16.3.08

A maior biblioteca das Américas*

A vida cultural encontrada pela monarquia e pela nobreza de Portugal quando chegaram ao Brasil era muito diferente da que estavam acostumados. O acesso a livros era mínimo, dificultado ao máximo pela Coroa portuguesa, a quem não interessava que novas idéias chegassem ao país e ameaçassem o regime colonial. Esse quadro mudou com a chegada da biblioteca da família real, dois anos depois que D. João e companhia desembarcaram no Brasil. Seu acervo, um dos maiores do mundo, colocava o Rio de Janeiro como sede de uma biblioteca com mais de quinhentos anos de história.

Desde o século XIV, existem registros de que os reis portugueses tinham boas bibliotecas. A tradição foi seguida por sucessivas gerações, ao ponto de, na Era dos Descobrimentos, a fama da Real Biblioteca já ter se espalhado por todo o continente europeu. À medida que era ampliada, a coleção se tornava tão importante quanto o ouro recebido do Brasil. Seu acervo continha coleções de manuscritos históricos, materiais editados nos primórdios da imprensa, obras de arte e mapas. Ter documentos daquela importância simbolizava prestígio e erudição para o Estado português.

Quando o terremoto que arruinou a capital portuguesa em 1755 matou 30 mil pessoas e destruiu quase todos seus prédios, o Palácio da Ribeira, que abrigava a biblioteca, ficou em ruínas e quase toda a Livraria de El Rey, como era conhecida no reino, sofreu um incêndio e foi reduzida a cinzas. Organizá-la novamente foi uma das metas políticas do marquês de Pombal, poderoso ministro de D. José I, rei que governou Portugal até 1777. Pombal investiu e trabalhou para fazer daquela nova biblioteca um símbolo de idéias, projetos e representações do universo de uma elite intelectual e de uma monarquia culta e esclarecida. Mas as mudanças na política nacional foram mais rápidas que os planos do ministro. Após a morte do rei, Pombal foi afastado do poder pela sucessora da dinastia dos Bragança, D. Maria I. A nova rainha trouxe a religião novamente para o centro dos assuntos nacionais e tudo que lembrasse Pombal e suas idéias iluministas, de uma Igreja submissa ao Estado, ficaria em segundo plano.

Em 1807, com a correria da fuga para o Brasil, os 317 caixotes com todo o conteúdo da Real Biblioteca e vários documentos lusitanos, que tinham sido embalados às pressas, ficaram esquecidos no cais de Belém. No Rio de Janeiro, foi o próprio príncipe regente que deu falta do acervo e ordenou a vinda de seus livros e documentos. No acervo existiam livros como Príncipe Perfeito, que reunia emblemas e sonetos com recomendações para os monarcas portugueses de como governar.

Se em 1808 a viagem da família real já foi um acontecimento inusitado, o transporte de uma das maiores bibliotecas do mundo, dois anos depois, não seria diferente. Portugal ainda estava em guerra com a França e o embarque das obras teve que ser discreto e feito em três remessas. A primeira leva foi enviada em 1810, com o acervo do Infantado, que reunia livros e documentos exclusivos para príncipes, e a coleção de manuscritos da Coroa. Parte do que ficou em Portugal, provavelmente muito bem escondido para resistir aos saques ocorridos durante a guerra, só chegaria ao Brasil em 1811 trazido pelo arquivista real Luís Joaquim dos Santos Marrocos. A terceira e última parte da Real Biblioteca demoraria mais alguns meses até ser enviado, no final do mesmo ano.

Trazer para o Brasil a biblioteca significava trazer também uma verdadeira política de Estado baseada na idéia de que, naquelas obras, estavam depositados conhecimentos universais. Aos poucos, o Estado português era transferido para o Brasil. Instalada no andar superior do Hospital da Ordem do Carmo, nos arredores do Paço, a biblioteca inicialmente ficou restrita a estudiosos autorizados por D. João, que mandou construir um passadiço entre a Capela Real e o prédio do hospital para facilitar o acesso da família. Quando foi aberta e colocada à disposição do público que se associasse, o Rio de Janeiro se tornou a sede da maior biblioteca de todas as Américas, que reunia na época mais de 60 mil livros.

Com a independência brasileira e o retorno da família para Portugal, começava uma grande discussão para decidir que cidade ficaria com a biblioteca. Lisboa, a capital original em que a Real Biblioteca foi criada ou o Rio de Janeiro, onde fazia parte de uma estratégia de fortalecimento científico e cultural de uma nova nação? A batalha foi vencida pelo Rio, mas com um alto custo. Com a decisão dos dois lados de que Portugal deveria ser ressarcido pela independência brasileira, os cofres brasileiros deveriam pagar para ter o direito de ficar com a biblioteca. O valor atribuído foi tão alto que só a biblioteca representava 12,5% do total da conta apresentada pelos portugueses. Assim, ao pagar por sua independência, o Rio de Janeiro continuava a sediar uma das maiores coleções de livros do mundo e consolidava sua posição de capital cultural brasileira. A Real Biblioteca ainda formaria muitas gerações de governantes e intelectuais. A diferença é que, agora, eles seriam brasileiros.

* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.

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