18.9.09

De Stratford-upon-Avon para o Morumbi*

Nunca antes na história deste país, Stratford-upon-Avon e o Morumbi estiveram tão próximos. A aproximação entre a cidade natal de Shakespeare e o bairro paulistano onde mora o dramaturgo e autor de novelas Walcyr Carrasco teve seu ponto alto nesta semana, com o lançamento na Bienal da nova tradução, feita por Walcyr, de uma das mais conhecidas comédias do Bardo, a divertida “A megera domada”. Voltado para o público infanto-juvenil, o título, da Editora FTD, tem caprichadas ilustrações de Anna Anjos e mantém na íntegra a trama original, preservando a coloquialidade do texto shakespeariano, menos presente, na opinião do escritor, em traduções anteriores. A trama gira em torno da guerra dos sexos, personificada pelas divertidas brigas da irascível Catarina, a megera, com o nobre falido Petrúquio. O ponto de partida é a exigência do pai da moça de que, para ceder a mão de sua filha mais jovem, a doce Bianca, a algum pretendente, tem que casar primeiro sua filha mais velha, Catarina. Ao saber da procura do rico pai por um noivo para a megera, Petrúquio se candidata ao posto, recusado por diversos candidatos, devido ao temperamento da megera. Apaixonado pela obra, que já lhe serviu de inspiração para escrever a novela “O cravo e a rosa”, em 1997, Walcyr (acima, durante lançamento na Bienal/foto de divulgação) conversou com o blog sobre o lançamento e a importância da tradução para sua formação como escritor.


Você tem ideia de quantas vezes já leu “A megera domada”?
Ih, já perdi a conta há muito tempo. Na época da novela, tinha que ler muito, até porque adaptei cenas inteiras da Catarina e do Petrúquio. O livro é decorrência do meu amor pela peça. O que eu tirei foram algumas referências históricas difíceis de serem entendidas num primeiro momento.

Como o quê?
Em um trecho, por exemplo, a tradução literal ficaria em algo como “Catarina deveria ir para a carroça”. Quando fui estudar, vi que, naquela época, a mulher que ia ser castigada com chicotadas era colocada numa carroça para ser levada ao lugar do castigo. Traduzi simplesmente que Catarina deveria ser castigada. Também tirei duas piadas um pouco mais pesadas. Numa das últimas cenas, a Catarina conversa com a viúva (personagem da peça) e seu marido. É dito algo como: “Cuidado que a Catarina vai ficar por cima da viúva”. O marido, então, responde: “Quem tinha de ficar por cima dela sou eu e hoje à noite”. Isso é um pouco pesado para o público infanto-juvenil.

Se fosse para o público adulto, você faria a tradução muito diferente?
Não, pelo menos na linguagem. Tirando esse corte de piada mais pesada, ficaria quase tudo igual. O que foi pensado especialmente para esse livro foi o esforço, que até pedi que ficasse sugerido nas ilustrações, para que a criança ou o jovem não se prendam a nenhuma dificuldade para montar o texto. Ele pode ser montado em casa ou na sala de aula. Em teatro, o que vale é estimular a imaginação. E é um texto que dá para o jovem entender perfeitamente e montar de diferentes maneiras. Não precisa enlouquecer. Para o público adulto, aí sim, seria uma montagem mais densa, com um palco rodando...

Você gosta de lidar com arquétipos, não é? Uma de suas últimas novelas, “Sete pecados”, se inspirou no Dante de “A divina comédia”, não foi?
Acho que todo autor se inspira em arquétipos, mas a diferença é que eu assumo. Eles fazem parte da cultura universal, são histórias clássicas. A Catarina e o Petrúquio são um casal assim. O autor cria, mas está sempre conversando com a cultura clássica. Você estará sempre conversando com os contos de fada, por exemplo. As estruturas dos personagens da Catarina e do Petrúquio são fantásticas. Em “O cravo e a rosa”, a adaptação ficou ótima. Ele é o herói que chega e diz que casa com ela por interesse. Joga limpo, fala que quer mesmo é casar bem. E ela também joga limpo em relação aos interesses dela. Só depois se tornam um casal.

Traduzir ajuda você a escrever melhor?
Sem dúvida. Com a tradução, aprendo uma barbaridade. Ao ter que traduzir Shakespeare, é como se tivesse que entender a forma como ele pensou. É como se tivesse que pensar do mesmo jeito que ele pensaria

* Texto publicado originalmente no jornal O Globo.

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