacabana, um dos marcos de suas origens. O imenso areal, cenário paradisíaco que contrastava o azul do mar com o brilho do sol, tinha um nome bastante sugestivo para sua beleza. Em quíchua, língua indígena até hoje falada na Bolívia, Peru, e outros países andinos, copacabana quer dizer mirante azul. Muito afastada do centro da cidade e de difícil acesso, a região continuaria pouco povoada até o final do século XIX, quando lá chegaram os trilhos de bonde. Mas antes é importante entender porque isso aconteceu.

Até meados de 1870, o Centro do Rio concentrava as atividades manufatureiras, o comércio, o porto, os serviços e a maior parte das moradias urbanas. Naquele tempo, era regra morar-se perto do trabalho. O entorno desse eixo principal era escassamente ocupado por casas de residência permanente e a cidade ainda não estava dividida de forma funcional como hoje, em área comercial, área industrial e residencial. Simultânea ao crescimento da população, houve a implantação de serviços públicos, principalmente de transportes coletivos modernos, como bondes e trens. Novas áreas foram sendo incorporadas à malha urbana, dando origem a diversos bairros e, não por acaso, a excelentes negócios.

Copacabana já nasceria famosa, por ser pivô de uma das mais escandalosas concessões de serviços públicos do Segundo Império. A construção e a exploração das linhas de transporte, bem como de outros serviços e grande obras públicas, eram feitas por particulares ou empresas através de concessões obtidas com o governo imperial. Uma dessas concessões foi dada a um empregado do Paço Imperial, que passou a ter o direito de criar e tocar um projeto, desde que não interferisse na rota de trilhos já existente, da Botanical Garden Rail Road – a mesma que, mais tarde, viria a ser chamada de Light. Para isso, o trajeto fazia um complicado ziguezague, que, partindo do Centro, percorreria os bairros da Glória, Flamengo e Botafogo, até atingir Copacabana, exigindo a abertura de ruas e túneis. Após se associar com um rico negociante, o camareiro do Paço e seu sócio – sim, ele tinha um sócio também enfronhado nos corredores palacianos –, deram início à construção do ambicioso projeto.

Com o começo da obra, teve início também uma disputa judicial com a já citada Botanical Garden, que se sentiu prejudicada em seus direitos. Mesmo tendo persistido na construção, a associação formada pelo camareiro de prestígio, o amigo adulador e o negociante poderoso não teve força para barrar o interesse da multinacional. As obras foram suspensas e a tal associação nunca conseguiu licença para operar os bondes. Neste meio tempo, a polêmica “questão dos bondes da Copacabana” já ocupava as páginas de diversos jornais, que, não muito diferente do que ocorre hoje, trocavam acusações e denunciavam conchavos e cambalachos dos dois lados da história. Somente em 1890, interessada em renovar seu contrato com a municipalidade, A Botanical Garden se comprometeu a estender um ramal de Botafogo a Copacabana, intenção que se concluiria dois anos depois, com a criação de um túnel ligando os bairros. Era dada a largada para a destruição do mirante do azul. Ao pensarmos a história de Copacabana, chega a ser no mínimo curioso o fato do bairro já ter nascido sob a égide da polêmica.

Um ano antes, estava formada a Empresa de Construções Civis, companhia imobiliária que loteou a maior parte da área do bairro, e que tinha entre seus sócios desde o tal negociante que se associara anos antes com os funcionários reais até, veja só, acionistas da Botanical Garden, agora já chamada de Companhia Jardim Botânico, todos famintos por fazer bons negócios. E seriam necessárias décadas e décadas para matar essa fome.

Os proprietários tinham interesse que ruas fossem rasgadas e que mais linhas de bonde fossem criadas. Dito e feito: o progresso chegava. As linhas de bonde já iam até a Igrejinha, como era chamada a região em torno de uma pequena igreja erguida no século XVIII para Nossa Senhora de Copacabana, e o Barão de Ipanema, grande proprietário de terras na região homônima, mostrava interesse no prolongamento do ramal até sua praia. Cabe aqui frisar que era extremamente interessante para os dois lados, os proprietários de terras e a Companhia Jardim Botânico, que o progresso chegasse logo ao bairro.

"É incontestável que as duas praias de Copacabana e Arpoador são dotadas de um clima esplêndido e salubre, beijadas constantemente pelas frescas brisas do oceano, constituindo dois verdadeiros sanatórios e por onde pode respirar a largo a população desta capital na estação calmosa, em que é infelizmente dizimada por epidemias periódicas e mortíferas (...). À exceção de um ou outro prédio bom, os demais são, na verdade, pequenas e pobres choupanas. É um bairro a criar-se (...)
Dentro de um lustro, aqueles desertos do Saara, como os qualificam, se converterão em grandes povoações, para onde afluirá, de preferência, a população desta cidade na estação calmosa, devido à salubridade e à excelência dos banhos de mar, como se pratica nas cidades balneárias da Europa."

O trecho acima, ao refletir a posição dos diretores da Companhia Jardim Botânico, é interessante para observação sob três aspectos. Primeiro, o já citado, sobre o interesse imobiliário em Copacabana. Segundo, a tendência europeizante da época, que fica clara quando o texto vislumbra a possibilidade de tornar a praia de Copacabana em um balneário europeu. E, por fim, demonstra a visão de que o bairro seria um pequeno pedaço do paraíso, com clima "esplêndido" e brisas "frescas", que beijam sua praia, capazes de curar até doenças mortíferas, tão comuns no insalubre Rio de Janeiro de então. Esta será uma representação recorrente do bairro.

A Companhia Jardim Botânico teve um papel importante na construção dessa imagem, através da impressão de versinhos nas passagens, fazendo propaganda da praia. Uma das características mais alardeadas era a salubridade, a ponto de Copacabana ser chamada de um "portentoso sanatório". Enquanto no resto da cidade, velha e infecta, as epidemias se multiplicavam, o bairro simbolizava a vida e a saúde, imagem reforçada pela presença das casas de repouso à beira-mar.

Ó pais que tendes filhos enfezados
Frágeis e macilentos e nervosos
Afastai-os da manga e da banana!
À beira-mar! Aos ares salitrados!
E heis de ve-los rosados e viçosos
Vindo a Copacabana!

Sofreis de beri-beri! Ouvi atento
Este conselho que vos não engana
Usai banhos de mar, tereis provento,
Mas, em Copacabana

E nas primeiras décadas essa imagem de bairro ameno não era tão distante da realidade. Havia um costume entre os comerciantes, para atrair novos moradores como clientes, de levar presentes no dia da mudança. O açougueiro oferecia o melhor pedaço de filé; o padeiro, o pão mais bonito; o armazém, um quilo de feilão, arroz ou batata. Os concursos e festas na praia eram freqüentes, com eleições da rainha e do homem mais feio de Copacabana. A criminalidade era escassa e, segundo registros históricos, reinava uma paz inimaginável para quem só conheceu o bairro a partir da segunda metade do século XX. Solidão e isolamento, marcas da Copacabana contemporânea, eram idéias absurdas para aquela praia paradisíaca. Mas o progresso viria, avassalador, e com ele, muita coisa mudaria.

Obs.: Ambos os trechos em destaque foram retirados do livro História dos bairros – Memória Urbana: Copacabana, de Elizabeth Dezouzart Cardoso, publicado no Rio de Janeiro: Editora Index, 1986

Na próxima reportagem: Com novas avenidas, prédios e carros, muita coisa muda em Copacabana

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