24.3.08

Querida minissérie

Na mesma semana que termina o Big Brother, uma das piores coisas da TV Globo, chega ao fim também a excelente minissérie Queridos Amigos, escrita por Maria Adelaide Amaral. É a melhor coisa em exibição na televisão brasileira nos dois últimos anos. O texto é excelente, da sempre competente escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, cujo currículo nos palcos (Mademoiselle Chanel), na literatura (Aos meus amigos) e na televisão (Os Maias) é primoroso.

Queridos é a adaptação do livro Aos meus amigos, lançado em 1992 por Maria Adelaide. A minissérie se passa em 1989 e mostra o reencontro de um grupo de amigos reunidos pelo que era mais querido por todos. Após descobrir que possui esclerose múltipla, ele decide reunir os amigos distantes há anos e que foram, no passado, uma grande família. Mágoas, dores de amor, ressentimentos, lembranças, vivências, tudo vem à tona em diálogos inteligentes, ágeis, carregados de humor de referência e ironia. A preparação dos atores e direção conseguiram a proeza de deixar todos muito bem em seus papéis – com a desonrosa exceção do pequeno Davi, filho do protagonista Léo (Dan Stulbach).

Foram várias as cenas memoráveis nesse pouco mais de mês de minissérie. Logo no primeiro capítulo, o abraço de Bia (Denise Fraga) na árvore da casa de Léo. Torturada durante a ditadura, Bia vive com a mãe Iracy (Fernanda Montenegro), com que divide grandes cenas. Outra fantástica foi a de Lena (Débora Bloch) e Léo, quando ela soube da doença dele. A reação de Débora foi tão realista que temos certeza de que os dois são amigos de infância. A terceira cena que seleciono no Top 3foi ao ar semana passada, durante o velório de Alberto (Juca de Olveira), quando seus amigos de gafieira adentram o mórbido ambiente tocando e cantando para homenagear o amigo. Emocionante.

Vale destacar o brilhante trabalho que Guilherme Weber fez interpretando o homossexual Benny. Mordaz e às vezes até cruel, Benny é o melhor personagem criado por Maria Adelaide, capaz de dizer coisas como “se eu descobrir que tenho AIDS, saio do hospital, entro numa sauna e transo com 12 pessoas para contaminar” e “Bia é a estupradinha do Brasil”.

Li o livro e digo que é páreo duro para saber o que é melhor. O livro tem a seu favor a riqueza de alguns personagens, apagada na adaptação. Léo, um chato de galocha na minissérie, é uma pessoa bem mais interessante no livro. Mas na TV as interpretações somam e tornam os personagens ainda mais interessantes. Sem contar os personagens que existem num e não existem noutro. Na TV, várias histórias paralelas são criadas, tão interessantes quanto as principais. No livro, entre os protagonistas, existe outro homossexual, chamado Caio, que é condensado em um só (Benny) na minissérie. Existe também, no livro, outro personagem interessantíssimo, chamado Adônis, um obeso mórbido assexuado e que já passou por várias internações em clínicas psiquiátricas.

Queridos amigos dialoga com um tipo de minissérie deixada de lado há alguns anos pela Globo, com produção simples e com o texto como ponto forte. Preteridas por produções históricas primorosas, mas nem sempre bem escritas, minisséries como essa fazem falta. Agora é esperar sair o box de DVDs e comprar para ontem.



16.3.08

Fado português*

Acordar na manhã do dia 30 de novembro de 1807 não foi fácil para os portugueses. A rainha, o príncipe regente, a princesa e os principais membros da nobreza e do corpo de funcionários do Estado haviam fugido para o outro lado do Atlântico. As cidades fronteiriças com a Espanha, por onde entraram as tropas francesas, já haviam sido atropeladas. Em Lisboa, enquanto ainda se via no horizonte as velas da frota portuguesa, um leve terremoto dava início aos trágicos acontecimentos que marcariam aquele país.

