3.10.06

Como dói ver de verdade

Conhecido na Europa como o Tchecov irlandês, Brian Friel tem uma grande capacidade de mostrar as transformações sentimentais dos personagens, seus dramas e frustrações. Molly Sweeney - um Rastro de Luz, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, conta a história de uma mulher cega desde os dez meses, já habituada, portanto, em ver através dos outros quatro sentidos e de sua sensibilidade. Molly, interpretada magistralmente por Julia Lemmertz, é casada com um homem imaturo (Orã Figueiredo), ora frustrado por não ter conseguido enriquecer com idéias sem sentido, ora colocando na possibilidade de Molly voltar a enxergar a sua própria felicidade. Influenciada pelo marido e pelo renomado Dr. Rice (Ednei Giovenazzi), desprestigiado pelo passar dos anos, ela decide fazer uma cirurgia que recuperaria sua visão. Feita a operação, Molly é obrigada a encarar um novo mundo, e leva a peça de Brian a uma série de questões.

Mas não se afobe não, que nada é pra já. Falemos antes dos atores. O marido criado por Orã Figueiredo fica caricatural em alguns momentos, mas faz bem o papel do homem que não tem uma idéia muito clara das conseqüências da cirurgia e é egoísta demais para suportar suas implicações. Ednei Giovenazzi brilha como o médico cuja mulher fugiu com um amigo e que vê na cirurgia uma forma de recuperar o sucesso de outros tempos, mas imperdível mesmo é Julia Lemmertz. O conhecido talento da atriz fez uma Molly extremamente sutil, delicada e sensível. É impressionante a preocupação de Lemmertz em conceituar uma linguagem corporal e gestual para a personagem, ainda por cima totalmente diferentes de outra personagem cega que interpretou na televisão.

A peça é escrita como se fossem três monólogos que se intercalam, e se desdobra enquanto os três personagens contam suas versões sobre a trajetória de Molly. A falta de comunicação entre os três fica clara no cenário, em que os três estão com algum material cênico e, separados, trocam idéias com o público e narram a história que viveram juntos. O diretor da peça, Celso Nunes, também assina o cenário, a iluminação e a trilha sonora, que funcionam perfeitamente com o conjunto. A iluminação é fundamental para a divisão da peça em três monólogos, enquanto a música só faz aprofundar a delicadeza da história. Outro destaque é o figurino, com detalhes como flores que são colocadas e tiradas, que transformam uma roupa em várias, além de outras peças que ressaltam a sutileza de Molly.

Vamos, então, às discussões que a peça suscita. Brian Friel inspirou-se no caso verídico narrado pelo neurologista Oliver Sacks para criar a história de Molly e do marido e do médico que querem operá-la a todo custo, sem se importarem realmente se ela quer ou não enxergar, ou melhor, enxergar como eles enxergam. Em um primeiro momento, podemos pensar que os três estão cegos. Molly, porque realmente é, e os outros dois por seus egoísmos. Mas, na verdade, como bem disse o tradutor da peça João Bethencourt, a personagem que melhor vê na peça é Molly. Dr. Rice e Frank não conseguem ver que é a si mesmos que pretendem salvar.

O mais fantástico da peça é não se restringir ao tema dos deficientes físicos, vital para o espetáculo, mas focar numa abordagem que se aplica a todos nós, que muitas vezes ficamos presos a nossos objetivos e convicções e nos tornamos cegos para com os outros, suas necessidades e verdadeiros desejos. Molly diz na peça que não precisava passar a enxergar como Frank e Dr. Rice enxergavam. Ela era feliz assim, trabalhava, era independente e totalmente adaptada a um mundo de sensações. Depois da operação, Molly não se adapta ao novo mundo que se apresenta a ela. Diz que ele é muito rápido e desenvolve uma doença chamada visão cega, em que ela passa a ver tudo nebuloso, apesar de biologicamente ter a capacidade de enxergar. Nesse novo mundo, ela perde a tranqüilidade e a auto-confiança, respondendo a uma pergunta que o marido havia feito antes da cirurgia para Dr. Rice sobre o que ela poderia perder com a cirurgia. Mas ela perde mais. Ela vive agora num espaço sem fronteiras e não se preocupa mais com o que é fantasia ou realidade.

O único porém da peça está numa preocupação presente no texto de Brian e que Celso Nunes procurou manter nessa montagem. O autor escreve de forma que até cegos possam "ver" a peça, bastando ouvir o texto para que a história seja compreendida. Por um lado, isso é louvável, mas por outro, torna a história explicada demais, e muito focada em diferenciar o ver da cegueira. Estrelado por Jason Robards, Catherine Byrne e Alfred Molina, o espetáculo foi sucesso na Broadway no final dos anos 90 e apenas uma entre várias peças de sucesso de Friel. Nascido em 1929 na Irlanda no Norte, o dramaturgo começou escrevendo para o rádio e no teatro alcançou seu primeiro grande sucesso internacional em 1964, com Philadelphia, Here I Come, sobre o tema da imigração. Molly Sweeney – Um Rastro de Luz estreou em Dublin em 1994. Com várias peças na bagagem, Friel é considerado um representante do chamado "novo humanismo".

É interessante quando, próximo do fim da peça, Frank conta sobre o dia que tentou tirar um texugo de sua toca no rio e levá-lo para o alto de um morro. O texugo não se adaptou no e voltou para a sua toca original, pois gostava de nadar. Molly pode ser perfeitamente comparada com o texugo. Também não se adaptou ao mundo que a colocaram. Em Molly Sweeney, entendemos como a vida que recriamos em nossa imaginação pode ser bela. Em apenas um rastro de luz, o pouco tempo que enxergou de verdade, Molly entendeu melhor do que ninguém o quanto pode ser doloroso ver de verdade.

Nenhum comentário: