31.5.08

O realismo covarde de Duas Caras

Algumas linhas sobre Duas Caras, novela global que inova e termina hoje, rompendo tradição da emissora de reprisar os últimos capítulos de suas produções aos sábados. É bem verdade que com a internet a reprise perde seu sentido, já que o último capítulo está disponível - não a todos, vale lembrar - para sempre nos Youtubes da vida. E por falar em ruptura, Duas Caras foi anunciada e vendida incessantemente pelo autor Aguinaldo Silva em seu blog como a quebra do paradigma folhetinesco na televisão brasileira. De enredo melodramático não muito diferente dos romances hiper açucarados do século XIX, a novela teria ganhado tintas realistas nunca antes vistas.

Bobagem pura. Realismo na televisão brasileira nunca existiu de verdade. Houve, sim, o que não há mais, realidade, nas décadas de 1970 e 1980, principalmente, como um grito de um país sufocado pela ditadura. Roque Santeiro, as duas versões - a segunda escrita por Aguinaldo a partir do argumento de Dias Gomes -, Malu Mulher, Irmãos Coragem, O Salvador da Pátria, Pecado Capital, Vale Tudo, O Bem-Amado, Roda de Fogo, todas essas trouxeram realidade brasileira para a TV. Na década de 1990, com Rei do Gado, Pátria Minha, Anos Rebeldes, vemos também a realidade. Mas nunca realismo, pra valer, como no cinema.

Já existiu um Cidade de Deus na TV? Cidade dos Homens não chegou nem perto das cenas de agressividade de Zé Pequeno e sua turma. Algo próximo às cenas de tortura que vemos em Batismo de Sangue, que deixam nossos estômagos embrulhados e nossas mãos suando? Não. A Batalha da Portelinha assemelha-se a Tropa de Elite?

O que Aguinaldo Silva chama de quebra de paradigma foi mostrar o racismo na televisão brasileira. Ora, quem assistiu Assalto ao Trem Pagador, clássico do cinema brasileiro, um suspense maravilhosamente filmado por Roberto Faria e protagonizado por um timaço de atores - Reginaldo Faria entre eles, sabe o que é uma cena de racismo verdadeira, realista. Não gosto do estilo de Aguinaldo e posso falar isso como um bom conhecedor de novelas, com memória enciclopédica de deixar Angélica de queixo caído naquela porcaria de programa que ela tem à tarde. Diálogos bobos, muito mais inverossímeis que a média das novelas, e extremamente maniqueístas.

As cenas da manifestação estudantil na surrealista universidade de Duas Caras são rizíveis. Não existe nem nunca existiu aquele tipo de movimento estudantil no Brasil. Nada contra a liberdade de criação de Aguinaldo. Que ele deixe a criatividade fluir e dê asas a cadeirudos e sufocadores de piranhas. Mas não venha dizer que isso é realismo na televisão brasileira porque aí, em vez de embrulhar o estômago como nas cenas de tortura de Batismo, vamos é morrer de tanto rir.

Outra coisa que me incomoda é o antiesquerdismo de Aguinaldo. Independente de ser a favor ou contra a esquerda, acho inadmissível que um autor ideologize tanto - e tão mal - uma novela. Pela voz da irritante anãzinha que faz as vezes de líder estudantil de saias na fictícia universidade, Aguinaldo destila uma série de argumentos preconceituosos contra a esquerda, do tipo "comunista gosta de criticar riqueza e beber vinhos caros". Como bem disse o Zuenir Ventura dia desses, uma das piores coisas ainda em vigor, desde 1968, é o anticomunismo. Foi em parte graças a ele que houve um golpe político no Brasil e uma ditadura de 21 anos. Ele poderia, pelo menos, fazer algo requintado. Que veicule suas idéias! Ele também tem direito, mas que faça com graça e estilo, como Dias Gomes fazia em obras como O Pagador de Promessas, uma obra eminentemente de esquerda, adaptada para a TV décadas depois de ter ganho a Palma de Ouro em Cannes.