Durante os 13 anos em que D. João VI ficou no Brasil, o povo português sofreu com a fome e a guerra. À medida que a notícia de que as tropas comandadas pelo general Junot se aproximavam, as cidades eram abandonadas. Agricultores do interior foram os primeiros a deixar suas fazendas e rumar para a capital, onde a grande preocupação era conseguir mantimentos suficientes para todo o tempo de guerra, com certeza longo. Portugal foi invadido por 50 mil inexperientes e mal treinados soldados franceses e espanhóis. Como a invasão foi feita às pressas e sem planejamento, a maioria chegou a Lisboa em frangalhos. Muitos eram milícias mercenárias, ou seja, estrangeiros contratados por Napoleão para guerrear, sem ter nenhum compromisso com os objetivos franceses. Chegaram a Lisboa sem equipamento e condições físicas para começar nenhuma guerra. Isso só reforça os argumentos dos que defendem que D. João poderia ter ficado e resistido com grandes chances de vitória. Jean Andoche Junot, melhor no combate que na estratégia, também não estava no rol dos grandes generais de Napoleão. Com metade dos cavalos mortos durante o descolamento entre França e Portugal, só contava com seis canhões e pouquíssimas armas e munição. Muitos deles estavam descalços e com as roupas rasgadas, sem nem mesmo conseguir ficar de pé.

Existem três possíveis explicações para um povo acostumado a se defender de invasões muito mais bem estruturadas ter fracassado. A primeira tem relação com o decreto deixado por D. João, orientando os portugueses a não oferecer resistência aos invasores, e as outras duas são psicológicas. A simples menção do nome de Napoleão naqueles dias assustava até os mais bravos combatentes, impressionados com as sucessivas vitórias que o imperador acumulava. Por último, há que se considerar que o povo português estava extremamente enfraquecido moralmente. Por que lutar por um reino em que nem mesmo a monarquia acreditava? O sentimento de traição e de rejeição causado pela fuga afetou durante anos a auto-estima nacional.

Facilmente ocupado, o país enfrentou duras sanções impostas por Napoleão, atingido em sua vaidade por ter sido enganado pela família real. Além do pagamento de uma taxa de 100 milhões de francos aos cofres franceses, algo hoje em torno de 1,2 bilhão de reais, Portugal teve parte de seu exército incorporada às tropas francesas e enviada para lutar do lado francês na Alemanha. Com a ocupação, a nobreza que permaneceu em Lisboa se mostrou subserviente aos novos líderes, enquanto o povo resistiu ao invasor e organizou vários motins por todo o país. Com o contra-ataque da Inglaterra, os franceses se retiraram em agosto deixando para os ingleses todos os bens roubados dos portugueses. Com Portugal sob controle britânico, começava na península ibérica uma guerra encenada por França e Inglaterra como protagonistas e Espanha e Portugal como coadjuvantes. Até 1814, houve mais duas tentativas de invasão francesa, evitadas pela aliança entre Inglaterra, Portugal e, mais tarde, Espanha.

Entre 1807 e 1814, quando a chamada Guerra Peninsular terminou, 500 mil portugueses morreram. O conflito foi um dos mais sangrentos na Península Ibérica e só teve seu fim graças à resistência do povo português e espanhol, que permitiu a ação da Inglaterra contra o bloqueio francês em uma vitoriosa campanha que terminaria com a queda de Napoleão.

Com a mudança da família real, além de depender economicamente do Brasil, agora os portugueses também dependiam das decisões políticas vindas do Rio de Janeiro. A insatisfação era geral, menos por causa da dureza enfrentada nos anos de guerra e mais pelos benefícios que ingleses e brasileiros tiveram com a fuga. Portugal praticamente não vendia mais para o Brasil, cujo mercado foi dominado pela concorrência desleal da Inglaterra. Em vez de dar sinais de que retornaria, D. João percebia cada vez mais como era interessante permanecer no Brasil, por seus recursos, tamanho e localização. Agora, além de ter sido castigado sete anos por uma guerra, Portugal corria o risco de perder definitivamente a maior de suas colônias e sua principal fonte de recursos. E, quiçá, sua família real.

* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.

A maior biblioteca das Américas*

A vida cultural encontrada pela monarquia e pela nobreza de Portugal quando chegaram ao Brasil era muito diferente da que estavam acostumados. O acesso a livros era mínimo, dificultado ao máximo pela Coroa portuguesa, a quem não interessava que novas idéias chegassem ao país e ameaçassem o regime colonial. Esse quadro mudou com a chegada da biblioteca da família real, dois anos depois que D. João e companhia desembarcaram no Brasil. Seu acervo, um dos maiores do mundo, colocava o Rio de Janeiro como sede de uma biblioteca com mais de quinhentos anos de história.

Desde o século XIV, existem registros de que os reis portugueses tinham boas bibliotecas. A tradição foi seguida por sucessivas gerações, ao ponto de, na Era dos Descobrimentos, a fama da Real Biblioteca já ter se espalhado por todo o continente europeu. À medida que era ampliada, a coleção se tornava tão importante quanto o ouro recebido do Brasil. Seu acervo continha coleções de manuscritos históricos, materiais editados nos primórdios da imprensa, obras de arte e mapas. Ter documentos daquela importância simbolizava prestígio e erudição para o Estado português.

