16.8.08

Caymmi e a preguiça sensível

Quem não gosta de samba bom sujeito não é: é ruim da cabeça, ou doente do pé. Transformar em frase o verso composto por Dorival Caymmi, que morreu hoje, aos 94 anos, em Copacabana, um dos cenários que imortalizou em suas canções, seria uma heresia menor que tentar explicar o tanto de Brasil contido nos versos de Caymmi? Talvez, e prefiro abdicar do desafio e não correr o risco, deixando-o para antropólogos, sociólogos e outros ólogos mais treinados.

Não posso deixar, no entanto, de falar sobre a faceta mais irresistível de Caymmi, tão baiana, tão brasileira, imortalizada no Vadinho de Jorge Amado. Um dos mais deliciosos pecados, a preguiça foi talvez sua maior marca. O multimídia Miele, que dirigiu diversos shows da família Caymmi, conta em seu livro de memórias uma história que pode não ser verdadeira, mas resume bem a intensidade de sua baianice.

Um de seus maiores sucessos, Maracangalha, feito para seu melhor disco, Eu vou para Maracangalha (1957), teria sido composto ao longo de anos, verso por verso. Primeiro, tascou no papel o Eu vou pra Maracangalha, eu vou e só alguns anos depois, depois de pensar e repensar em como seria a continuação, lançou: Eu vou de ‘liforme branco, eu vou. Mais um tempo se passa: Eu vou de chapéu de palha, eu vou. E, finalmente, meses depois, conclui a estrofe de quatro versos convidando uma de suas musas para o passeio: Eu vou convidar Anália, eu vou. Daí até conseguir terminar a canção de doze versos, seriam anos e anos.

Sua preguiça, criativa, sensível, doce, regionalista e ao mesmo tempo universal, contemplativa mas extremamente imagética, o fez compor canções simples e profundas, colocando-o na mesma linhagem dos poetas populares com que a nossa música ocasionalmente presenteia nossas Letras (ou seria o inverso?). Sem a sofisticação e ousadia de outros gênios da MPB, como Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil ou Vinícius de Moraes, Caymmi esteve mais próximo de Cartola, ao mostrar o talento de criar o luxo a partir da simplicidade.

Suas músicas louvam o aproveitar a vida, o fazer nada, a integração plena do homem com as coisas boas e cotidianas tão disperdiçadas. Sábado em Copacabana, Samba da minha terra, Eu não tenho onde morar são apenas três exemplos de como o Caymmi way of life se fez fundamental para que outros tantos artistas e movimentos surgissem a partir dele. Por isso tamanha reverência que todos fazem a ele, baianos ou não. Quem acompanhou o noticiário hoje e puder ler o jornal amanhã constatará isso. Dorival é o pai de todos os outros. Dele, todos bebem; a ele, todos se curvam.

O jornalista e escritor Arthur Dapieve disse certa vez, analisando a música Que país é este?, composta por Renato Russo, que a maior reverência que um artista pode receber é ver sua criação enraizada de tal forma na cultura popular que a autoria fosse diluída ou até considerada desconhecida. Como a música de Renato, aconteceu o mesmo com várias composições de Dorival. Quantos sabem quem é o compositor dos versos Só louco/ Amou como eu amei/ Só louco/ Quis o bem que eu quis/ Ah, insensato coração/ Porque me fizeste sofrer/ Porque de amor pra entender/ É preciso amar, porque/ Só louco, louco...? E quem sabia que é dele o Samba da minha terra/ Deixa a gente mole/ Quando se dança/ Todo o mundo bole? Por isso, achei tão bonita a matéria feita hoje pela filial na Bahia da Rede Globo para homenagear mais um de seus filhos queridos que se vai. Músicas compostas há 50, 40, 30 anos cantada por gente de todas as idades. Pescadores, vendedoras de acarajé, gente simples que, como disse Dapieve, conhece mais a música que seu autor.


Um comentário:

Anônimo disse...

Quem não gosta de Caymmi bom sujeito não é.