30.7.07

O retrato do início do caos

A realidade vivida pelo Rio de Janeiro do início da década de 90 talvez fosse mais chocante do que a atual. Começavam a acontecer os primeiros crimes bárbaros que hoje, infelizmente, já se tornaram parte do nosso cotidiano. A chacina da Candelária, a chacina de Vigário Geral, os primeiros grandes arrastões nas praias da Zona Sul. Ao contrário desta bárbara e também sangrenta primeira década dos anos 2000, quem viveu esta explosão de violência dos anos 90 vinha de tempos um pouco mais tranqüilos. A escalada da violência nos centros urbanos brasileiros, embora iniciada nas décadas anteriores (seria falacioso dizer que os anos 80 foram tempos tranqüilos), só conheceu sua explosão de fato na última década do século. E é um panorama deste Rio de Janeiro do início dos anos 90 que Zuenir Ventura traça em seu Cidade Partida, lançado em 1994, após dez meses de convívio do autor com a dura realidade de uma das maiores favelas da cidade, a de Vigário Geral, poucos meses depois da brutal chacina que a tornaria famosa em todo o mundo.

Mais que um simples panorama, Zuenir na verdade mostra as tentativas desta cidade partida entre a favela e o asfalto de se encontrar, de se tornar uma só, como os bastidores das reuniões para a criação do Viva Rio, ONG criada no mesmo ano em que ocorreu a chacina, com o objetivo de pressionar as autoridades e criar projetos de políticas públicas para atuar em diferentes comunidades pobres do Rio. Tentativas como essa mostram que nasceu ali a consciência de grande parte da sociedade de que a solução para essa divisão social a que o Rio estava submetido era a incorporação da massa de excluídos e não o aprofundamento dessa separação. Zuenir lembra no livro que, após o extermínio de meninos de rua na chacina da Candelária, surgiu em parte da sociedade um perverso raciocínio de apoio a este tipo de ação de caráter quase fascista. A ação da sociedade civil criando entidades como o Viva Rio foi fundamental para que este tipo de raciocínio não crescesse. Atuante na vida cultural e social carioca, Zuenir consegue transitar com grande talento pelos dois mundos. Fala com o então governador Nilo Batista com a mesma desenvoltura que entrevista o chefe do tráfico Flávio Negão. Mostra os bastidores do poder e do empresariado que engatinhava no que hoje se chama responsabilidade social com o mesmo talento que mostra o submundo do crime de Vigário Geral.

Mas o maior mérito de Cidade Partida é, sem dúvida, apresentar um outro lado da favela de Vigário Geral, e, com isso, de todas as favelas brasileiras. Um lado bem distante do que é mostrado na mídia: enquanto as matérias de jornais e da TV apenas descrevem como foram as operações da polícia e a quantidade de baleados e presos num último confronto entre traficantes e policiais, Zuenir vai mais fundo. Apresenta personagens, pessoas de verdade, e mostra a humanidade que há por trás, por exemplo, do chefe do tráfico da favela. Mostra que aquele homem, destituído de sentimentos e valores para nós, é uma pessoa, que possui crenças e uma visão de mundo ao mesmo tempo brutal e infantil. Mostra também que a favela é um tecido social de múltiplas camadas, coisa que a mídia e a sociedade do asfalto esquecem muitas vezes. Neste tecido, há o drama do morador, castigado mesmo que inocente, sofrendo com a opressão policial e a dependência em relação a uma autoridade – o traficante – que, já naquele início de década de 90, se configurava como um Estado paralelo, bem antes do termo entrar na ordem do dia. O irmão do chefe do tráfico Flávio Negão, Djalma, representa bem esse papel, sofrendo a ação na maioria das vezes violenta da polícia mesmo sem ter nenhum envolvimento com o crime. Também há figuras geralmente não associadas com o ambiente da favela, como o sociólogo Caio Ferraz, agitador cultural de Vigário Geral, um intelectual nascido lá e companheiro de infância do então chefe do tráfico, Flávio Negão e de seu irmão, Djalma. Zuenir observa como a complexa realidade social brasileira consegue forjar dentro de uma mesma comunidade três pessoas tão diferentes, com modos de vida e visões de mudo tão distintas, como Djalma, Flávio e Caio. Crescidos juntos, com as mesmas escassas oportunidades, o primeiro é um simples trabalhador oprimido, o segundo encarna o poderoso chefe local, temido por todos, e o terceiro é um sociólogo que orgulha aos seus pares ao levar à frente o projeto da Casa da Paz, apoiado pelo Viva Rio.

A complexidade dessa realidade não é, em nenhum momento, simplificada por Zuenir. A primeira parte do livro é dedicada a mostrar que já os anos dourados possuíam partes nem tão douradas assim, seja na violência amadora de bandidos como Cara de Cavalo e Mineirinho, seja na violência quase institucionalizada com o Esquadrão da Morte do general Amauri Kruel. Entre esta fase, sem dúvida mais tranqüila, e a atual, há uma lacuna no livro. Ao falar dos anos 50 e parte dos 60, Zuenir quis mostrar como é histórica a divisão da cidade. Não contar, no entanto, como a violência se alastrou durante os anos 60, 70 e 80, tira a possibilidade do leitor ver como essa divisão se aprofundou e deu forma a essa sociedade doente que entrou em colapso nos anos 90 e 2000. Ter uma visão do todo permitiria que o leitor pudesse identificar razões e raízes dessa crise. Conhecê-las, todos sabemos, é o primeiro passo para contê-las.

Passados 13 anos do lançamento do livro de Zuenir, temos um Rio de Janeiro completamente diferente mas ao mesmo tempo muito parecido, bem ao estilo paradoxal de ser de que a cidade tanto se orgulha. A violência é ainda mais brutal do que aquela retratada no início dos anos 90 – basta lembrarmos da morte cruel de que o menino João Hélio foi vítima no início deste ano. A solução também parece longe de estar próxima, mesmo que existam políticos aparentemente munidos de boa vontade para fazê-lo. Aumentaram também, na mesma proporção do recrudescimento da violência, as iniciativas da sociedade civil para pôr fim ao título de cidade partida. ONGs, OSCIPs e projetos voltados para o terceiro setor proliferam a cada mês, assim como cresce a preocupação das empresas com os problemas sociais locais e nacionais. As duas cidades vão se aproximando, lentamente, mas vão. A sociedade já compreendeu a importância de fazer esta aproximação. Compreendeu também que só com ela teremos a tão sonhada paz social. No Rio e, não esquecendo a frase de Arnaldo Jabor que abre o livro (“O Rio é o trailer do Brasil”), no Brasil.

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