Quando o terremoto que arruinou a capital portuguesa em 1755 matou 30 mil pessoas e destruiu quase todos seus prédios, o Palácio da Ribeira, que abrigava a biblioteca, ficou em ruínas e quase toda a Livraria de El Rey, como era conhecida no reino, sofreu um incêndio e foi reduzida a cinzas. Organizá-la novamente foi uma das metas políticas do marquês de Pombal, poderoso ministro de D. José I, rei que governou Portugal até 1777. Pombal investiu e trabalhou para fazer daquela nova biblioteca um símbolo de idéias, projetos e representações do universo de uma elite intelectual e de uma monarquia culta e esclarecida. Mas as mudanças na política nacional foram mais rápidas que os planos do ministro. Após a morte do rei, Pombal foi afastado do poder pela sucessora da dinastia dos Bragança, D. Maria I. A nova rainha trouxe a religião novamente para o centro dos assuntos nacionais e tudo que lembrasse Pombal e suas idéias iluministas, de uma Igreja submissa ao Estado, ficaria em segundo plano.

Em 1807, com a correria da fuga para o Brasil, os 317 caixotes com todo o conteúdo da Real Biblioteca e vários documentos lusitanos, que tinham sido embalados às pressas, ficaram esquecidos no cais de Belém. No Rio de Janeiro, foi o próprio príncipe regente que deu falta do acervo e ordenou a vinda de seus livros e documentos. No acervo existiam livros como Príncipe Perfeito, que reunia emblemas e sonetos com recomendações para os monarcas portugueses de como governar.

Se em 1808 a viagem da família real já foi um acontecimento inusitado, o transporte de uma das maiores bibliotecas do mundo, dois anos depois, não seria diferente. Portugal ainda estava em guerra com a França e o embarque das obras teve que ser discreto e feito em três remessas. A primeira leva foi enviada em 1810, com o acervo do Infantado, que reunia livros e documentos exclusivos para príncipes, e a coleção de manuscritos da Coroa. Parte do que ficou em Portugal, provavelmente muito bem escondido para resistir aos saques ocorridos durante a guerra, só chegaria ao Brasil em 1811 trazido pelo arquivista real Luís Joaquim dos Santos Marrocos. A terceira e última parte da Real Biblioteca demoraria mais alguns meses até ser enviado, no final do mesmo ano.

Trazer para o Brasil a biblioteca significava trazer também uma verdadeira política de Estado baseada na idéia de que, naquelas obras, estavam depositados conhecimentos universais. Aos poucos, o Estado português era transferido para o Brasil. Instalada no andar superior do Hospital da Ordem do Carmo, nos arredores do Paço, a biblioteca inicialmente ficou restrita a estudiosos autorizados por D. João, que mandou construir um passadiço entre a Capela Real e o prédio do hospital para facilitar o acesso da família. Quando foi aberta e colocada à disposição do público que se associasse, o Rio de Janeiro se tornou a sede da maior biblioteca de todas as Américas, que reunia na época mais de 60 mil livros.

Com a independência brasileira e o retorno da família para Portugal, começava uma grande discussão para decidir que cidade ficaria com a biblioteca. Lisboa, a capital original em que a Real Biblioteca foi criada ou o Rio de Janeiro, onde fazia parte de uma estratégia de fortalecimento científico e cultural de uma nova nação? A batalha foi vencida pelo Rio, mas com um alto custo. Com a decisão dos dois lados de que Portugal deveria ser ressarcido pela independência brasileira, os cofres brasileiros deveriam pagar para ter o direito de ficar com a biblioteca. O valor atribuído foi tão alto que só a biblioteca representava 12,5% do total da conta apresentada pelos portugueses. Assim, ao pagar por sua independência, o Rio de Janeiro continuava a sediar uma das maiores coleções de livros do mundo e consolidava sua posição de capital cultural brasileira. A Real Biblioteca ainda formaria muitas gerações de governantes e intelectuais. A diferença é que, agora, eles seriam brasileiros.

* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.

