17.1.09

Taxi driver

Um amigo (não daqueles amiguinhos que levam o nome por uma dessas convenções bobocas da vida, mas daqueles que levam por merecimento - e levarão existências afora) acaba de chegar dos Estados Unidos, onde foi passar Natal e Réveillon. Mal ele pôs os pés fora do avião, fiz uma encomenda: que tal contar para os milhões de leitores do Textos etc suas impressões da América em crise? Que país você encontrou, com seu olhar de cineasta que sabe como contar uma boa história? Depressivo? Eufórico? Blazé? Ao ouvir a resposta positiva ao convite, relaxei, pois sabia que em breve meus leitores receberiam um belo texto. Com vocês, o resultado, assinado por Luís Gustavo Ferraz, cineasta, mineiro e meu amigo.

Taxi driver

por Luís Gustavo Ferraz

Em julho de 2007, eu estava de férias em Cascais, balneário vizinho a Lisboa, Portugal. Uma das melhores coisas de lá era o esquema de empréstimo de bicicletas pela secretaria de turismo. Foi assim, pedalando, que conheci as praias da cidadezinha e adjacências. Um dia, quando parei para comer um sanduíche numa dessas praias, um sujeito se aproximou e me pediu a bicicleta emprestada, para fazer uma entrega de não-lembro-o-quê. Ele disse que voltaria em 10 minutos.

Desconfiado como bom mineiro, em condições normais eu teria dito não, constrangido. Mas após seis meses de intercâmbio na Europa, disse sim. É que ao longo desse tempo fiquei muito impressionado com a solidariedade, a hospitalidade ou o que chamo de “espírito de albergue” dos jovens europeus. Conheci gente de quase todos os países da região, em parte graças às viagens que fiz e em parte graças aos europeus em intercâmbio na Espanha, onde morei. O programa de intercâmbio entre as universidades de lá, o “Erasmus”, é muito intenso.

Tudo isso, porém, é um preâmbulo para falar de outra viagem, a minha segunda saída do Brasil, quase um mês atrás. A minha irmã, Paula, fez 15 anos, ganhou de presente uma viagem aos Estados Unidos e eu, o irmão sortudo, ganhei de presente a missão de acompanhar, proteger, traduzir e agasalhar a caçula da família no exterior. Enquanto a viagem à Europa fora um intercâmbio acadêmico, esta última foi simplesmente um passeio; mas isso não evitou que eu fizesse inúmeras comparações, algumas exageradas e outras com alguma razão, entre esses dois pedaços do planeta, afinal os dois únicos que conheço fora do Brasil.

Além da empolgação natural de quem pretende se divertir à beça no país mais rico do mundo, entre musicais da Broadway e montanhas-russas de parques temáticos, parti com a expectativa extra de conhecer a “América” num momento diferente, em que a tradicional pujança econômica dá lugar à maior crise desde 1929. Mas o fato é que cheguei a Nova York, porta de entrada por excelência daquele país, e não encontrei nenhum sinal palpável da crise, além das manchetes dos jornais e da TV.

Com a iminência do Natal, as ruas estavam apinhadas de gente, comprando, comprando, comprando. Papai Noel não parecia economizar um centavo, apesar da crise que se instalara definitivamente em outubro passado. O que havia era uma atmosfera contagiante, todos com seus pacotes e apressados para adquirir o próximo, tudo coberto de neve e iluminado com muito neón. É claro que vários dos felizardos eram turistas estrangeiros, mas a maioria eram nova-iorquinos ou turistas americanos – você percebe pelo sotaque e pelas feições.

Apesar da imensa concentração de pessoas, o contato com o outro era bem menor do que eu havia visto e vivido em Madri e na Europa de forma geral. Difícil ver gente se conhecendo num bar ou restaurante, quando a garçonete quer que você saia logo para que entre o próximo cliente. Tive a impressão de que esse raciocínio fordista perpassa todas as situações sociais e de que todas as situações sociais se desdobram em situações de consumo – o que atingiria o ápice exatamente no Natal, quando a troca de dinheiro por produtos se intensifica sobre os balcões. Digo que é uma “impressão” porque é bem possível que essas comparações acabem em generalizações injustas, que não aprendi a evitar, apesar das aulas de antropologia. A Europa, muito embora tenha desenvolvido um elogiável senso de comunidade, ainda padece, paradoxalmente, de muito nacionalismo e xenofobia.

