Leia as outras reportagens do especial As esquinas de Copacabana:
As esquinas de Copacabana
História do bairro 1: O mirante azul começa a se transformar
História do bairro 2: Balneário de uma Europa Tropical
História do bairro 3: A cidade dentro da cidade
Parte da produção cultural sobre Copacabana, como canções precurssoras da Bossa Nova, criou a idéia de um bairro símbolo da idéia de que o Brasil é o paraíso na Terra
Jornalista e escritor de mão cheia, Ruy Castro dá as costas para o politicamente correto logo nas primeiras linhas de seu A Onda que se ergueu no mar – Novos Mergulhos na Bossa Nova e critica a produção musical das gerações de 1980 e 1990, que julga muito influenciada pela música eletrônica, para louvar as merecidas qualidades de sua grande paixão, a Bossa Nova, é claro. Em seguida, explica que o gênero vinha sendo redescoberto desde o início dos anos 1990, quando, segundo ele, os ouvidos descobriram que nem todas as músicas tinham de "espelhar a barbárie".
Se as idéias do jornalista condizem ou não com o que realmente foi o gênero, ou com o que realmente são as aspirações tupiniquins, pouco interessa. Interessa sim entendermos por que e como se forjou esse caldo cultural que, ao longo dos séculos, transmitiu a idéia de que o Brasil é um paraíso. Como e por que temos, até hoje, parte da produção cultural nacional é calcada na utopia? No início do século passado, Copacabana era para muitos, como já se disse aqui, um pedaço desse paraíso. Mesmo com a destruição ambiental, a superpopulação, a prostituição, e dezenas de outros problemas, o bairro continua sendo representado dessa forma em poesias, canções e representações imagéticas, como vinhetas de televisão e cartões-postais.
É claro que ser visto como paraíso, como espaço da utopia, não é privilégio de Copacabana. O Brasil, como disse Darcy Ribeiro uma vez, é fundador da idéia de utopia. As raízes históricas de tudo isso foram plantadas numa profundeza de mais de cinco séculos por figuras tão díspares como Pero Vaz de Caminha, Américo Vespúcio, Montaigne e Thomas Morus (veja quadro abaixo). O bairro representa, porém, um importante microcosmo desse todo, não apenas pela fama internacional, mas por estar situado na cidade que, há pelo menos dois séculos, com a chegada da família real, pode ser considerada a capital cultural do país.
Brasil, o fundador da utopia
Pero Vaz de Caminha: foi o primeiro, é claro, a mostrar o Brasil como o paraíso na Terra para a sociedade ocidental. Ao chegar à Bahia e não encontrar as bestas medievais que existiam no imaginário europeu, não conseguiu esconder o espanto ao escrever sua Carta. Retratou uma pureza já perdida na Europa, mostrando os índios como seres humanos e não sob o estigma preconceituoso dee bárbaros. Para ele, eram feitos à imagem e semelhança de Deus, exatamente como escrito nas Sagradas Escrituras. Repete mil vezes que são belos, limpos e sadios e vê a nudez dos nativos como sintoma de pureza, inocência e ingenuidade, provavelmente inspirando-se em Adão e Eva, antes da primeira mordida.
Américo Vespúcio: contribuiu significativamente com preciosos registros, realizados por meio de sua primeira viagem ao Brasil. Em agosto de 1501, as três caravelas da esquadra de Vespúcio ancoram na Praia de Marcos, litoral do atual Rio Grande do Norte. Percorreu todo o litoral da então Terra de Vera-Cruz e colocava em seus escritos relatos sobre o modo de viver dos índios e como era amistoso o contato com os que não eram antropofágicos. Ao chegar no lugar que daria o nome de Angra dos Reis, Vespúcio carregou a tinta da pena e disse “algumas vezes me extasiei com os odores das árvores e das flores e com os sabores destas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do Paraíso Terrestre”
Thomas Morus: A Utopia de que fala Morus em seu livro homônimo é uma ilha afastada do continente europeu, mas o protagonista Rafael Hitlodeu não diz com convicção em que oceano ela fica. Apenas diz que foi para lá depois de embarcar em uma das viagens de Américo Vespúcio. A Ilha de Utopia, como já diz o termo, é a sociedade ideal, inatingível, que traduz um estado de bem estar dos seres humanos.
Montaigne: foi o primeiro grande nome das letras européias a fazer referência explícita ao Brasil, graças às informações de um homem que estava a seu serviço e que por aqui estivera nos tempos da França Antártica. Considerava os índios como seres criados por Deus em estado puro e usou seus costumes saudáveis, visto que ignoravam as palavras "mentira", "traição" ou "avareza", para fazê-los contrastar com a França do seu tempo.
Copacabana, o mais doce dos sons
E já que as primeiras linhas dessa reportagem começaram falando de música, que se mantenha a coerência e se fale primeiro sobre a mais universal das artes. Duas canções sobre Copacabana, compostas em 1946 e 1951, são perfeitas para dar o ponto de partida e exemplificar o pouco escrito até aqui. Poucos sabem, mas a talvez mais famosa canção sobre o bairro, a homônima Copacabana, surgiu quase como um jingle publicitário. Os compositores João de Barro, o Braguinha, e o médico homeopata e humanista Alberto Ribeiro receberam a encomenda de Copacabana em 1994, do produtor cinematográfico norte-americano Wallace Downey, para servir como "identificação musical" de um casa noturna que seria inaugurada em Nova York com o nome do bairro. Mesmo com a conhecida rapidez de Braguinha em produzir canções em um ritmo de dar inveja a John Ford, os anseios do produtor americano não foram correspondidos e a canção demorou dois anos para ficar pronta. Só seria gravada em 1946 e, nesse momento, entraria para a história por três motivos. Primeiro, revelava um novo tipo de cantor romântico, Dick Farney, que até então escondia sua sensibilidade bem brasileira na interpretação de baladas americanas. Depois, consolidava o samba-canção como gênero importante no repertório nacional e, por fim, cristalizava, para sempre, o charme daquele lugar que a todos parecia paradisíaco.