José Aguinaldo Agripino Silva Maia

A própria fonte inspiradora de Aguinaldo para essa novela é lamentável. Ele disse publicamente que o personagem de Marconi Ferraço, vilão até os 45 do segundo tempo, havia sido inspirado no ex-ministro chefe da Casa Civil José Dirceu. Para os que não conhecem a história, Dirceu fez, na década de 1970, uma plástica em Cuba, onde estava exilado, e ocultou sua verdadeira identidade durante os primeiros anos de casamento com sua mulher, quando voltou ao Brasil, na mesma década. Ferraço, na novela, faz o mesmo - a plástica e a mudança de identidade -, mas após roubar a mocinha, de quem arranca até os últimos centavos.

Os problemas de se basear nessa história e anunciar publicamente isso são dois. Primeiro, há a questão de respeito à vida das pessoas. José Dirceu é uma pessoa, que tem vida pessoal, antes de ter vida pública. Sua história de vida pertence antes de tudo a ele. Clara Becker, ex-mulher de Dirceu e a enganada da história, escreveu no início da novela uma carta pública a Aguinaldo Silva em que o desautorizava a mencionar novamente que havia se baseado na história particular dela para criar o enredo de Duas Caras. Afinal, aquela história pertencia a ela, a Dirceu e a mais ninguém. Na carta, ela diz que Dirceu foi um excelente marido e que o perdoou pelo ocultamento.

O segundo motivo é a diferença entre um e outro. Dirceu mentiu por medo de ser preso novamente pela ditadura militar. Ou se escondia e vivia uma simples e bucólica vida, com nova identidade e novo rosto em Cruzeiro do Oeste, ou era preso pela ditadura militar, podendo até ser morto. Tal como o senador José Agripino Maia fez com Dilma Roussef, ao criticá-la por ter mentido durante uma sessão de tortura, Aguinaldo Silva julgou uma atitude de uma pessoa que estava sob coação e com seus direitos de indivídios suprimidos e que, caso não mentisse, poderia morrer e colocar a vida de terceiros em risco.

Mas como não só de críticas vivem as críticas, há que se louvar as interpretações de Aline Moraes e Antônio Fagundes, os destaques supremos da novela. A sexy e gigantesca boca da louca Sílvia, misturada com os olhares assassinos que a atriz deu à personagem, foi fantástica. Não menos que a atuação do sempre brilhante Antônio Fagundes, sem dúvida um dos melhores atores da TV e do cinema brasileiro (nunca o vi no teatro para julgar). Seu Juvenal é carismático e denso na medida certa. O populismo teve aqui uma bela crítica de Aguinaldo, crítica esta que poderia ter ido até mais além. Acontece que, tal qual na vida real, o público se apaixonou pelo polêmico e populista Juvenal. Aguinaldo se acovardou. Bom, mas foi até melhor. Combina com o realismo covarde de sua novela.

4 comentários:

Anônimo disse...

É por essas e tantas outras é que nem sabia que a novela terminaria nessa sexta, de tão noveleira que sou.. Infelizmente não peguei muito da época boa das novelas épicas, mas tive a sorte de ver algumas reprises, como Memorial de Maria Moura (com Glória Pires, é esse o nome, né? Ana Terra) Roque Santeiro, entre outras que agora são apenas lembranças apagando-se nessa enxurrada de porcaria que virou a tv aberta.

Unknown disse...

Concordo com muitas das coisas que você disse inclusive quanto a interpretação de Aline Moraes, a qual gostei muito na ocasião em que citou.

As telenovelas são direcionadas ao 'popular', que geralmente não tem acesso ou mesmo interesse por filmes e produções de nível mais elevado e por isso fica a mercê dos comentários da TV, limitando assim seu senso crítico.

Mas, os programas que geralmente tem algo a acrescentar não dão audiência, então, o IBOPE sobe, a cultura do brasileiro...desce.

http://coerenciacontraditoria.blogspot.com

Anônimo disse...

Ácido e com opniões contuntendes e extremistas. Guilherme Amado!

Abraço!

Guilherme Amado disse...

Ácido, um pouco. Extremista, onde? Abs