O cotidiano dos cariocas na intimidade do lar ou mesmo no comportamento público chocou não só os portugueses que acompanharam D. João como também os viajantes estrangeiros que por aqui passaram nas primeiras décadas do século XIX. Os costumes à mesa, a maneira de se vestir, o que faziam e como se comportavam nas ruas. Saber os detalhes desse dia-a-dia só é possível graças aos relatos escritos por esses viajantes e às cartas de alguns portugueses para seus familiares na Europa.
As famílias passavam a maior parte do tempo na parte de trás das casas. As altas temperaturas obrigavam todos a abandonar qualquer regra de etiqueta, a começar pelo excesso de roupa a que os portugueses estavam acostumados. As refeições eram feitas em uma tábua colocada sobre cavaletes, usada como mesa. Talheres eram exclusividade masculina, assim como a mesa propriamente dita. A mulher podia colocar o prato sobre os joelhos, mesmo sentada à mesa, mas sem usar talheres. As crianças pegavam com os dedos a comida e se lambuzavam, sujando o rosto e pescoço.
No cardápio dos nobres, sempre uma versão simplificada dos banquetes servidos nos palácios reais, havia entrada, prato principal e sobremesa. Depois da abertura dos portos, cresceu o consumo de artigos importados, como queijos holandeses e ingleses. À medida que descia o nível da pirâmide social, descia também a diversidade de alimentos na mesa. Um pedaço de carne seca era o ingrediente principal da sopa, sempre misturada com feijão e mandioca. A diferença nos hábitos alimentares era ainda maior em relação aos escravos. Dois punhados de farinha seca, umedecidas na boca por suco de banana ou laranja, costumavam ser sua alimentação diária. Mesmo assim, a abundância de frutas e peixe à disposição de todos facilitava para que a dieta ficasse mais rica.
Assim como os hábitos durante as refeições, a moda também contrapunha as posições sociais. A maior parte da população, formada por pessoas pobres, escravos e alforriados, adotava estilo mais adequado ao calor brasileiro, preferindo chinelos, roupas leves, saias curtas, de tecido o mais fino possível. No caso dos escravos, era raríssimo encontrar algum que tivesse sapatos. Para os portugueses que chegaram fugidos, a moda mudou muito pouco nos primeiros anos de estadia no Brasil, já que a maioria conservou durante anos suas roupas trazidas da Europa, como se assim também mantivessem os vínculos com Portugal.
A imitação de modismos estrangeiros para ficar a altura da família real e dos nobres que com ela tinham vindo dava muito trabalho às brasileiras de classe média. A correria às costureiras tinha começado antes mesmo da chegada, quando vestidos de cetins e sedas foram encomendados para a recepção. A decepção foi grande quando viram a princesa Carlota e todas as damas de seu navio desembarcarem usando enormes turbantes, item do vestuário que nem sonhavam em usar. Não sabiam que, na verdade, uma infestação de piolhos tinha obrigado as mulheres a raspar os cabelos e a lançar suas perucas ao mar. As cabeças carecas, untadas com banha de porco e pulverizadas com polvilho, eram escondidas pelos turbantes. Não era última moda em Lisboa, mas passou a ser no Rio de Janeiro.
Porém não eram apenas os costumes entre quatro paredes que destoavam dos europeus e chocavam os viajantes em seus relatos. As pessoas, de todas as classes, sexos e cores tinham o hábito de escarrar em público e às vezes também dentro de casa. Outro traço curioso era o modo de andar na rua. Nas classes médias e altas, a simples ida de uma família a igreja era feita em fila. Na frente, o pai, seguido dos filhos, ordenados do mais moço ao mais velho. Atrás, a mãe com sua criada de quarto, que geralmente era escrava e mulata, já que as negras não eram consideradas aptas para exercer a função. Seguindo o grupo, em linha reta, o número de escravos podia variar. Quem mais negros tivesse a seu encalço, mais abastado pareceria. Por isso, era comum nobres e ricos comerciantes andarem com 12, 15 escravos como sinônimo de status.
A rotina dos homens dependia muito da atividade que exerciam, mas sempre sobrava tempo para almoçar em casa e fazer uma sesta de até três horas. As mulheres, sentadas em roda, passavam o dia juntas e faziam bordados e outros trabalhos manuais. Engana-se quem pensa que só os homens trabalhavam. Nas casas dos que não tinham recursos para ter escravos, tudo dependia delas. As freqüentes festas religiosas, procissões, quermesses e romarias também ocupavam muito do seu tempo, que já era dividido em função de toda a família.
Mas se a intimidade indecente do Rio de Janeiro de D. João VI era capaz de chocar, também conseguia impressionar e seduzir. Os relatos dos viajantes são, com algumas exceções, descrições entusiasmadas sobre os modos peculiares do carioca se relacionar e agir. Há 200 anos, já estava enraizado o carioca way of life.
* Obs.: Este é um dos capítulos escritos por mim para o meu primeiro livro, sobre os 13 anos de estadia da família real no Brasil. Infelizmente, esse e alguns outros capítulos ficaram de fora do livro. Publicarei todos aqui, aos poucos, para que o trabalho fique completo. O livro chama-se Ponha-se na rua: fatos e curiosidades do Rio de Janeiro de D. João VI e é essencialmente um livro de fotografias misturadas com pinturas da época, de artistas como Debret e Rugendas. O idealizador do projeto é o fotógrafo Ricardo Siqueira, que contratou a mim e ao também jornalista Adriano Belisário para escrever os 27 capítulos do livro.
14.3.08
Carioca way of life*
Marcadores:
História,
Ponha-se na rua
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Postar um comentário