16.3.08

Fado português*

Acordar na manhã do dia 30 de novembro de 1807 não foi fácil para os portugueses. A rainha, o príncipe regente, a princesa e os principais membros da nobreza e do corpo de funcionários do Estado haviam fugido para o outro lado do Atlântico. As cidades fronteiriças com a Espanha, por onde entraram as tropas francesas, já haviam sido atropeladas. Em Lisboa, enquanto ainda se via no horizonte as velas da frota portuguesa, um leve terremoto dava início aos trágicos acontecimentos que marcariam aquele país.

Durante os 13 anos em que D. João VI ficou no Brasil, o povo português sofreu com a fome e a guerra. À medida que a notícia de que as tropas comandadas pelo general Junot se aproximavam, as cidades eram abandonadas. Agricultores do interior foram os primeiros a deixar suas fazendas e rumar para a capital, onde a grande preocupação era conseguir mantimentos suficientes para todo o tempo de guerra, com certeza longo. Portugal foi invadido por 50 mil inexperientes e mal treinados soldados franceses e espanhóis. Como a invasão foi feita às pressas e sem planejamento, a maioria chegou a Lisboa em frangalhos. Muitos eram milícias mercenárias, ou seja, estrangeiros contratados por Napoleão para guerrear, sem ter nenhum compromisso com os objetivos franceses. Chegaram a Lisboa sem equipamento e condições físicas para começar nenhuma guerra. Isso só reforça os argumentos dos que defendem que D. João poderia ter ficado e resistido com grandes chances de vitória. Jean Andoche Junot, melhor no combate que na estratégia, também não estava no rol dos grandes generais de Napoleão. Com metade dos cavalos mortos durante o descolamento entre França e Portugal, só contava com seis canhões e pouquíssimas armas e munição. Muitos deles estavam descalços e com as roupas rasgadas, sem nem mesmo conseguir ficar de pé.

Existem três possíveis explicações para um povo acostumado a se defender de invasões muito mais bem estruturadas ter fracassado. A primeira tem relação com o decreto deixado por D. João, orientando os portugueses a não oferecer resistência aos invasores, e as outras duas são psicológicas. A simples menção do nome de Napoleão naqueles dias assustava até os mais bravos combatentes, impressionados com as sucessivas vitórias que o imperador acumulava. Por último, há que se considerar que o povo português estava extremamente enfraquecido moralmente. Por que lutar por um reino em que nem mesmo a monarquia acreditava? O sentimento de traição e de rejeição causado pela fuga afetou durante anos a auto-estima nacional.

Facilmente ocupado, o país enfrentou duras sanções impostas por Napoleão, atingido em sua vaidade por ter sido enganado pela família real. Além do pagamento de uma taxa de 100 milhões de francos aos cofres franceses, algo hoje em torno de 1,2 bilhão de reais, Portugal teve parte de seu exército incorporada às tropas francesas e enviada para lutar do lado francês na Alemanha. Com a ocupação, a nobreza que permaneceu em Lisboa se mostrou subserviente aos novos líderes, enquanto o povo resistiu ao invasor e organizou vários motins por todo o país. Com o contra-ataque da Inglaterra, os franceses se retiraram em agosto deixando para os ingleses todos os bens roubados dos portugueses. Com Portugal sob controle britânico, começava na península ibérica uma guerra encenada por França e Inglaterra como protagonistas e Espanha e Portugal como coadjuvantes. Até 1814, houve mais duas tentativas de invasão francesa, evitadas pela aliança entre Inglaterra, Portugal e, mais tarde, Espanha.

Entre 1807 e 1814, quando a chamada Guerra Peninsular terminou, 500 mil portugueses morreram. O conflito foi um dos mais sangrentos na Península Ibérica e só teve seu fim graças à resistência do povo português e espanhol, que permitiu a ação da Inglaterra contra o bloqueio francês em uma vitoriosa campanha que terminaria com a queda de Napoleão.

Com a mudança da família real, além de depender economicamente do Brasil, agora os portugueses também dependiam das decisões políticas vindas do Rio de Janeiro. A insatisfação era geral, menos por causa da dureza enfrentada nos anos de guerra e mais pelos benefícios que ingleses e brasileiros tiveram com a fuga. Portugal praticamente não vendia mais para o Brasil, cujo mercado foi dominado pela concorrência desleal da Inglaterra. Em vez de dar sinais de que retornaria, D. João percebia cada vez mais como era interessante permanecer no Brasil, por seus recursos, tamanho e localização. Agora, além de ter sido castigado sete anos por uma guerra, Portugal corria o risco de perder definitivamente a maior de suas colônias e sua principal fonte de recursos. E, quiçá, sua família real.

* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.

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