Copacabana foi um divisor de fases na música popular brasileira, mas, como explica Moacyr Andrade em seu artigo Copacabana Musical, não foi o primeiro a projetar o bairro internacionalmente. O violinista e maestro argentino Julio Cairo já havia feito o tango Copacabana, de 1927, ano em que abrilhantou os salões do Copacabana Palace numa temporada de colocar inveja aos Stonnes. Contou em seu El Tango de Mis Recuerdos que o estalo para a criação veio após observar das janelas do hotel, às três da madrugada, a beleza da praia. Fez a letra, chamou o irmão Francisco para fazerem juntos a orquestração e pronto. Já tinha roubado a primazia de Braguinha e Alberto de Ribeiro. E outros o fizeram ainda na primeira metade do século. Há o registro de mais uma Copacabana, dessa vez do regente e compositor paulista Assis Pacheco. Sem contar a gravação de Let's go to Copacabana, feita por Carmen Miranda, um ano após Dick Farney gravar a sua, para o filme que levava o nome do bairro, dirigido por Alfred E. Green.
Se roubaram a primazia da dupla, essas músicas não roubaram a importância da canção como faixa fundamental na trilha sonora do bairro. Foi interpretada por grandes nomes da nossa música e sua letra, até hoje, é um exemplo perfeito de como Copacabana foi e ainda é vista também com olhos iludidos e românticos, dotados de um astigmatismo que só enxerga a bela curva da praia, do calçadão, do resto de natureza que ainda resiste e persiste. A imagem que a canção produz na última estrofe, de que o mar, um eterno cantor, apaixonou-se ao beijar a praia com suas ondas, tem uma função fundamental dentro da estrutura do poema. Ela aproxima o eu-lírico do mar, protagonista supremo e inquestionável do bairro, e concretiza a idéia de que Copacabana, o bairro, serve como um espaço para a realização do poeta, assemelhando-se com o que faz Vinícius de Moraes em outro poema, como será visto em breve.
Segundo Renato Cordeiro Gomes, autor do livro Todas as Cidade, a cidade, esta apropriação de Copacabana, ou seja, da cidade, pelo eu-lírico do poema, provoca uma ação recíproca e conivente da própria cidade. Ao se fazer intérprete dela, seu devoto e seu cúmplice, seu leitor, portanto, o eu produz sua cidade que, por sua vez, o produz, exercendo nele o seu poder poético. Não é só na Física que a lei da ação e reação impera. Não é à toa que no último verso o poeta promete amor eterno à Copacabana, fazendo inveja aos mais exacerbados românticos e corroborando a explicação que Renato dá.
A composição de Sábado em Copacabana já possui uma história diferente, a começar pelo modo como foi feita. Fruto de uma parceria entre Dorival Caymmi e Carlinhos Guinle, e lançado pela voz de Lúcio Alves em 1951, o samba-canção foi um dos vários "flagrantes" do Rio que a dupla fez. Para alegria dos paulistanos, sempre dizendo que cariocas não gostam de trabalhar, o primeiro verso já expõe a controversa tese. Flertando com a etimologia da palavra, o trabalho, para o eu-lírico, é um sofrimento. Copacabana, sim, não é desperdício. É viver intensamente, amar intensamente. Copacabana, novamente, assim como na canção de Alberto Ribeiro e Braguinha, aparece como o espaço de realização do poeta. Um lugar capaz de, voltando ao que diziam os versinhos impressos nas passagens dos bondes da Companhia Jardim Botânico, contrabalançar o peso que é o trabalho. Copacabana já aparece nesse samba-canção também como lazer. E vale observar que é um lazer também do asfalto e não apenas da natureza. Junto com o mar, estão o bar, o jantar, a dança. Diferente da representação de Copacabana, aqui não é só a natureza a responsável pela realização do poeta. A diferença de cinco anos entre o lançamento de Copacabana e Sábado em Copacabana explicaria esse começo de mudança? Talvez. Como foi visto nas reportagens anteriores da série As esquinas de Copacabana, a vida noturna no bairro começou após a Segunda Guerra Mundial. A canção de Caymmi e Guinle já foi composta, portanto, em uma Copacabana com mais vida noturna que na época da composição de Braguinha e Alberto Ribeiro. Há certeza, isso sim, que as duas explicam como é efêmero o tempo no bairro, como tudo passa tão de pressa e deixa sempre uma saudade na gente.
E por falar em saudade, onde anda Vinícius de Moraes e seu Esta é Copacabana, ampla laguna, citado no início dessa reportagem? Certamente, "desnudando estrelas" com seus olhos, "discursando à lua", enquanto, dentro da "cidadela forte", como ele chama o bairro, "encontra enfim sua poesia". O belo e imagético poema de Vinícius pode ser citado como mais um exemplo de realização do poeta dentro do espaço urbano, neste caso, Copacabana. Um caso até mais explícito. E é com trechos do poema do poetinha que esse post chega ao fim.
"Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
(...)
Tu, Copacabana
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível"
Na próxima reportagem: A Copacabana paradisíaca da televisão e dos cartões-postais
15.5.08
A Copacabana paradisíaca
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