Só consigo compreender e explicar de uma forma a grande festa do consumo que vi, em meio a uma crise tão aguda: os americanos são mestres na produção de espetáculos. Enquanto a CNN confirmava as expectativas, dizendo que aquele seria o pior Natal para o comércio em muito tempo, nada disso transparecia no clima de feira da Quinta Avenida. Há uma TV de LCD em cada cômodo e um SUV na garagem de muitos lares americanos, mas, de repente, não há dinheiro para pagar o teto que abriga tudo isso. Assim estourou a bolha das hipotecas, primeiro grande sinal da crise que estava por vir. O espetáculo das aparências escondia (e ainda esconde, acredito) muita coisa.

Na era do virtual, os bancos emprestam grana que não existe para gente que não pode pagar. Os cidadãos são irresponsáveis, sim, mas a questão é muito mais profunda: existe toda uma lógica de consumo que os estimula a gastar. Tradicionalmente, os Estados Unidos são um dos países que menos poupam em todo o mundo, e não é à toa que nestes tempos difíceis haja uma campanha publicitária incentivando o povo americano a economizar. Foi só no primeiro dia em Orlando, início da última parte da viagem, que conheci alguém que parecia realmente disposto a atender ao chamado dessa publicidade bastante incomum.

O sujeito se chamava Albert e era engenheiro, mas, desde novembro, dirigia todas as noites o táxi que então nos levava de um dos parques da Disney de volta para o hotel. O carro era da cooperativa do irmão, e com o dinheiro extra ganho ao volante ele estava se precavendo contra a crise. Lamentou sobre os crescentes índices de desemprego e o fiasco generalizado da era Bush. Sobre Obama, falou esperançoso: “Ele é muito jovem e pode não ter muita experiência, mas nós precisamos de mudança”. E, com precisão econométrica, completou: “Dentro de seis meses a um ano, tudo terá voltado ao normal”.

200 voltas de montanha-russa depois, a crise se fez esquecer. O espetáculo venceu. Ele é o que me encanta de verdade na cultura americana. Veio 2009, um réveillon em plena Disney, repleto dos melhores votos e perspectivas. Eu provavelmente só teria pensado na crise de novo quando o amigo e blogueiro Guilherme me pediu que escrevesse este texto – caso não tivesse acontecido o seguinte: no penúltimo dia da viagem, um homem de paletó e calça brancos se aproximou de mim num ponto de ônibus. Disse que precisava de dinheiro para tomar um táxi e chegar a tempo ao funeral da filha, por isso tentou me vender o seu relógio de pulso, um Omega que parecia legítimo, por meros 20 dólares.

Dei os 20 dólares para ele e não aceitei o relógio. Posso até ter sido vítima de um golpe, mas sinceramente acho que não fui. Nem é essa a questão, para mim. A questão é a necessidade de criar uma relação de compra e venda numa situação como aquela. Sem fé na solidariedade, o homem se agarrou naquilo que, mesmo em tempos de crise, rege uma parcela grande demais, a meu ver, das relações sociais na América, e que talvez esteja na origem mais profunda da própria crise: a troca material em excesso.

Em Cascais, quando um estranho também havia me abordado com uma história que poderia ser mentira, eu também havia lhe dado crédito, exatamente como agora. Naquela ocasião, o sujeito voltou com a bicicleta em perfeito estado dentro dos 10 minutos prometidos, tempo que eu havia levado para comer o meu sanduíche de queijo e atum numa praia de Portugal. Um ano e meio depois, na Flórida, tirei outro dos meus sanduíches de viagem da mochila. À primeira mordida, uma história puxou a outra, uma viagem puxou a outra e, enquanto o homem tomava o táxi com os meus 20 dólares, voltei a fazer comparações.

Um comentário:

Bel disse...

O meu comentário é simplesmente para dizer,Luis,o quanto ADOREI o seu texto.

Lúcido,sério e sensível como só o olhar de um cineasta (como você) para ir do sentimento a valores perpassando todo o contexto político-econômico-social.

São pessoas tipo você,extremamente jovens, que me fazem aos 57 anos de idade acreditar realmente em um mundo melhor.

Um beijo grande e carinhoso,
Bel