22.9.08

Ensaio sobre a Cegueira - linhas tardias

Graças ao novo filme de Fernando Meirelles, Ensaio sobre a Cegueira (Blindness), novos leitores estão se incorporando à legião de fãs do escritor português e ganhador do Nobel José Saramago, autor do livro homônimo que inspirou o filme.

Constatei isso hoje em uma livraria que freqüento com certa regularidade, cujos donos conheço. Eles me confirmaram o que já desconfiava: a nova edição do livro, um dos que mais prestígio deu à bem-sucedida carreira de Saramago, está vendendo bastante. Esse, aliás, é o maior mérito da obra de Meirelles, cuja adaptação foi muitíssimo bem realizada.

Analisado isoladamente, acho o filme bom, mas visto como adaptação do maravilhoso livro de Saramago, o filme é ótimo. Quem leu sabe do que falo. Lembro até hoje de uma conversa que tive com um amigo, em novembro de 2006, quando divulguei aqui no Textos etc o início do trabalho de adaptação. Naquela ocasião, comentamos sobre como nos parecia uma tarefa difícil, tanto do ponto de vista do roteiro quanto da direção de Fernando Meirelles, apesar de concordarmos sobre o talento do diretor para tanto.

A criação do roteiro parecia difícil devido à forma particular como o livro é escrito, que resulta numa estrutura narrativa muito diferente, com raros e longos parágrafos, que encadeiam os acontecimentos de forma um pouco filosófica, distante, por isso, do que se entende por linguagem de cinema. Além disso, existem características na história que teoricamente a afastariam do tipo de cinema que Fernando gosta de fazer, que ele mesmo batizou de entretenimento inteligente. Os personagens, por exemplo, não têm nome, sendo chamados pelos papéis que representam. O médico da história é sempre 'o médico', a mulher do médico é sempre 'a mulher do médico', o menino é sempre 'o menino', e por aí em diante.


Elenco de estrelas no novo filme do diretor de Cidade de Deus

Já para a direção, a dificuldade estava em outros pontos, mais relacionados com a temática da cegueira. Como representar a estranha epidemia da cegueira branca que vitima os moradores do imaginário país, sem seduzir-se pela facilidade da tela branca? Como falar sobre cegos e os temas morais que estão presentes na obra de Saramago sem soar entendiante ou piegas? Meirelles encontrou como.

Além de contar com a fotografia de César Charlone, seu tradicional parceiro, o diretor usou em Ensaio a mesma linguagem pela qual foi criticado em Cidade de Deus, com cenas curtas e rápidas que não abrem muitas portas para a reflexão do espectador, pelo menos não no momento em que está assistindo ao filme. A montagem nervosa tenta mostrar a tensão por que passam os personagens e uma série de procedimentos óticos relativos a foco, reflexos duplicadores e formas que replicam a órbita ocular tentam colocar o espectador no mesmo barco dos cegos do filme. Dentro da estratégia do tal entretenimento inteligente a que Meirelles se propõe, a tática é perfeita, pois consegue um filme interessante, ágil, e que permite questionamentos posteriores sobre a metáfora da cegueira proposta por Saramago.

Apesar de ter mantido no nome do filme a palavra ensaio, que remete à idéia de papel, a algo escrito, Meirelles não filmou mais um exemplo de adaptação fracassada, que fica presa à literatura e não se assume como cinema. Resta saber se os que não leram o livro conseguiram, apenas com o filme, perceber a intenção metafórica da história, de mostrar que já vivemos num mundo de cegos, esgotados não só visualmente, mas também como seres humanos incapazes de sentir, e que precisaríamos de uma epidemia como aquela para voltarmos a enxergar de verdade, para resgatarmos o humanismo perdido.

Você, por exemplo, conseguiu ver?

2 comentários:

Enara Castro disse...

Oi Guilherme,depois de ler o seu seu blog e seu perfil no Orkut,concluí que sou a sua mais nova amiga de infância,pois dizem que coincidências são apenas álibis dos deuses,right? Improvável,voce poderia pensar... tão improvável quanto um carioca da Polinésia Francesa ...
Sobre o mestre Saramago,considero este "Ensaio sobre a Cegueira", uma de seus livros mais instigantes,refletindo de forma magistral as nossas mazelas tão humanas,como indivíduo e como grupo,e o caos para o qual nossa sociedade caminha a passos largos,se insistirmos neste caminho sem volta do individua- lismo selvagem.
Sensível e criativo o roteiro de Fernando Meirelles,um filme com gosto de teatro...A fotografia é um elemento tão forte e tão presente ,que parece mais um dos atores .Aliás,para mim as performances do grupo não deixaram a desejar em momento algum.Acho que seria muito interessante um debate amplo sobre o filme (implico com a palavra multidisciplinar).Se vc souber de algum evento,por favor divulgue no blog ou avise (enaracastro@gmail.com).
Obrigada pelo seu blog,que realmente nos acrescenta algo.
Enara,

enaracastro@gmail.com

Guilherme Amado disse...

Obrigado pelos elogios, Enara. Abraço!