Vaivém de idéias*

Pouco antes da fuga de Portugal, Antônio de Araújo, futuro conde da Barca, mandou colocar no porão do navio que o traria para o Brasil as tipografias que haviam sido compradas na Inglaterra para a Secretaria de Estrangeiros e da Guerra, de que era titular. Ao chegar no Rio de Janeiro, em 1808, mandou instalar todo o equipamento no porão de sua casa. Esse mesmo equipamento seria usado quando D. João criasse, em maio daquele ano, a Impressão Régia, dando início, com séculos de atraso, à impressão de livros, jornais e documentos no Brasil. Cabia à Impressão Régia imprimir toda a legislação e papéis diplomáticos de qualquer repartição do governo real, além de livros ou jornais. As tipografias trazidas de Portugal cumpriram seu papel com grande produtividade, imprimindo, entre 1808 e 1821, 1000 publicações, numa média de 6,5 impressões por mês.

Em setembro do mesmo ano, D. João instituía a censura prévia, que deveria ser exercida pelo Desembargo do Paço, um organismo censor para a fiscalização de livros e demais publicações. Criada no século XVI, a censura tinha tradição em Portugal, o que explica D. João ter estabelecido o sistema assim que chegou para controlar a divulgação de idéias iluministas e libertárias, extremamente nocivas à manutenção do absolutismo.

Para o Rio de Janeiro, foram nomeados quatro censores, que se revezavam na tarefa de encontrar nos livros indícios contra a religião, a moral e o soberano. Mesmo contando com o auxílio do intendente geral de Polícia, sua eficácia foi prejudicada pelos desentendimentos e pelas vaidades dos censores, que não abriam mão de seus pontos de vista, certos que isso desmereceria suas inteligências.

Para fugir do crivo da censura, o Correio Braziliense, primeiro jornal a circular no Brasil, era publicado em Londres. Seu fundador, o gaúcho Hipólito José da Costa, deixou o país com 16 anos para estudar em Coimbra. Em junho de 1808, morando na Inglaterra, criou o jornal, que tinha cerca de 140 páginas e transmitia as idéias de seu editor. Hipólito era um homem que acreditava numa constituição que limitasse os poderes do rei e garantisse os direitos individuais, a liberdade de imprensa e de religião. Mas foi esse mesmo defensor da liberdade de expressão que aceitou dinheiro de D. João para não publicar opiniões mais radicais em relação ao governo. O acordo foi negociado em 1812 pelo embaixador português em Londres e previa o repasse de uma pensão anual a Hipólito, em troca de críticas mais amenas ao governo de D. João, a quem, mesmo antes de receber qualquer quantia, sempre tratou com respeito. Nascia o fisiologismo na relação entre Estado e imprensa no Brasil.

Mas o primeiro jornal publicado realmente em território nacional foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que começou a circular em setembro de 1808, impresso nas máquinas trazidas de Lisboa. Tinha formato pequeno, com quatro páginas e, para que pudesse circular, deveria trazer em suas páginas somente notícias favoráveis ao governo, como notícias sobre a família real, atos oficiais e anúncios. O Correio e a Gazeta eram projetos quase antagônicos. Enquanto um era pequeno e mais informativo, o outro era enorme e bastante doutrinário. Além disso, o primeiro, por não ter concorrentes oficiais, não tinha a preocupação da publicação de Hipólito, de conquistar novos leitores.

Comparar este primeiro momento da imprensa no Brasil com os 278 jornais editados em Londres no mesmo período mostra como a circulação de idéias era restrita no país. A fundação da Impressão Régia foi, no entanto, essencial para que esse quadro começasse a mudar. Desde a abertura dos portos, o contato com estrangeiros aumentava, assim como o número de pessoas atentas às transformações que aconteciam mundo afora. Em 1815, a autorização para a instalação de tipografias na Bahia e em Pernambuco permitiria que essas novidades que chegavam de todo o mundo, sob a forma de livros ou jornais, circulassem com mais facilidade.

Em março de 1821, a censura era suspensa com a expedição do decreto sobre a liberdade da imprensa no Brasil. Enquanto a Constituição que estava sendo formulada pelos portugueses não especificasse as regras sobre o assunto, D. João achava melhor revogar a censura prévia. A imprensa, gozando agora de mais liberdade e do crescente número de jornais, engajava-se em sua primeira grande campanha. A independência era questão de tempo.


* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.

14.3.08

Carioca way of life*

O cotidiano dos cariocas na intimidade do lar ou mesmo no comportamento público chocou não só os portugueses que acompanharam D. João como também os viajantes estrangeiros que por aqui passaram nas primeiras décadas do século XIX. Os costumes à mesa, a maneira de se vestir, o que faziam e como se comportavam nas ruas. Saber os detalhes desse dia-a-dia só é possível graças aos relatos escritos por esses viajantes e às cartas de alguns portugueses para seus familiares na Europa.

As famílias passavam a maior parte do tempo na parte de trás das casas. As altas temperaturas obrigavam todos a abandonar qualquer regra de etiqueta, a começar pelo excesso de roupa a que os portugueses estavam acostumados. As refeições eram feitas em uma tábua colocada sobre cavaletes, usada como mesa. Talheres eram exclusividade masculina, assim como a mesa propriamente dita. A mulher podia colocar o prato sobre os joelhos, mesmo sentada à mesa, mas sem usar talheres. As crianças pegavam com os dedos a comida e se lambuzavam, sujando o rosto e pescoço.

No cardápio dos nobres, sempre uma versão simplificada dos banquetes servidos nos palácios reais, havia entrada, prato principal e sobremesa. Depois da abertura dos portos, cresceu o consumo de artigos importados, como queijos holandeses e ingleses. À medida que descia o nível da pirâmide social, descia também a diversidade de alimentos na mesa. Um pedaço de carne seca era o ingrediente principal da sopa, sempre misturada com feijão e mandioca. A diferença nos hábitos alimentares era ainda maior em relação aos escravos. Dois punhados de farinha seca, umedecidas na boca por suco de banana ou laranja, costumavam ser sua alimentação diária. Mesmo assim, a abundância de frutas e peixe à disposição de todos facilitava para que a dieta ficasse mais rica.

Assim como os hábitos durante as refeições, a moda também contrapunha as posições sociais. A maior parte da população, formada por pessoas pobres, escravos e alforriados, adotava estilo mais adequado ao calor brasileiro, preferindo chinelos, roupas leves, saias curtas, de tecido o mais fino possível. No caso dos escravos, era raríssimo encontrar algum que tivesse sapatos. Para os portugueses que chegaram fugidos, a moda mudou muito pouco nos primeiros anos de estadia no Brasil, já que a maioria conservou durante anos suas roupas trazidas da Europa, como se assim também mantivessem os vínculos com Portugal.

A imitação de modismos estrangeiros para ficar a altura da família real e dos nobres que com ela tinham vindo dava muito trabalho às brasileiras de classe média. A correria às costureiras tinha começado antes mesmo da chegada, quando vestidos de cetins e sedas foram encomendados para a recepção. A decepção foi grande quando viram a princesa Carlota e todas as damas de seu navio desembarcarem usando enormes turbantes, item do vestuário que nem sonhavam em usar. Não sabiam que, na verdade, uma infestação de piolhos tinha obrigado as mulheres a raspar os cabelos e a lançar suas perucas ao mar. As cabeças carecas, untadas com banha de porco e pulverizadas com polvilho, eram escondidas pelos turbantes. Não era última moda em Lisboa, mas passou a ser no Rio de Janeiro.

Porém não eram apenas os costumes entre quatro paredes que destoavam dos europeus e chocavam os viajantes em seus relatos. As pessoas, de todas as classes, sexos e cores tinham o hábito de escarrar em público e às vezes também dentro de casa. Outro traço curioso era o modo de andar na rua. Nas classes médias e altas, a simples ida de uma família a igreja era feita em fila. Na frente, o pai, seguido dos filhos, ordenados do mais moço ao mais velho. Atrás, a mãe com sua criada de quarto, que geralmente era escrava e mulata, já que as negras não eram consideradas aptas para exercer a função. Seguindo o grupo, em linha reta, o número de escravos podia variar. Quem mais negros tivesse a seu encalço, mais abastado pareceria. Por isso, era comum nobres e ricos comerciantes andarem com 12, 15 escravos como sinônimo de status.

A rotina dos homens dependia muito da atividade que exerciam, mas sempre sobrava tempo para almoçar em casa e fazer uma sesta de até três horas. As mulheres, sentadas em roda, passavam o dia juntas e faziam bordados e outros trabalhos manuais. Engana-se quem pensa que só os homens trabalhavam. Nas casas dos que não tinham recursos para ter escravos, tudo dependia delas. As freqüentes festas religiosas, procissões, quermesses e romarias também ocupavam muito do seu tempo, que já era dividido em função de toda a família.

Mas se a intimidade indecente do Rio de Janeiro de D. João VI era capaz de chocar, também conseguia impressionar e seduzir. Os relatos dos viajantes são, com algumas exceções, descrições entusiasmadas sobre os modos peculiares do carioca se relacionar e agir. Há 200 anos, já estava enraizado o carioca way of life.


* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.